Gilberto Gil, ao longo de sua carreira, sempre oscilou entre álbuns em que explicita sua veia pop e outros em que tende para uma “brasilidade” mais explícita. Em 1998, foi à Noruega gravar, junto com Marluí Miranda, cantora e pesquisadora da música indígena (mas não só indígena) do Brasil, um de seus trabalhos mais ligados diretamente à cultura popular, O Sol de Oslo. E neste álbum Gil gravou Kaô, letra dele sobre melodia do baixista Rodolfo Stroeter.
Kaô – ou melhor, Kawó-Kabiesilé, é a saudação a Xangô, orixá de diversas religiões africanas e brasileiras. A saudação a um orixá tem significados e funções rituais importantes, mas dificilmente seria ouvida da maneira como Gil a faz nesta música.
Kaô, a música, é, em espírito, um ponto de umbanda. Um ponto é formado por uma ou duas quadras, raramente mais, com estrutura simples, em louvor de um orixá, podendo conter em si a saudação, ou contar um pouco de sua história lendária. No ritual, tem o objetivo de evocar as forças correspondentes àquele orixá, sugestionando o médium, que geralmente dança enquanto ele é cantado, induzindo ao transe e movimentando as energias correspondentes para permitir a incorporação.
Mas a interpretação de Kaô não é a de um ponto, que é acompanhado ritmicamente, de forma tradicional, por palmas ou atabaques. Kaô é cantado de forma intimista, reverente, no tom mais suave possível. A atmosfera do arranjo, com teclados etéreos e uma percussão de efeitos e não de marcação, sugere uma introspecção mais próxima de uma missa do que de uma gira. Pela repetição da saudação ao longo de toda a música, tem-se muito mais a impressão de mantra que de ponto.
Mas a estrutura de Kaô não é nem de ponto nem de mantra. Um mantra tem como característica básica a repetição, não apenas da letra, mas também da melodia. A estrutura da música oriental, que esmiuço um pouco mais aqui, implica em repetição, mas também em infinita variação improvisativa em torno do tema original, propositalmente bem simples. A música ocidental, em oposição, tem como característica a introdução de um tema, que é desenvolvido em variações pré-estabelecidas, com mudanças de altura e tom, ornamentações, mudanças de voz etc. As duas primeiras, especialmente, são usadas no formato canção. O motivo inicial é repetido mais agudo, ou mais grave, modulado para um tom vizinho, e estas mudanças pequenas dão ao mesmo tempo a impressão de desenvolvimento e de familiaridade ao ouvinte.
Pois é exatamente o que Gil e Rodolfo fazem. Kaô tem o formato clássico da canção: o tema é apresentado na sequência inicial de 5 obá; é repetido uma terça abaixo, depois desce mais uma terça, sempre no mesmo tom. A segunda estrofe se inicia uma quarta acima da primeira, caracterizando a ida ao tom vizinho da subdominante, agora com adaptações melódicas que provocam súbitos mergulhos da voz; o ciclo de descida por terças se repete nesta nova altura. Mais tarde, a canção vai decisivamente para a subdominante, mas mantém o mesmo tema melódico, agora bem agudo (como num clímax) e com a letra kabiesilé, antes realizar uma ponte de modulação e reafirmar o tema pela última vez, terminando com um salto de quarta ascendente que reforça a volta à tonalidade e termina a canção na nota fundamental.
Então Kaô é canção. Mas é mantra. Mas é ponto de umbanda. Na canção título de seu disco gravado em Oslo, Gil explicita a sincretização Xangô/ Thor, deuses do raio e do trovão, como Tupã, como Zeus. A miscigenação de Gil não é apenas ética, mas se materializa em estética. O resultado é uma prece de pouquíssimas palavras, uma saudação não a um orixá, mas à força transcendente que ele representa, uma mentalização do simbólico.
Kaô – Gilberto Gil – de Gil e Rodolfo Stroeter
Mônica Salmaso também gravou Kaô, em seu álbum Nem 1 Ai. Deixo também a gravação, feita dentro do mesmo espírito mas com diferenças sutis e belas, para quem quiser conferir.
Sempre que ouço essa música ela me emociona de uma maneira inexplicável. Agora acho que tudo faz sentido!
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Lindo artigo, Túlio! Uma grande felicidade de se ler e mais ainda por conta do comentário do próprio Stroeter, figura brilhante que já deu tantas colaborações pra nossa música. Deixo aqui registrado o meu carinho pela obra de Gil e pela sua. Grande abraço!
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Obrigado, Silas, é recompensador ler o retorno do pessoal que passa por aqui. Esteja sempre em casa. Abraço.
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Tulio, tudo bem ?
Só hoje li o seu interessante comentário sobre Kaô.
Parabéns. Voce percebeu a composição com muita sensibilidade e sintetizou de forma clara a estrutura melódica-harmônica implícita.
A título de esclarecimento : Kaô é uma composição musical minha. Quando me reuní com o Gil e propus a gravação do Sol de Oslo, mostrei pra ele a composição e disse que ela havia sido feita como uma oração em lembrança de Xangô. Gil então escreveu a letra baseado e viajando nesse mantra canção.
Monica sempre gostou dessa música e quando eu produzi Nem 1 Ai, fizemos uma versão um pouco menos intimista ( e mais densa).
Enfim, a história da música é essa. Nasceu aqui em Sampa mesmo, em música e letra, já que o Gil veio prá cá na pré produção.
Ah, me lembrei de outra coisa : a letra mesmo, em sua versão final só foi feita quando a gente já estava na Noruega. Gravamos em um único take, que é esse que está no cd. Não foi realizado nenhum take alternativo.
E o abraço do Rodolfo Stroeter
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Rodolfo, antes de mais nada, é uma honra e um prazer tê-lo por aqui. Em segundo lugar, peço desculpas envergonhadas por não tê-lo citado como autor de Kaô, embora eu mesmo considere isto indesculpável. Só o que posso dizer a meu favor é que o blog era novo, eu ainda estava pegando o jeito… e já tratei de consertar. No mais, agradeço imensamente as informações adicionais, seu comentário torna-se indispensável na leitura do artigo. Grande abraço deste admirador, agora com o devido cuidado em dar os méritos justos e devidos.
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