Em 1980, Rita Lee lançou um álbum inteiro de baladas românticas. Foi um Deus nos acuda. Não era nada que já não tivesse sido anunciado de certa forma – afinal, o maior sucesso do álbum anterior fora Mania de você. Mas o que parecia apenas um flerte com a chamada MPB, que ela arrasara logo antes (e ainda arrasaria de novo) com Arrombou a Festa, agora era namoro pra casar, celebração absoluta da parceria e do casamento com Roberto de Carvalho. E como se não bastasse, Rita aparece na capa quase como uma fada, numa foto linda e cheia de filtros (mas encarando a câmera afirmativamente).
Na verdade, a Rita já vinha sofrendo críticas pesadas, primeiro por ter deixado os Mutantes, depois por estar “traindo o rock’n roll” ao fazer outras coisas além disso – como se os Mutantes fossem os puristas de plantão. Pelo visto, levavam ao pé da letra o título de Posso perder minha mulher, minha mãe, desde que eu tenha o rock and roll – Rita não. Aliás, anos depois, ela tiraria sarro dessa postura de fã descerebrado citando distorcidamente parte de letra de Posso perder… em Yê yê yê, passando do nonsense:
Domingo de manhã
Saí pra caçar rã
Foi quando à minha frente apareceu a sua irmã
Que sarro! Ah! Que sarro! Ah!
Posso perder minha mulher, minha mãe desde que eu tenha o meu rock and roll!
para o sarcasmo:
5:15 da manhã
De óculos ray ban
Eu vi na minha frente aparecer a sua irmã
Chapada, descabelada
De braço dado com um tipo mascarado
O cara tinha cara de televisão
Seu novo namorado era um roqueiro
Super estrelo, sensação do verão
O álbum de 1980 tem apenas oito canções, várias de amor, quase todas de uma certa delicadeza, mesmo quando bem humoradas. Quase nada de rock. Quase. Porque a última faixa é uma resposta desaforada às críticas, ao mesmo tempo que um atestado de sanidade física e mental (que ela repetiria de outra forma ao cantar Não, titia, eu não estou com leucemia mais tarde) e uma demonstração publica de que ela continuava sabendo perfeitamente seu ofício – e o exerceria da forma que quisesse.
Orra, Meu! – Rita Lee
Pelo menos uma frase desta letra vale a música toda, vale por uma crônica histórica: roqueiro brasileiro sempre teve cara de bandido – que no show posterior deste vídeo, já em plena geração BRock, ela troca por já não tem mais cara de bandido. Uma frase com o mesmo poder de síntese de outra, esta de Humberto Gessinger: a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes, que se converteu em profecia quando a banda Jota Quest estrelou o anúncio de TV da Fanta Laranja. Rita já havia pulado fora deste barco havia tempo. Afinal, juventude transviada para ela já se tornara conto de fada, se é que um dia deixara de ser.
O menino que faz o mis-en-scène com Rita na versão ao vivo acima é Beto Lee, que mais tarde ainda seria seu guitarrista. O arranjo tem influência direta dos Rolling Stones, com a gravação suja, cheia de gritos e intervenções ao fundo, mesmo na gravação em estúdio. O fato de Rita se assumir ironicamente como velha e caduca é um diálogo direto com a famosa frase de My Generation, do The Who: espero morrer antes de envelhecer, ou com a do Jethro Tull, Too Old to Rock ‘n’ Roll: Too Young to Die! Ou com muitos outros, já que estas duas tratam daquele que foi o dilema básico do rock: como envelhecer sem se trair.
A decisão de Rita está expressa em todo o álbum de 1980. Orra, Meu! é apenas a cereja do bolo. Ela abre mão de toda a frivolidade, adolescência, tudo de ilusório em torno do rock, para poder ficar com o rock toda a sua autêntica frivolidade, adolescência – mas sem ilusões. E completa o título da música dos Mutantes, tão contraditoriamente quanto a própria presença de Orra Meu! fechando o que é certamente um disco de amor: posso perder minha juventude, desde que eu tenha rock and roll!
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Ah, sim: todos os álbuns da Rita podem ser ouvidos no sítio eletrônico dela.