Depois da exegese dos posts anteriores (aqui e aqui), é bom mostrar o outro lado – ou seja, a sanha da interpretatice, o culto à personalidade e a vontade de ganhar alguma notoriedade em cima da obra alheia, alimentando múltiplos significados que acabam dando mais notoriedade a quem consegue arrancá-los da obra que ao próprio autor, que nunca pensaria em nada parecido, e assim surgem os especialistas. O poeta Bruno Tolentino empreendeu nos anos 1990 uma verdadeira cruzada contra esta sobrevalorização da cultura popular – que ele simplesmente não considerava cultura, vide esta entrevista, e baixou o malho no Caetano Veloso, que aliás já afirmou diversas vezes que não considera sua obra algo que mereça atenção por refinamento erudito, e que tem a exata dimensão de ser apenas um compositor popular, e nada mais que isso.
Por mais argumentos eruditos que Tolentino tenha apresentado, é óbvio que esta visão absolutamente elitista não se justifica. Mas há bons debates sobre a posição da cultura popular no Brasil, em que a cultura erudita por séculos foi pouco mais que cópia ou adaptação da importada. Conversa que vai longe. Onde quero chegar é no Piauí. Ou melhor, nas sátiras que a equipe do Piauí Herald faz à esta confusão entre a cultura erudita e a popular no Brasil, por parte das obras, mas também dos analistas, como se, à falta de cultura erudita, fosse o caso de promover a popular a este posto – promovendo também por tabela quem a promove e supervaloriza obras marginais como correspondência pessoal à altura de grandes obras literárias.
A primeira que vi foi a incrível manchete Descoberto homem que compreende Gilberto Gil. Mas mais recentemente veio a público uma série inteira, baseada num recado escrito à diarista – por Chico Buarque, Gilberto Gil, João Gilberto e Caetano Veloso. O mesmo recado à mesma diarista, supostamente compartilhada por todos, um dia na semana para cada. A notícia é fundamentalmente a mesma, com as adaptações ao novo autor do bilhete, e é isso que as torna crescentemente hilariantes. Aqui, a sequência completa de artigos:
– Bilhete de Chico Buarque à diarista é considerado magistral
– Bilhete de Gil à diarista é considerado incompreensível
– Bilhete de João Gilberto à diarista é considerado revolucionário
– Lobão critica recado de Caetano à diarista
E finalmente, o clímax – ou o paroxismo – da novela, ainda mais surreal, mas ainda uma vez chicoteando a intelligentsia: Documentário de José Padilha sobre bilhetes à diarista é considerado visceral.
OK, vá lá, colocar estes textos num blog que se dedica justamente à análise do repertório destas pessoas requer uma boa dose de autocrítica, o reconhecimento de que elas fazem sentido muitas vezes – inclusive as do Bruno Tolentino, que certamente consideraria este blog a escória. Lembrei de Drummond se sentindo um monstro de escuridão ao ler a análise de um erudito a um poema despretensioso seu, e de Jonh Lennon rindo do crítico que detectara cadências eólicas em uma canção sua – cadências que existem mesmo, e que Jonh fazia questão de não conhecer… Mas lembro também do Chico Buarque que confessa não saber exatamente o que querem dizer versos como agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês ou pela varanda flores tristes e baldias como a alegria de não ter onde encostar. Sinal de que nem sempre o artista tem todas as chaves de sua própria obra.
É útil e saudável reconhecer o lugar especial que a canção popular, por circunstâncias históricas diversas, acabou assumindo no Brasil, fazendo as vezes de literatura, de crônica política e econômica, de filosofia, do escambau, reconhecer a beleza precária disso, de um florescimento tão grande que é a denúncia de uma falta que ela procurou e procura suprir a seu modo. Talvez num Brasil ideal a canção não seja tão importante – agora lembro do Millôr, que diz que um mundo ideal não teria humoristas, que vivem da falha. Mas então não seria ideal. Deixo a solução desta contradição para os exegetas.
Tulio, estes bilhetes estão mesmo dando o que falar…e o que escrever…
Pura verdade, o artista nem sempre compreende a sua obra enquanto a produz. Ela muitas vezes existe, antes de se tornar concreta, nós somos apenas um instrumento para parí-la ao mundo. Quase sempre, nós enxergamos (ou ouvimos) não o que a obra verdadeiramente é, mas o que pensamos que ela deva ser, como reflexo de nós mesmos e de nossas experiências.
Bjs,
simone
CurtirCurtir
Simone, a grande obra de arte é sempre incompleta, pois é terminada pelo público. E por isso é grande, porque sempre tem espaço para crescer. Por isso mesmo, ai da crítica que tenta delimitar interpretações e invalidar possibilidades, fazendo a obra diminuir em vez de se ampliar, como também a crítica que tenta montar na obra para crescer através dela. São duas pragas. Que a crítica e a o próprio público sejam capazes do diálogo com a obra, em vez do julgamento do artista. Abração.
CurtirCurtir
pura verdade…
CurtirCurtir