A nova partida do filho pródigo

A volta para casa, um símbolo imenso, talvez o símbolo por excelência da própria aventura humana. Adão, expulso do Paraíso, até hoje empreendendo sua dolorosa volta para casa. O pequeno príncipe. O menino do dedo verde. Fernão Capelo Gaivota. O Alquimista e também a mãe de todas as histórias, o retorno de Ulisses, a Odisseia de Homero. Todos contando novamente a mesma história, a busca de algo que não se sabe bem o que é, e que, após aventuras e desventuras, vai-se descobrir que estava exatamente no lugar de onde se partiu – em casa. Só que agora perceptível por quem passou por tanta coisa e se transformou, passando a ser capaz de enxergar o que antes não via.

Siba lançou o álbum Avante em 2012. Foi o primeiro álbum a assinar totalmente sozinho depois da dissolução do grupo Mestre Ambrósio em 2002. Nos dez anos anteriores, cumpriu uma trajetória fascinante: aprofundou-se ainda mais na pesquisa dos ritmos pernambucanos, tornou-se mestre de maracatu, internou-se em Nazaré da Mata, juntou lá os músicos tradicionais da região de fez com eles a Fuloresta, banda que o acompanhou em dois álbuns excepcionais. E então, uma guinada.

Em algum momento eu comecei a intuir que o meu modelo de mim mesmo não estava mais adequado. Este modelo, eu tinha perseguido por muitos anos. Eu persegui tanto que acabei realizando ele à perfeição, no sentido que eu me tornei um mestre de maracatu. Na verdade o que eu queria era me deslocar de onde eu estava, e eu sentia necessidade de, pra me movimentar, quebrar comigo mesmo, me tirar desse ambiente e me jogar noutro desafio pra poder desenvolver alguma coisa nova.

A declaração acima está no documentário Nos balés da tormenta, de Caio Jobim e Pablo Francischelli, que conta a história que levou Siba à gravação do álbum onde esta guinada se deu, Avante, em que ele retoma a guitarra, seu primeiro instrumento, e vai buscar uma sonoridade distanciada da tradição pernambucana que o guiou tanto no Mestre Ambrósio quanto em sua carreira solo até aí. Ou seja, em palavras fáceis, um disco de rock, mas dificilmente redutível a apenas isto. E nele, a canção Qasida.

E ao ouvir Qasida, assim como na verdade qualquer outra canção de Avante, a simplificação disco de rock começa rapidamente a ir por água abaixo, pois a sua versificação é… a de Siba, a mesmíssima que se ouve nos álbuns com a Fuloresta, em formatos não apenas tradicionais mas escolhidos a dedo, e seguidos com engenho e arte, como em Cantando ciranda na beira do mar, já analisada pelo blog em sua forma variante do repente tradicional. Mas é claro que há, sim, algo novo nas canções, se não exatamente na forma, no conteúdo extremamente pessoal. Se a Fuloresta foi um rompimento em relação ao que ele fazia com o Mestre Ambrósio, trata-se agora do rompimento de um rompimento, a guinada da guinada, que não leva ao local de origem, mas mais além. E, ao contrário das letras da Fuloresta (e embora ainda haja sobras do seu repertório como Bagaceira), desta vez o rompimento é narrado no momento em que é feito, desde os primeiros versos da primeira faixa, Preparando o salto:

Não vejo nada que não tenha desabado
Nem mesmo entendo como estou de pé
Olhando um outro num espelho pendurado
Me reconheço, mas não sei quem é

E há mais algo novo, e ele se chama Fernando Catatau, o lider do grupo Cidadão Instigado convidado por Siba para produzir Avante. A sonoridade do Cidadão Instigado, misto de rock, brega e influências regionais diversas, é o elemento que vai ser usado por Siba para provocar o desequilíbrio que o colocará em movimento. A guitarra psicodélica de Catatau soa apenas em uma canção, a própria Qasida, mas sua influência se espraia. O som de Avante se desenvolve entre esta guitarra e a tuba de Léo Gervásio, que é o pé de Siba na Fuloresta. Entre estes dois, cabe um mundo, ou vários. Por exemplo, a influência da guitarra africana na maneira de Siba tocar. África que surge não apenas pela via do intercâmbio atual, mas também, subrepticiamente, pela tradição ibérica (recomendo este interessantíssimo artigo de Makely Ka sobre o tema), infiltrada desde os aboios aparentados com o canto do muezim até os romances, comuns aos dois lados do Atlântico. Atlântico que Siba vai cruzar para cantar a Qasida.

Qasida, forma poética árabe/persa de estrutura específica e sólida, como as diversas subdivisões do repente: composta por três partes, a primeira nostálgica refletindo sobre o passado; a segunda, tratando da passagem do mundo do passado para a aspereza do presente, a vida longe da aldeia de nascença, como uma transição para a terceira parte, que concluirá com algumas possibilidades, como a sátira a outras aldeias, a exaltação da sua própria ou uma máxima moral. Siba construirá sua Qasida sobre sua própria história, a partida do lugar do conforto para o desconhecido e volta para o lugar do conforto – agora desconhecido.

Nos balés da tormenta (aqui em sua versão reduzida) mostra com clareza a interseção entre a vivência pessoal de Siba e o retrato disto configurando-se sonoramente. As imagens de Siba visitando o sítio de seu avô, onde passou parte de sua juventude e, segundo suas palavras, como que o centro do mundo para ele, são acompanhadas, não por acaso, pela trilha sonora de Qasida, cuja letra também é lida por Siba. Eu sempre funciono de alguma forma como um pêndulo, eu vou indo e voltando. Porém, a ida e a volta podem ser simultâneas? Logo adiante, ele diz não perceber mais um ponto central para onde voltar em sua vida, ou ter vários pontos possíveis. Como conciliar estas afirmações aparentemente contraditórias?

Siba realiza esta conciliação em sua música, dando passos largos para longe enquanto retorna a portos seguros em outros. A guitarra que ele retoma não é a de adolescente ouvinte de rock, mas a de influência africana, do Mali e do Congo, com seus desenhos melódicos característicos. A influência africana por via ibérica se atualiza na busca de uma forma árabe para falar da sua volta para casa. Embora continue a partir do texto em sua composição e siga tomando como base as formas tradicionais, mesmo mantendo a rigidez formal, ele nem sempre recorre a formas consagradas do repente, mas acrescenta variações por sua conta. E é exatamente isto que faz com a forma qasida, trazendo-a para o outro lado do oceano para retratar nela sua própria volta, que é tanto ao passado quanto ao futuro:

Lembro bem do momento em que parti
Só não sei quantas vezes retornei
Como sempre, na hora em que cheguei
Me dei conta que errei voltando aqui

(…)

O que foi já não é e nem será
E da frente pra trás, ninguém irá

(…)

Sem voltar pra você eu não descanso
Minha casa é você e eu já sabia

E ao voltar para casa, a casa mudou, não é mais o que era. A casa agora é o que se construiu, assim como a pesquisa e o fazer popular que embasaram o trabalho do Mestre Ambrósio e da Fuloresta estão aí, porém atualizados como o saber e o fazer popular sempre se atualizaram, transitando por pontes lançadas há muito tempo como o diálogo com as tradições árabes, mas agora com a velocidade do bit. Bernardo Oliveira aborda este aspecto de Avante neste excelente artigo sobre o álbum seguinte de Siba, De baile solto. Lateralmente, Bernardo aponta também que o acerto de contas pessoal de Avante abre caminho para que em De baile solto Siba externe posições políticas combativamente, como que uma arregimentação de forças para a posterior ação externa. E diz ele também:

Avante marcava a conversão por redução, conduzindo o ouvinte do calor imediato da Fuloresta a uma instrumentação calculada, matemática, que derivava de células do maracatu, da ciranda. De Baile Solto conjura ambas as soluções: captar o calor da rua e da sambada, traduzi-lo através de canções sintéticas, misturando células rítmicas provenientes de muitos gêneros e estilos dissolvidos em dinâmicas de festa, improviso, amizade: ação.

Qasida termina com uma catarse em compasso quinário no improviso de Catatau sobre a base de Siba, a comemoração da volta do filho pródigo, o encontro consigo mesmo, agora com a bagagem de ter ido muito longe e ter encontrado o caminho de casa novamente. O mestre de maracatu toca guitarra. Não se trata de passadismo nem de futurismo, e sim apenas de, como diz a própria letra, não correr contra o tempo. Ao contrário, fruí-lo, deixá-lo correr, não congelá-lo. Siba voltou, mas não para ficar. Terminada a festa, e diferentemente do arquétipo do filho pródigo, ou talvez complementando-o, a volta para casa de Siba é já a preparação para a próxima partida. Ao terminar o retorno, já é hora de ir de novo avante. Porém, da mesma forma que a casa é ressignificada pela volta, a partida é também muito diversa da anterior, pois desta a vez a casa não fica para trás, mas vai consigo: Minha casa é você e eu já sabia. O aprendizado conquistado na volta não se perde mais.

Na verdade é difícil, ou mais exatamente ocioso, dizer se Avante representa uma volta para casa ou uma nova partida em direção ao desconhecido. Certamente um pouco de ambas. Siba abandona, mas não destrói, partes de si para permitir que outras vicejem, processo que ele próprio afirma ser periódico em sua vida, e mesmo estas partes deixadas de lado permanecem transformadas no que é construído, como a poética de Siba atravessa intacta as diversas sonoridades que a emolduram. De qualquer forma, Qasida não é a última palavra neste processo, nem mesmo a última canção do álbum. Ela conta a história até aí, mas quem aponta o próximo passo é a última, Bravura e Brilho, feita para seu filho, que não por acaso está na capa do álbum – o próximo a cumprir o trajeto de deixar a casa para trás para poder mais adiante voltar transformado – o mesmo trajeto, mas sempre muito diferente. Quasida o resume até a última curva. À frente, muitas outras curvas ainda.

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