Dia 11 de outubro de 1996 morreu meu irmão mais velho. Meu e de toda uma geração. A Legião Urbana seguramente não foi a melhor banda de rock que já existiu no Brasil, mas foi a que conseguiu uma sintonia mais forte com seu público.
Caetano cantou na trilha do filme Feliz Ano Velho, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva:
O sonho já tinha acabado quando eu vim
e cinzas do sonho desabam sobre mim
Mil sonhos já foram sonhados quando nós
Perguntamos ao passado – estamos sós?
(Conforme me corrigiram nos comentários, a canção Falou, Amizade é da trilha do Filme Dedé Mamata, do mesmo ano de Feliz Ano Velho. Parte da ligação que sustenta a argumentação a seguir se perdeu, portanto. Mas são de qualquer forma dois filmes que retratam uma geração, o que mantém válido o raciocínio, já que Dedé Mamata fala sobre a alienação durante a época da ditadura militar.)
O livro de Marcelo Rubens Paiva, grande sucesso editorial, tem uma leitura histórica dupla. Marcelo, filho do deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura brasileira, conta a sua própria experiência pessoal da tetraplegia causada por um acidente ao mergulhar num lago. A história pessoal de Marcelo é a de um duplo trauma que se manifesta fisicamente quase como uma metáfora da falta de liberdade da geração dos pais e do vazio em que mergulharam os filhos desta situação brasileira, de uma redemocratização difícil e uma retomada de liberdade cheia de desconfianças, em que os traumas não se resolviam, como ainda hoje não se resolvem. É esta juventude que Caetano retrata na canção Falou, amizade, de onde saíram estes versos, e da qual Renato se tornou, um bocado a contragosto às vezes, uma espécie de porta-voz.
Em 1996, foi lançado o último álbum da Legião, A tempestade ou O livro dos dias, inicialmente um álbum duplo, mas lançado como simples (as restantes faixas gravadas, acrescidas de algumas gravações esparsas, viriam a público no álbum póstumo Uma outra estação). Um álbum denso, em que as letras foram tratadas como poemas em um encarte em formato de livro, como notou o jornalista Artur Dapieve à época. No sítio da banda se lê:
Não era um disco fácil. Era mais rock do que os anteriores, mas as músicas eram, em sua maioria, lentas, carregadas pelos climas criados nos longos acordes sustentados nos teclados e sintetizadores de Carlos Trilha.
E em meio a esta desolação, Renato cantou uma canção que é ao mesmo tempo uma volta à sua juventude e uma despedida.
Dezesseis – Legião Urbana
Dezesseis é uma canção que conta uma história, com um formato bastante peculiar: duas partes bem diferentes entre si, AB, sem volta ao começo. Na primeira, acontece a apresentação do personagem Johnny, o João Roberto, e é montado um cenário de crescente tensão, calcado num riff muito marcado e numa melodia contida à força numa tessitura média. Já na segunda parte, a tensão é liberada no momento em que o racha de automóveis que é o centro da narrativa se inicia e termina quase imediatamente (e as guitarras fazem as vezes do ronco dos motores), a voz de Renato se lança para o agudo e passa a escandir as sílabas para relatar os acontecimentos posteriores, já misturados com lembranças não tão objetivas, colocando a narrativa num plano de incerteza que é o da formação das lendas.
Uma das questões a ser avaliada em uma canção é o “encaixe” entre melodia e letra. Um desafio para o letrista é colocar uma sílaba em cada nota da canção, de forma a evitar sobras, que levam a se ter que cantas duas sílabas no tempo de uma, ou o contrário, em que a mesma sílaba serve em duas ou mais notas, em melisma. De forma geral, o melisma é usado com economia, justamente por poder dar a impressão de que foi uma solução improvisada para completar o espaço da melodia. Com Renato não era assim, ele usava e abusava do melisma, como parte da elaboração de suas canções, usando as notas alongadas como forma de sublinhar trechos ou aumentar a emotividade. Em Dezesseis, Renato usa os melismas principalmente em dois momentos específicos. Nos versos
Ele só tinha dezesseis
Que isso sirva de aviso pra vocês
em que fica claro que o Johnny idolatrado era apenas um adolescente, e no encerramento,
E o que dizem é que foi tudo por causa
de um coração partido
Um coração
exatamente quando a identificação entre os dois se torna maior.
Não tenho idéia se o João Roberto de Desesseis existiu de alguma forma, ou se a história saiu toda da cabeça do Renato. Não faz diferença. Ainda assim, trata-se de um acerto de contas muito pessoal. Renato revisita fantasmas da sua própria juventude e coloca no personagem da canção um bocado de sua própria falta de adaptação, ao mesmo tempo que o coloca bem à vontade com uma popularidade que para o próprio Renato foi muitas vezes sinônimo de incompreensão. Hipóteses e análises psicológicas à parte, Renato é e não é Johnny. Mas a relação espelhada entre eles é por sua vez refletida na relação de identificação entre o público jovem da Legião e o próprio Renato. Johnny e Renato, por trás de suas grandes popularidades, lutam contra uma tristeza que tem igualmente uma origem dupla, que em Dezesseis não fica explicitada, mas que é tratada em outras canções de Renato: é tão estranho, os bons morrem antes, ou somos pássaro novo longe do ninho. E particularmente em Aloha, do mesmo álbum de Dezesseis:
Será que ninguém vê o caos em que vivemos
Os jovens são tão jovens e fica tudo por isso mesmo
(…)
A juventude está sozinha, não há ninguém para ajudar
A explicar por que é que o mundo é este desastre que aí está
Mas há um momento em que toda esta tristeza parece encontrar uma forma de redenção, logo antes do fim da canção.
E na saída da aula foi estranho e bonito
Todo o mundo cantando baixinho:
Strawberry Fields Forever
A citação de Strawberry fields forever em Desesseis tem um conteúdo de metalinguagem bastante intrincado. Afinal, o verso do refrão da canção dos Beatles é não é exatamente cantado por Renato, o narrador, mas sim por Renato assumindo a voz dos colegas de João Roberto: uma canção dentro da canção, como alguém que assiste um filme dentro de outro filme. Há mesmo uma relação interna da história que explica a citação: Johnny sabia tudo da Janis, do Led Zeppelin, dos Beatles e dos Rolling Stones. Ou seja, a canção devia lembrar Johnny pelo fato de ela já a ter tocado ao violão para os colegas.
Mas há algo além disso. Strawberry fields representa o antídoto, o antípoda, a antítese da tragédia – o idílio. Cantada pelos amigos de Johnny, representa a tentativa de sublimar e superar a perda, numa reação que é parte fuga (viver á fácil de olhos fechados, confundindo tudo o que vê), parte enfrentamento. Cantada por Renato, é a continuação deste esforço, agora aplicado à própria situação de doença e desencanto. E cantado de fora para dentro da narrativa de Dezesseis (no sentido de ser uma composição de Renato numa história inventada), torna idílica a história que é contada; e cantada de dentro para fora (pelos colegas de Johnny na lembrança, falsa ou verdadeira, de Renato), ilumina de volta a vida de quem a canta e quem a ouve.
O fim de Dezesseis é levado ao violão por um coro formado pelos próprios integrantes da Legião, como uma roda em volta da fogueira em que Johnny tocava. Nessa hora, outro caminho metalingúistico é percorrido: a narrativa assume a forma do fato narrado. Tanto Renato, Dado e Bonfá quanto todos os ouvintes se juntam a esta roda. Renato finalmente se despedia de Johnny, nós fazíamos o mesmo com Renato, sem nos darmos conta – ele morreria menos de dois meses depois do lançamento do álbum. O jogo de espelhos se desfaz: somos todos, ainda que na lembrança, a grande geração perdida, os meninos e meninas de que fala a letra da desesperada Natália, que abre este álbum, procurando seu lugar na história e na própria vida como protagonista, como Renato canta em Soul Parsifal: Ninguém vai me dizer o que sentir / E eu vou cantar uma canção pra mim.
P.S. Toda a discografia da Legião Urbana pode ser ouvida aqui em seu sítio.
Excelente trabalho! Inteligente e atencioso aos detalhes!
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Ayrton Senna… Tenho a impressão que ele faz alusão à morte de Ayrton Senna…
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Que belo texto! Parabéns!
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Uma correção importante: a canção de Caetano não faz parte da trilha do filme “Feliz Ano Velho”, mas de “Dedé Mamata”, com Guilherme Fontes no elenco.
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Rapaz, é verdade! Uma das ligações mais importantes do texto está cortada… Obrigado, vou botar a correção.
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Olá, Túlio. Acabei de ler o post com a entrevista do Arthur Dapieve sobre “Faroeste Caboclo” e viajei com uma coisa aqui: existe uma estória (já com ar de mitologia, mas confirmada pelos envolvidos, ao que parece) de que Renato criou “Faroeste Caboclo” a partir de uma situação prosaica, quando esteve fora de Brasília por algum tempo e, ao retornar, encontrou a garota de que gostava (Mariana) “ficando” com Flávio Lemos, hoje baixista do Capital Inicial.
Foi a partir dessa cena que ele, então, elaborou uma narrativa metafórica e autobiográfica, assumindo-se na pele de um certo João de Santo Cristo, apaixonado por Maria Lúcia (Mariana), e que é traído pelo traficante Jeremias (Flávio).
O final da canção todos conhecem, é trágico: morrem os três personagens.
“Dezesseis” também termina tragicamente e, veja só: trata-se novamente de uma canção que, a posteriori, pode ser lida como uma narrativa autobiográfica, e o personagem central é um João.
Recentemente, a banda-tributo Urbana Legion musicou uma letra inétida de Renato, “Apóstolo São João”. A canção menciona elementos de um universo bíblico, entremeada por lapsos de realidade, destacando-se o verso “Teve tiroteio”, que me remetem novamente a “Faroeste Caboclo”.
Valeria a pena investigar as relações, psicanalíticas inclusive, entre o João Apóstolo e o outro trágico João – Renato/Santo Cristo/Johnny…
(Lembrando também que João é um dos santos mencionados em “Meninos E Meninas).
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hoje 10/03/2017 li esta analise e ao meus 33 anos me senti com 16 anos… belíssima analise parabens meu amigo. Obrigado pelas palavras.
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Ele descreveu sua vida na música. Johnny era o próprio Renato. Em forma de metáforas, ele narrou toda sua trajetória. O racha nada mais é que os caminhos perigosos e aventureiros que o Renato encarou, e a curva da morte, como consequência dessas aventuras, vitimou-o com a AIDS.
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Quase chorei lendo bela sua crítica aqui… Os significados dessa música podem e são infinitos… Tive dois amigos que morreram de acidente de carro no início dos anos 90,e um deles justamente se suicidou por causa de um amor tumultuado.
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Finalmente, Túlio, eu com meus 55 anos, li uma análise inteligente e emocionante desta música / letra. Apenas acho (talvez pelos anos em que fiquei tentando entender o final) é que existe algo além do que você falou (e muito bem dito!) em relação à “Strawberry Fields Forever”. Meus parabéns!
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Quase cinco anos depois, estou lendo esta análise e me emocionei bastante! Excelente, meu caro. Realmente, isso me faz refletir e indagar o que o Renato pensava.
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Gostei da análise, destoa das análises superficiais que se fazem por aí…
Vou compartilhar! Abs.
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Muito bom seu comentário sobre a música Dezesseis, que é cheia de enigmas e conta a história de um jovem, que provavelmente por um amor não correspondido cometeu suicídio ao não fazer a curva e bater em um caminhão (considerando que a própria canção diz que ele era fera demais pra vacilar assim). Parabéns Tulio
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Parabéns cara! Muito bom o texto, excelente analise da música e ainda emocionante, serviu-me de inspiração para a elaboração do meu TCC. Parabéns e grande Abraço
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Excelente análise.
Só uma pequena correção: “Na nossa grande geração perdida/Nos meninos e meninas” são versos da canção “Natália”, e não “Clarice”.
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Putz, claro, Miyage. Acho que embarquei na onda do Facebook, de atribuir toda e qualquer citação à Clarice Lispector… Correção feita.
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Não entendi a parte Strawberry Fields Forever, pq eles (colegas de João Roberto) cantaram isso?
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Eles catam porque lembram de ver Johnny tocando essa música no violão e assim essa música faz lembrá-lo por esse motivo .
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Cara, foi uma das coisas mais bacanas que já li sobre esta música, que particularmente é a que mais gosto da LU. Abraço e parabéns pelo texto!
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Larissa, Daniel, obrigado. Sejam sempre bem vindos por aqui, abraços.
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Show de bola 🙂
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Parabéns Túlio, me emocionei ….Abçs
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Pois acredite, eu também, Otávio. Abração.
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