Sinhá, sinhazinha

Há algum tempo, fui a uma festa de casamento de amigos de posição social bem superior à minha. Festa para cerca de 700 convidados, com talheres de prata e uma costureira de plantão no banheiro feminino para socorrer vestidos avariados. Com tanto Möet & Chandon que a empresa que produz a champanhe, feliz com a compra, retribuiu aos noivos garantindo sua noite de núpcias num hotel de luxo, na mesma suíte que abrigou o presidente Obama em sua passagem pelo Rio de Janeiro.

Uma grande, bonita e merecida festa, para um casal de excelentes pessoas que nunca fizeram do dinheiro que têm barreira no relacionamento com quem quer que seja, que são voluntários de ações sociais, com os pés no chão de quem nunca viu problema em ir fazer as compras da família em supermercados populares, e também capazes das pequenas ações, como tomar para si a tarefa de lavar a louça da janta para que a empregada que mora longe não chegue tarde em casa.

O traje masculino era, obviamente, terno e gravata, o que me levou, desavisado na minha informalidade congênita, a ser praticamente o único em mangas de camisa. Se chamei a atenção pela minha tremenda gafe, não sei, pois todos foram elegantes o suficiente para não me olharem torto. Mas o que me chamou a atenção foi o fato de ter demorado muito, no meio de tanta gente, a encontrar um convidado negro, ou mulato que fosse. Não que não houvesse, apenas eram raríssimos. Com exceção, é claro, dos garçons, seguranças e demais empregados do bufê, por sinal prestativos e eficientes.

Até aí, nada de muito diferente de qualquer casamento da classe alta num país muito desigual como o nosso, incluindo aí a consciência social dos noivos, que nossos ricos não são necessariamente vilões de novela. Mas após este intróito de crônica social, voltamos ao tema deste blog. Na festa, apresentou-se uma banda sintomaticamente chamada Kizomba, formada por músicos brancos, negros, mulatos. O vocalista era negro, com ótimo traquejo de palco e boa voz. No repertório, que passava por vários tipos de música dançante, duas coisas merecem registro: quase no fim da apresentação, a noiva segurou o vocalista pelos braços e bradou para ele, entusiasmada: toca funk, toca funk! (não, ela não estava bêbada nem desvairada), atendida prontamente pela banda. E pouco depois disso, ao retomar o repertório, tocaram esta música, que o público dançou animadamente:

Olhos Coloridos – de Macau, com Sandra de Sá (do segundo álbum, de 1982)

Não havia sombra de ironia na voz ou nas feições do cantor, nem na platéia majoritariamente branca, que se esbaldava. Isso porque não havia ali sombra de racismo, assim como individualmente os noivos nem de longe são pessoas preconceituosas. E no entanto, entre as 700 pessoas que escolheram entre as mais queridas para celebrarem com eles o momento mais feliz de suas vias, quase nenhum era negro ou mulato. O racismo não é deles, mas molda seu círculo de relações independente de suas vontades, simplesmente seu meio social não tem negros, por razões alheias a eles. Neste contexto, ouvir o cantor da banda Kizomba repetir para uma platéia eufórica os versos A verdade é que você / tem sangue crioulo / tem cabelo duro / sarará crioulo soava estranho. Estranhamente verdadeiro.

Tudo isso me vem à mente relacionado com o artigo MPB e violência, de Francisco Bosco, onde ele parte da agressão cometida pelo ator global Marcelo Faria contra um segurança da casa de shows onde acontecia uma apresentação do cantor Rogê. Impedido de acessar a área Vip, para a qual não tinha ingresso, o ator deu uma garrafada na cabeça do segurança. Processado, conseguiu um acordo que encerrou o assunto na justiça. O segurança declarou que não tinha dinheiro para manter um processo longo e precisava trabalhar. Francisco Bosco parte daí para tratar do enorme contraste brasileiro de uma conciliação de raças e classes na cultura, lado a lado com uma brutal separação entre elas na realidade, no mesmo lugar, na mesma festa. Recomendo vivamente a leitura do texto no link acima.

E no fim do texto, Francisco Bosco refere-se à última canção do último álbum de Chico Buarque, parceria com João Bosco:

Sinhá – com Chico Buarque e João Bosco

Que por sua vez me levou a fazer associação com esta outra canção de Chico, do álbum do filme Para viver um grande amor:

Sinhazinha (Despertar) – Chico Buarque, com Zezé Motta

Nestas duas canções (Sinhazinha tem também uma segunda parte, com o subtítulo Despedida, que é cantada por Olivia Byngton e não será tratada aqui), Chico aborda esta dicotomia tremenda de que fala Francisco Bosco por duas vias que, na verdade, são a mesma, a histórica. Sinhá traz o confuso discurso do oprimido cheio de subentendidos, como a castração e a cristianização forçadas, uma usada como álibi para a outra. Canção que, por sua vez, me lembrou outro vídeo:

A reportagem – se é que merece este nome – do telejornal Brasil Urgente da Bahia, da Rede Bandeirantes de Televisão, em que a jornalista Mirella Cunha humilha um suspeito de estupro que, sem conhecer termos técnicos e tentando se inocentar, confunde exame de corpo de delito com exame de próstata, é uma atualização quase ponto por ponto da situação de Sinhá, em que o escravo nega ter espiado o banho da dona no rio. Em ambos os casos, todos sabem que não importa a culpa, o castigo virá. Apenas ocorre a substituição do álibi religioso pelo científico, apelando-se para um exame médico que nem se sabe bem o que é, assim como o escravo fala iorubá mas ora para Jesus.

Se em Sinhá a atualização do drama do apartheid social se dá por associação, já em Sinhazinha, ela é direta, automática. Cantada por Zezé Mota, que no filme faz o papel de doméstica, já foi pensada no contexto da intérprete e do filme, uma mucama moderna – Chico nunca a cantou. A sinhazinha em questão, uma moça rica da zona sul carioca, estetiza a democracia racial e o consenso social como um mundo à parte, e ao fazer isso deixa o rei nu, explicita o abismo entre intenção e realidade. Tudo na vida da sinhazinha é inócuo, estéril, pueril, embora devesse ser profundo, tudo é objeto de desejo como o banho da sinhá na outra canção (um homem lá, uma mulher aqui como escravos).

Ambas as canções são sobre a não realização do desejo, sobre a interdição sexual/de consumo, a barração na porta do mundo civilizado. Assim como o escravo não pode olhar a sinhá nua, a mucama apenas assiste ao acesso da dona àquilo que lhe é vedado, como grande parte da população assiste na TV a propagandas de coisas que não pode ter. Assim como o segurança do show do Rogê não assistia ao show, mas sim à platéia assistindo ao show, enquanto o trabalho musical de Rogê, como lembrou Francisco Bosco, se alimenta em grande parte de elementos oriundos da cultura oprimida, da qual o segurança – negro, naturalmente – tornou-se o incômodo representante, como empregado castrador da área Vip, para uma platéia simbolicamente de classe média da zona sul. Sem entrar no mérito da qualidade artística de Rogê, que não está em pauta (assim como a eficácia da homeopatia não é questionada na canção), Zezé Motta poderia cantar em Sinhazinha os versos: tem também show do Rogê.

E particularmente um outro verso de Sinhazinha é mais cruel que todos: é quando Zézé canta que tem búzios pra jogar. É a apropriação / absorção da cultura do oprimido pela do opressor, descaracterizada ao ser misturada quase aleatoriamente com outros universos culturais (homeopata, ioga…), como os gabinetes de curiosidades europeus misturavam objetos sagrados de culturas diversas, expoliados, descontextualizados e descaracterizados. Apropriação que se dá no sentido inverso da cristianização forçada de Sinhá, mas como que complementar a ela.

Apesar da atualização de Sinhazinha, há um óbvio viés histórico em ambas. É o meio pelo qual Chico, cultivador da canção tradicional, se permite trazer para a primeira pessoa o discurso do oprimido sem cair no populismo. Há aqui uma difícil discussão sobre representatividade social na obra de arte, em que corro o risco de cair numa leitura marxista engessada e merece desenvolvimento em outro artigo. Mas é evidente que Chico se sente desconfortável em assumir diretamente e por procuração a posição de negro, pobre, ex-escravo. Se na Ode aos ratos, como já assinalei em outro texto, ele recorre ao repente para chegar ao rap e assim aproximar-se da forma musical usada como protesto pelos que sofrem os efeitos da desigualdade, aqui ele recorre a um estratagema menos radical, permanecendo mais claramente ainda no terreno estético em que forjou seu estilo: a pós-bossa nova carregada da pesquisa de ritmos e manifestações brasileiras. Tanto Sinhá quanto Sinhazinha guardam em suas divisões similarmente sincopadas sobre violões – o de Sinhazinha muito estilizado, o de João Bosco em Sinhá mais balançado – a rítmica que serve de ponte para a temática e para a abordagem. Sem condições de cantar no estilo dos oprimidos de hoje, Chico canta no dos oprimidos de outrora, identificando-os com os atuais, o que acaba se tornando um trunfo, ao carregar seu discurso de profundidade histórica, mas não o tira do lugar de identificado de algum modo com a cultura opressora.

E é justamente esta situação dúbia e tensa que explode na surpreendente última estrofe de Sinhá, em que Chico abandona a primeira pessoa histórica do escravo para, sem transição, assumir um tom confessional que acompanha a modulação do tom da canção:

E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá

É quando a máscara do consenso social e da democracia racial correspondentes a uma música popular (MPB) hegemônica ou unificada caem e ao mesmo tempo se reconfiguram. O drama do enredo da canção resolve-se: o escravo não apenas olhou sinhá, mas tomou posse daquilo que lhe foi e continua sendo negado sistematicamente, o prazer. E Chico, recusando-se aceitar o lugar de representante da classe das sinhazinhas que compram disco novo pra rodar, e também a de Mano Brown e sua postura combativa oposta. Aqui, em vez de consenso, o que há é o convívio atormentado de dois mundos inconciliados em um só corpo, em uma só arte. Não uma celebração, mas a constatação desta dualidade: o escravo negro e o senhor de olhos claros estão em Chico, são Chico, representante simbólico da MPB que por sua vez é representante simbólica do Brasil, forjados a ferro, fogo e sangue sobre uma divisão brutal e secular, mas também em uma fusão igualmente brutal e tabu, em que todos são sarará, todos tem sangue crioulo e também sangue do sinhô, todo um país é, a um só tempo e há muito tempo, oprimido e opressor, herdeiro de uma relação de ódio e amor, desejo e castração, medo e fascínio mútuos e um difícil autorreconhecimento. Chico, corajosamente, traz para si a responsabilidade, para suas costas a carga desta herança renegada, desta prole bastarda, e, na impossibilidade de, por si, mudar a realidade ainda tão cruel, faz dela aquilo que melhor sabe fazer, aquilo que o fez: torna-a canção.

8 comentários em “Sinhá, sinhazinha

  1. Pedro José disse:

    Boa tarde!
    Não me ficou claro, ainda, de quem é a letra de Sinhá? De Chico ou de Bosco?

    Cordialmente,
    PJMS

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  2. Esse ano de 2016 descobri esse blog e aos poucos tenho lido vários dos textos através das tags. Esse sobre Sinha e Sinhazinha, linkado com o texto do Francisco Bosco é de um peso e de uma profundidade grandiosa. Gosto muito do blog, mas esse texto em especial me chamou mais ainda a atenção. Parabéns!

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  3. Norma Martins Monteiro disse:

    Túlio, posso compartilhar esse texto no facebook? Não estou a altura de comentá-lo, como Ademar Amâncio e José Carlos Monteiro da Silva o fizeram, mas de senti-lo, mais ainda no momento atual! Obrigada pela atenção. Norma

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  4. José Carlos Monteiro da Silva disse:

    Prezado Túlio, admito que sou um leitor de blogs muito esporádico e, talvez por isso, só agora passados dois anos, tomei conhecimento de seu texto, assim mesmo conduzido pela admiração quase reverencial que tenho pela obra do Chico. Nada tenho a acrescentar a seu texto, que já se basta, pelo refinamento da análise, pelo diálogo muito pertinente que estabelece entre as canções, pela relação iluminadora com a situação vivencial a que você se referiu, e por ser construído em linguagem de excelente qualidade. Reconheço-o ainda como um exemplo do caráter fecundo das grandes obras, capazes de inspirar leituras igualmente talentosas. Agradeço-lhe por proporcionar uma leitura enriquecedora dessa preciosa canção-poema de Chico e João Bosco.
    Um abraço.
    Zeca Monteiro da Silva

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  5. A barreira social é uma realidade,mas a diferença cultural,que eu considero mais complexa,também existe e nem sempre corresponde a classes.Sempre fui bóia fria(aposentado há dois anos) e nunca me inteirei com pessoas da minha cidade,nem com os pobres e nem com os chamado ricos.No Brasil se os pobres não tem cultura,a maioria dos ricos também não tem.Talvez eu tenha fugido do assunto,mas é um tema interessante.

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    • Não fugiu não, Ademar. A barreira social também é cultural, mas você aponta bem que não são necessariamente as mesmas. Em pesquisas de publicidade isto é muito claro, as pessoas que economicamente são de uma classe e culturalmente são de outras, às vezes muito distantes. E concordo com você integralmente quanto ao fato de que nossas elites em teoria são, em sua grande maioria, culturalmente paupérrimas. Talvez por isso nossa cultura (música inclusive) popular seja tão avançada, como uma forma de compensação… Abraços.

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