O tempo contra o fascismo

Quanto é muito tempo? A resposta mais imediata será: depende. Tempo para quê? Para receber uma informação? Para a duração de um relacionamento? Para o almoço ficar pronto? O contexto dará a pista para uma resposta razoável. Mas todas restas respostas partirão de um mesmo ponto, ou período base: o de uma vida humana. Ela será sempre a referência para toda medição temporal, como campos de futebol são a medição de desmatamento nos noticiários do Brasil. É a partir dela que bodas de ouro são comemoradas como um grande feito, que um século é algo compreensível mas quase inalcançável, um milênio é compreensível apenas em perspectiva histórica e períodos maiores estão simplesmente além do alcance da cognição, a não ser como elementos matemáticos.

Pois se é verdade que, não apenas para uma vida humana, um segundo pode ser crucial e mudar tudo, a perspectiva da permanência muda drasticamente de ser para ser. E o homem, em sua curta existência (tanto em termos da vida de um ser humano quanto da própria Humanidade), frequentemente se esquece disso. E ter a noção da efemeridade implicará necessariamente em estabelecer contato com seres capazes de nos superar em duração. Olhar as coisas, a cidade, o mundo e mais que o mundo, sob os ângulos deles é um bom exercício para compreender nosso próprio lugar em todos estes lugares.

Estou falando há dois parágrafos sobre a comparação entre nós e seres cuja existência excede a nossa, mas poderia estar falando simplesmente de arte. Pois por meio dela podemos igualmente olhar as coisas sob ângulos diversos dos nossos e mesmo assumir estes olhares, e assim estabelecermos nosso próprio locus no mundo. Aqui estão então duas obras de arte, duas canções que exercitam exatamente este olhar em contraplano, em que olhamos estes seres, experimentamos mesmo seus lugares, e podemos também nos ver vendo-os.

1- O jequitibá

Lançada em 2022 no álbum Vão, O jequitibá foi composta por Wisnik musicando a letra fornecida por Carlos Rennó e gravada juntamente com Ná Ozzetti. A letra, no entanto, não descreve seu objeto, aliás pouco fala dele de forma direta. Sua estratégia é outra: ao invés de descrever o jequitibá branco de cerca de 200 anos de idade, enorme porém discretamente instalado no Parque Tenente Siqueira Campos, conhecido como Trianon, ao lado da Avenida Paulista, ela opta por descrever seu entorno atual apenas para estabelecer sua anterioridade a tudo que o rodeia.

Assim, antes de Masps e Fiesps, de bancos e bancas, de passeatas reacionárias e da Parada Gay, antes do formigueiro de gente da Avenida Paulista, símbolo do progresso e do desenvolvimento, havia uma árvore. Uma não, muitas e muitas, quando São Paulo era apenas uma vila de gente bastante malvista, aventureiros e degredados dispostos a fazer fortuna explorando o território ainda virgem, caçando índios, procurando ouro. E antes, quando tudo era floresta e só indígenas habitavam a terra – e o jequitibá já estava lá.

Os versos de Rennó trazem um ritmo de respiração que não é, no entanto, quadrangular como estrofes com métrica regular. As soluções melódicas dadas por Wisnik, acostumado a musicar poemas de diversos autores da literatura brasileira, seguem respeitosamente esta respiração dos versos. O ritmo de O jequitibá é cadenciado, porém irregular, como os anéis de crescimento de uma árvore, que marcam as estações e os anos, mais grossos no verão, mais finos no inverno.

A voz do Wisnik tem algo de frágil, aerada e suave como é, um timbre que às vezes parece vacilar, mesmo sem perder a afinação, como uma vela que bruxuleia, e nesta canção parece reforçar o caráter efêmero de tudo que canta, de todo o entorno do jequitibá que vem, vai, aparece e desaparece na corrente do tempo, como nos vídeos acelerados em que apenas um elemento permanece imóvel, mas no caso um timelapse não de algumas horas ou dias, mas de séculos. Esta talvez seja a melhor definição para a canção Jequitibá: um timelapse musical.

Porém, um timelapse que acontece na mente de quem ouve, sendo apenas sugerido na canção. Pois esta se compõe unicamente de uma descrição do presente, uma grande angular sobre a Paulista, que se fecha aos poucos sobre o jequitibá. Por sinal que percebo que vou sobrepondo metáforas cinematográficas no texto. Elas vão se impondo ao tratar de uma canção descritiva mas, que em sua descrição sugere desdobramentos que vão além da imagem. O que ocorre com O jequitibá é que, ao apresentar estritamente o que é a Paulista e seus arredores no presente, ela traz junto as imagens do passado, quando nada estava lá. Mas também, implicitamente, nos lembra que toda esta descrição é igualmente provisória. Que, assim como houve um tempo em que nenhum dos elementos da canção estava presente no entorno do jequitibá, em um período de tempo igualmente superior a nossas vidas é possível que nenhum destes elementos tenha perdurado, e o jequitibá se encontre então em um terceiro cenário (ou vigésimo, ou centésimo, pois São Paulo não se fez de uma vez). Como será? Não estaremos lá para conferir, presos ao timelapse modesto de nossa vida humana. Mas o jequitibá, ele muito possivelmente ainda estará lá.

2- Bendegó

Renato Frazão e Luisa Lacerda cantam Bendegó no álbum conjunto Cantiga do Breu, de 2019. O nome e tema da canção é o meteorito encontrado em 1784 no sertão baiano, onde hoje é o município de Monte Santo, nas proximidades de onde anos depois foi construído o povoado de Canudos. Trazido apenas cem anos depois para o Rio de Janeiro a mando do imperador Pedro II, acabou integrando-se ao acervo do Museu Nacional, e estava lá, bem em sua entrada, quando o incêndio de 2018 destruiu o Museu – mas ele, o meteorito, permaneceu intacto.

Bendegó, o meteorito, traz consigo uma dimensão de tempo acima de nossas possibilidades de entendimento – podemos apenas estabelecer os números, mas não internalizá-los. Se o jequitibá do Trianon trata séculos como tratamos décadas, o Bendegó já estava onde foi encontrado havia milhares de anos, e esta foi apenas a parcela de sua existência passada neste planeta, tendo sido forjado possivelmente a partir da decomposição de um cometa, ou desgarrado de um grupo de asteroides, e estes forjados ainda antes no núcleo de uma estrela – assim como toda a matéria que nos compõe, afinal.

Bendegó, a canção, de autoria de Renato e de Claudia Castelo Branco, toma um caminho muito diverso de O jequitibá para tratar da antiguidade deste ser – a começar pela composição, em que, inversamente à dupla Wisnik/Rennó, os versos de Renato se sobrepuseram à melodia anterior de Claudia. Na verdade, opta por tratar apenas do período nosso conhecido de sua existência, a partir de sua descoberta pelo menino Domingos. Porém, ao contrário de Carlos Rennó, que deixa para mencionar o objeto de sua letra apenas duas vezes, ao meio e ao final, Renato e Claudia vão na direção radicalmente oposta: o meteoro é o próprio eu lírico da canção, e canta na primeira pessoa sua história.

A partir daí, os fatos são rememorados não necessariamente na ordem cronológica, e há ao menos um sutil anacronismo. O Bendegó veio para o Rio de Janeiro em 1886. O Arraial de Canudos já existia então, mas foi com a chegada de Antônio Conselheiro em 1893 que ele passou a crescer rapidamente, com a afluência de sertanejos esperançosos de uma vida nova devido a sua pregação, e sua destruição pelas forças da República se deu em 1897. Portanto, Bendegó e o Conselheiro se desencontraram por poucos anos, e os versos Conselheiro eu vi / erguendo o Arraial / Ah, eu vi o Juízo Final podem ser considerados uma licença poética, plenamente justificada porém. O que são alguns poucos anos para quem estava ali há tantos?

Já quanto à melodia que modula estes versos, Bendegó, assim como O Jequitibá, não tem pressa, e nem poderia ser diferente. Bendegó tem nos violões que a acompanham o andamento do carro de boi que levou o meteorito de Minas ao Rio, mas ao fundo se ouve nos teclados a harmonia das esferas de que falou Pitágoras, como o carro de boi passando na noite, e a Via Láctea ao fundo. Entretanto, diferentemente da irregularidade estrófica da canção de Wisnik/Rennó, Bendegó tem uma estruturação muito mais clara e regular, num formato A-A-B-A-A-B-C-C, em que cada uma das formas tende um pouco mais ao agudo, aumentando a tensão da narrativa gradualmente. O jequitibá, ao contrário, ao referir-se diretamente à árvore pela primeira vez desce à tônica do acorde, como que emulando a firmeza do que está bem plantado no chão, e mesmo na segunda parte, quando a voz de Wisnik vai oitava acima no clímax, após este repete-se a opção pelo grave, e a canção termina novamente na no grave, raízes fincadas na terra.

Bendegó utiliza em seu clímax o acontecimento que provavelmente ensejou sua composição: o incêndio do Museu Nacional, que causou comoção em todo o país com exceção de um dos candidatos à presidência da República à época, que esbravejou: Já pegou fogo, quer que faça o quê? Se por um lado é, podemos dizer, natural que a pedra que foi forjada em algum cataclisma sideral e sobreviveu à entrada na atmosfera terrestre também resistisse à queima do edifício que era sua casa, por outro não deixou de ser assombroso vê-la impávida à entrada do prédio totalmente consumido e calcinado, como se nada lhe tivesse acontecido. A letra de Bendegó não menciona diretamente o Museu, mas se inicia e se encerra abordando o episódio, ao final de forma indireta e surpreendente:

Coração desempedrou
Quando meu destino foi

Conhecer a desrazão
Dessa terra o desvario
E eu me aferro em oração
Pelo Brasil

A inclusão da palavra destino abrindo estes versos causa uma reviravolta em seu significado. A noção de que aquela pedra veio dos confins do espaço e do tempo, vagou por eons e anos-luz até cair neste grão de poeira que é a Terra e foi levada até aquela casa que se transformava em museu por um propósito, como se ela tivesse sido criada expressamente para estar ali no instante decisivo em que ele lambesse em chamas – e permanecer. Se estas chamas seriam – e foram – incapazes de afetá-la externamente, a personificação da letra atribui à pedra de ferro um coração, e se as explosões atômicas estelares não a afetaram, o incêndio do lugar construído por seus hospedeiros para conservar o saber, incêndio causado pela incúria deles próprios, o fez. Bendegó sabe que sobreviverá ao que vier a acontecer como sobreviveu por milênios, mas teme por quem o recebeu, recolheu e se interessou por ele – nós.

Bendegó foi escrita imediatamente antes, ou talvez apenas um pouco depois, da ascensão de forças destrutivas no Brasil. Já O jequitibá provavelmente o foi pouco antes, ou imediatamente depois, que estas forças foram derrotadas por muito pouco, mas o suficiente para deixarem o núcleo do poder. Ambas são as primeiras faixas de seus respectivos álbuns, e são cantadas ambas por um homem e uma mulher. Coincidências apenas (embora o impacto, digamos, temporal de cada uma talvez tenha sido determinante na escolha de serem as faixas de abertura). A partir daí, fazem escolhas diversas e eventualmente contrastantes para falarem de seus temas com muito em comum, seres de tempos maiores que os nossos e que assistem pacientemente nossa agitação por vezes tão fútil, por vezes autodestrutiva. E que viram chegar e passar, como passam as passeatas, atos, manifestações, a desrazão, o desvario, como já haviam visto outras e outras vezes. E passaram.

O jequitibá do Trianon, ao lado da Avenida Paulista, não está imune a nosso poder destruidor, malgrado sua sobrevivência até hoje – tantas e tantas como ele não sobreviveram. Mas a existência de uma obra de arte que o cante, chamando a atenção para ele, tem um poder por si só de aumentar as possibilidades de sua permanência, contribuindo para impedir qualquer ação futura que impacte sobre ele. O meteorito Bendegó, por sua vez, é mais capaz de resistir, mas, inversamente, foi o risco que correu, ou pareceu correr, que motivou a obra que o cita. Um nascido e criado nesta terra, outro imigrante de onde sequer há terras, eles traçaram rotas anti-euclidianamente paralelas, um imóvel, outro vagando velozmente no espaço, que os levaram a duas cidades vizinhas, embora tão diferentes. Dois habitantes de escalas de tempo diferentes entre si e superiores à de quem os canta, nos lembrando de que, em outas escalas de tempo, a pulsão de morte já foi derrotada e voltará a sê-lo. Duas canções traduzindo esta mensagem em mais que versos e melodia. E este texto, que promove o encontro entre elas e seus personagens. Mas guardando em algum lugar a sensação de que, de algum outro tempo ou lugar, eles já se conheciam.

Canções de Lista e suas listas

O podcast zuim estreou em janeiro deste ano com programas conceituais. Um dos primeiros esmiuçou a música Pra Ninguém (letra aqui, programa com a música aqui), de Caetano Veloso, que consiste em uma lista de títulos de outras canções. O sítio então fez o programa tocando as músicas citadas na letra. Deu tão certo que, mais recentemente, voltaram a usar esta tática com Todas Elas Juntas Num Só Ser, de Lenine e Carlos Rennó. Desta vez a letra quilométrica não coube em um programa só, precisaram de cinco! Daí que fiquei cismando com esse negócio de canção de lista, quando é que funciona e quando fica chato.

E quando é que funciona, quando é que fica chato? Confesso que já tive uma certa implicância com canções de lista, por ter a impressão de que cabia qualquer coisa, que não chegavam a lugar nenhum. Isso até me dar conta de que gostava de algumas sem me dar conta de que se encaixavam nessa categoria. Primeiro então pensei que funciona quando o sujeito sabe onde quer chegar, quando ele tem uma finalidade em mente que direciona a lista. É o caso de Passaredo, de Francis Hime e Chico Buarque, por exemplo. Mas aí lembrei de Diariamente, de Nando Reis, que parece não ter fim e não chegar a lugar nenhum, e mesmo assim se torce para continuar, pela curiosidade do jogo de associações.

Então achei que vale a surpresa da enumeração, indo até o limite do absurdo, como Dos Margaritas, dos Paralamas, ou Por Você, do Barão Vermelho. A surpresa não vem apenas do próximo ítem a ser reconhecido ou não, no caso de uma citação, mas também o estratagema e o contexto para ele ser encaixado na música, à maneira dos sambas-enredos, como em Cinema Novo, de Caetano e Gil, que ambiciona contar toda a história do cinema nacional em quatro minutos! A canção pode saber ou não onde quer chegar, mas tem que curtir o trajeto. Um componente bem humorado sempre ajuda, como em Por que que eu não pensei nisso antes?, de Itamar Assumpção  e Façamos (Vamos Amar), de Cole Porter em versão de Carlos Rennó (parece que este gosta de fazer canções de lista mesmo)   E uma lista pode ser também de sonoridades, mais até que de significados, como em Dançapé, de Mário Gil é Rodolfo Stroeter.

Finalmente, há algo que pode tranformar a mera lista em algo maior: é quando o compositor sabe usar a propriedade de acumulação de tensão inerente à repetição de uma fórmula, juntando-a a um acompanhamento crescente, a uma intensificação instrumental ou de interpretação, e assim empolgar, emocionar. Milton Nascimento faz isto  magistralmente em A de Ó (Estamos Chegando), em parceria com Pedro Tierra e Dom Pedro Casaldáliga. Francis e Chico (de novo) também o fazem em E Se…

E nesta brincadeira, acabei fazendo, a meu modo, um podcast também, uma lista de canções de lista. Então, à maneira do zuim, que aceita listas enviadas pelos ouvintes para fazer os próximos programas, aceito também sugestões de canções de lista interessantes. Com link para ouvir então, melhor ainda.

PS. No link de Dançapé, o sítio dá várias versões da música para escolher. Recomendo a penúltima da lista, de Mônica Salmaso.