A garota de Honório Gurgel

Tentei arduamente, mas não consegui identificar a gravação de Garota de Ipanema usada por Anitta em sua The girl from Rio (de autoria dela e mais diversos nomes, entre autores efetivos e produtores, num sistema ampliado de atribuição que se aproxima dos nossos sambas-enredo). Um site especializado no assunto afiançou que se tratava da gravação clássica do álbum de Stan Getz, cantada por Astrud Gilbert, mas estava enganado, sequer o tom era o mesmo. A que mais se aproximava era a do próprio Tom Jobim no álbum The composer of Desafinado plays, mas o fraseado da flauta não é idêntico. Acabei desistindo.

Mas por que isto seria importante? Para saber com com precisão com o que e com quem Anitta está dialogando. Afinal, embora a moça que inspirou Vinícius de Morais em sua letra seja só uma, há muitas Garotas de Ipanema, já que esta é nada menos que a segunda canção mais regravada do mundo, atrás apenas de Yesterday, dos Beatles. Garota de Ipanema foi de uma imensa novidade na canção brasileira a música de elevador e símbolo de um Brasil que passou, feito para turistas e idolatrado mundo afora porém irreal – e cada vez mais irreal em tempos de fascismo no poder. A história de como a Bossa-Nova estabeleceu uma imagem de país e esta imagem foi aos poucos demolida internamente enquanto se firmava externamente não é o objeto deste artigo, mas é fundamental para ele, como para a garota do Rio Larissa e sua canção.

Pois The girl from Rio é metodicamente construída sobre Garota de Ipanema, cuidando simultaneamente de demoli-la e subir em seus ombros para se alçar mais alto. Mas voltamos à questão: qual Garota de Ipanema, de Tom e Vinícius (e João) ou a dos elevadores? Há duas pistas para isto, uma indireta na gravação, outra explícita no clipe. Na gravação, o tom escolhido. O pesquisador americano (e youtuber) Adam Neely, em um interessantíssimo e metódico estudo da canção clássica, aponta entre outras coisas que, embora o tom de Fá maior tenha se popularizado em gravações internacionais a partir do registro da canção no Real Book (a mais popular compilação de standards do jazz), o tom das gravações de Stan Getz e do próprio João é Ré bemol, o que caracterizaria um tom “brasileiro” e um “pra gringo ver” (entre eles Frank Sinatra), dando às gravações em Ré bemol uma feição supostamente mais autêntica e às em Fá uma certa suspeita de diluição (embora Jobim o tenha utilizado também).

Pois bem, o sample usado por Anitta, seja de quem for, está em Fá maior. Evidentemente, esta escolha também não foi feita pensando nisto tudo e levou em conta o tom adequado para a voz de Anitta (que foi muito prejudicada por este quesito em Vai Malandra, baixa demais para ela). Mas a escolha da fonte do que seria a base da nova canção sem dúvida reflete esta dicotomia entre as visões estrangeira e brasileira sobre a canção. (Por sinal, o vídeo de Adam, em inglês, vale ser assistido mesmo por quem acha que já conhece bem a canção.)

A outra pista nem é uma pista, mas a própria essência do clipe promocional da canção – e que no universo pop onde Anitta se move é efetivamente parte da canção. Pois ele se inicia exatamente numa espécie de paródia dos filmes hollywoodianos em que o Rio de Janeiro era retratado como um paraíso idílico e glamouroso (embora exótico) – filmes que vão desde Uma noite no Rio, o segundo de Carmem Miranda nos EUA, de 1940, até 1984 com o desastrado Feitiço do Rio, que nem o diretor de Cantando na chuva Stanley Donen nem Michael Caine e uma jovem Demi Moore conseguiram salvar. Esta imagem da cidade se estabeleceu firmemente e permanece no exterior apesar de tudo, e Anitta passa o clipe inteiro alternando entre ela e as imagens filmadas no Piscinão de Ramos, em que o Rio de Janeiro para além dos três ou quatro quarteirões onde Helô Pinheiro reinava se faz presente.

Voltando à música, a base de Girl from Rio é a parte A de Garota de Ipanema, e somente ela, algo de se esperar de um sampler – muitas vezes o que é samplaedo é ainda menos, apenas uma batida, uma linha de baixo, um acorde. Mas no caso presente isto também não deixa de ganhar um significado, já que, por outro lado, é toda a parte A de uma canção que tem apenas duas partes. Esta parte A, muito mais conhecida mundialmente, é convertida no refrão de Girl from Rio, enquanto a parte B, que contém em si uma desestabilização harmônica que desafia interpretações funcionais (outra vez o vídeo de Adam é bastante esclarecedor) e fala da solidão do eu lírico, como que o lado menos luminoso da canção, é deixado de fora. Anitta, ao tomar para si toda a primeira parte e de forma tão explícita, deixa o ouvinte como que esperando a chegada da segunda, que não acontece, assim como o lado sombrio da cidade não é retratado em suas versões cinematográficas.

E sobre esta base tão conhecida de todos e esta mesma melodia, vem uma nova letra para esta parte A que, em vez de apresentar a garota de Ipanema, a substitui pela de Honório Gurgel. E acompanhando esta letra, uma batida trap, caracterizada por muitas e velozes subdivisões de ritmo. Não é o funk carioca típico, longe disso, o que ocasionou ridículos protestos de descaracterização. Mas Anitta não pretende atualizar a Bossa-Nova com o Funk, e sim atualizar a visão do Rio de Janeiro e se projetar como sua a representante alinhada com esta nova visão. Em suma, ela pretende ser mais a nova Helô Pinheiro que a nova Tom Jobim – mas controlando ela mesma a música. Ou mais claramente, e como já apontei em um artigo sobre Vai Malandra há dois anos, a nova Carmem Miranda, nada menos.

Neste sentido, The girl from Rio é um passo seguro e firme adiante de Vai Malandra, em que este universo da Zona Norte carioca foi apresentado ao mundo, tanto em termos musicais quanto de marketing – e a campanha primorosa de lançamento do single que o diga, com a foto de Anitta em pé numa prosaica cadeira de plástico em frente ao ônibus usado na filmagem viralizando violentamente e permitindo que cada um se inserisse nela com as adaptações pessoais devidas. Na letra, Anitta se insere no universo dos abandonados pelo poder público com naturalidade, incluindo aí o fator pessoal da descoberta tardia de um irmão, filho de seu pai com outra mulher. Esta menção particular, ao lado dos versos sobre a epidemia de gravidez precoce nas favelas – Babies having babies like it doesn’t matter – soa como algo da mesma natureza, e é mesmo. A descrição feita por ela é crua, sem nenhum glamour, assim como suas poses no clipe, sentada de pernas abertas na cadeira de praia, besuntada de água oxigenada e amônia para clarear os pelos, celulites à mostra (desde 2018), quase tropeçando ao descer do ônibus – tudo estudadamente natural, mas ainda assim natural, assim como a identificação de quem conhece ou veio deste Rio de Janeiro, um efeito parecido com o dos cariocas que assistiram a animação Rio, do brasileiro Carlos Saldanha, em que tudo era estilizado, mas estava tudo lá…

E é aí que acontece o pulo do gato de Anitta, é quando ela consegue a proeza de atualizar o modelo brasileiro de música de exportação (e a própria visão de Brasil no exterior) enquanto o esculhamba, e simultaneamente propor a si mesma como substituta desde modelo, como a sua atualização. O Rio não é só Ipanema, o Rio é muito mais do que vocês imaginam, o Rio é muito mais do que aquela lourinha aguada, o Rio… sou eu. E o Brazil não conhece o Brasil. Mas venha, venha conhecer. Vai malandra, gringo canta, todo mundo canta, diz o único verso em português da canção, na verdade um contracanto. Anitta se propõe a ser a Beatriz que guiará os Dantes que aceitarem seu convite por este Inferno e Paraíso de cidade, mas sem deixar um de lado em prol do outro, e mesmo às vezes sem saber distinguir bem em qual lado está.

E Anitta cuida antecipadamente – embora nunca se possa escapar de todo – das críticas de voltar americanizada – ou no caso, de americanizar-se para ser aceita no embarque de ida. Sim, a dialética não se dá sem choques, assim como não se deu para Carmem: ela deixará algo para trás na negociação para carregar algo. E, se Anitta está longe de ser tecnicamente a melhor voz de sua geração – nestes termos, Ludmilla a deixa longe tanto em termos de canto como até mesmo de composição – Anitta por sua vez é uma negociadora nata, e mais que ninguém sabe onde quer chegar, e como. Ela propõe uma troca: conheçam meu mundo, e me deem passagem no seu. E uma visão rápida do repertório variadíssimo de Anitta, entre reggaetons, funks, pop, sertanejo e featurings sem fim, sabe que The girl from Rio é mais uma versão de Anitta apresentada ao mundo, mas uma versão especial, a sua versão, sua contraparte. E a Garota de Ipanema, ao fim e ao cabo, ganha com esta versão que se livra do peso morto de anos de edulcoração e finca pé no que, para além mesmo da questão musical, é o que a tornou tão grande: o estabelecimento de um imaginário de cidade.

Eu confesso que torço por ela, que seja para reclamar dela adiante. Anitta não será a salvação da música brasileira nem se propõe a isto. Mas a auto-estima nacional anda precisando se ver, se reconhecer, sem ignorar suas mazelas mas sem ser o pária internacional que o fascismo populista nos tornou. E Anitta conseguiu isto desta vez, e devemos essa a ela. Vai Anitta, ser a nossa garota. Faça bonito, com celulite e tudo, é esse o espírito.

P.S. Eu já estava encafifado com a canção desde que a ouvi pela primeira vez, mas o que detonou o artigo foi esta publicação do pesquisador Diego Viana no Twitter. Fica o agradecimento.

De Debussy a Tom…

Este post vem do blog Doida Canção, escrito pelo carioca/parisience Paulo da Costa e Silva. O blog é pequeno e existe há pouco tempo, mas as análises musicais são de primeiríssima linha. Esta vem a calhar com algo que já penso há um bom tempo, e que vou dar continuação mais adiante.

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Em muitas de suas músicas, Tom Jobim cria uma estrutura melódica mínima, baseada em poucas notas que serão repetida sob diferentes caminhos harmônicos. Para que isso funcione bem, para que essas melodias mínimas não percam em impacto emocional, não se tornem pobres, foi preciso que houvesse um desenvolvimento, uma ampliação do uso expressivo dos acordes. A tensão subtraída à melodia, agora sumariamente reduzida, é compensada por uma harmonia rica, dissonante. A fórmula soa paradoxal: um elemento ultra simplificado é imantado por outro de extrema complexidade; a timidez melódica apóia-se na exuberância harmônica. Esta, por sua vez, altera a percepção que se tem da melodia – e aí está a jogada. Vamos imaginar a cena de um teatro-canção. Os acordes formam o cenário enquanto a melodia é o personagem principal. A própria forma como percebemos este último vai depender da moldura que o enquadra. Se o pano de fundo for um hospital, o ator vestido de branco será um médico; se for um terreiro de candomblé, será um pai-de-santo, e por aí vai. Com grande domínio da matéria musical, Jobim extraía o máximo dessas junções e deslocamentos, podemos dizer, entre figura e fundo. Como disse Jacques Morelembaum, ele sabia o exato significado de uma nota sob um acorde.

Talvez o exemplo mais radical desse modo de compor seja o Samba de Uma Nota Só. Na primeira parte (Eis aqui este sambinha…) a melodia permanece praticamente estática, apoiada numa só nota, enquanto a harmonia não cessa de se modificar, deslizando cromaticamente entre dissonâncias. Na segunda (Quanta gente existe por aí…) é a melodia que passa a se deslocar por todas as notas da escala, e a harmonia, se não chega a ficar parada num só acorde, torna-se no geral mais simples, sem grandes dissonâncias, evoluindo em convencionais saltos de quinta – e não mais no deslizamento cromático do início. A composição se estrutura a partir do desdobramento de uma célula mínima que projeta diferentes harmonias e jamais retorna sobre si mesma (o mais corrente entre os compositores populares é justamente o oposto: organizar a canção em torno de um ciclo harmônico mais ou menos fechado, que vai sendo preenchido pela melodia).

Lorenzo Mammì chamou a atenção para a singularidade desse modo criar e para as semelhanças que ele nutre com procedimentos da música clássica. É na maneira de construir que Tom mais se aproxima de seus mestres do universo erudito. De Villa-Lobos, nas extensas linhas melódicas feitas da transposição de pequenos intervalos para cima e para baixo, como em Chega de SaudadeSabiá. De Chopin, no fato de colocar a melodia como centro estrutural da composição. De Debussy, na complexidade e no uso da harmonia. Em Prélude à l’Après Midi d’Un FauneNuages, entre outras, o compositor francês brinca de repetir pequenas frases sob diferentes luzes harmônicas. Os ouvintes do fim do século XIX acharam graça, pois não conseguiam reconhecer ali a presença de uma melodia. Impregnados da sensibilidade romântica, acostumados aos grandes rodopios do desenvolvimento temático, eles não entendiam bem aquelas frases paradas, repetidas várias vezes e sem concatenações legíveis. Com dificuldades para descrever aquele universo, os críticos viram nos acordes flutuantes, soltos, desencadeados do fio de causa e efeito do fluxo tonal, a tradução musical da técnica de compor quadros a partir de pequenas manchas de cores, aparentemente desconectadas entre si. Debussy foi tachado de impressionista.

A ausência de desenvolvimento do material temático e a comparação com pinturas não queriam dizer, contudo, que sua música fosse estática. Havia movimento ali, mas um movimento distinto daquele encontrado em seu grande predecessor, Wagner. Em Debussy, o material melódico torna-se ainda mais cristalizado, o foco sendo jogado sobre harmonias quase auto-suficientes, sem traços de concatenação necessária, interligadas mais por analogias. Ele interrompia assim o fluxo tonal, levado ao seu momento de agitação máxima pelo cromatismo romântico, sem no entanto abandonar a tonalidade. Incorporava a técnica de Wagner e a desligava por dentro. Com isso, reagia contra a grandiloqüência romântica e trazia a música para uma temporalidade circunscrita a um espaço mais exíguo e, ao mesmo tempo, mais amplo e imprevisível – um pouco daquilo que Bachelard chamou de “imensidão íntima”.

É natural que Jobim tenha ido nessa fonte buscar alguns dos elementos que lhe possibilitaram formar o delicado intimismo urbano da bossa nova: o modo sutil de construir melodias que nos comunicam uma temporalidade suspensa, meio onírica. E aqui podemos falar em qualidades semelhantes, compartilhadas por Tom e Debussy: a impossibilidade de repetição – a nota que volta sob outro acorde já não é a mesma nota – e a ênfase na sensação do instante. De fato, Debussy parece ser um dos primeiros compositores a explorar de modo consciente o espectro puro do som como material expressivo. Ou seja, a sonoridade pelo que contém de bruto e imediato, de espacialidade e impacto corporal, e não tanto por sua vinculação ao tecido codificado de uma gramática musical. Com ele, comenta Pierre Boulez, “o movente e o instante fazem irrupção dentro da música”.

Algo parecido ocorre com as pinturas impressionistas. Sempre é complicado falar de tempo numa arte espacial e de espaço numa arte temporal, mas a geração de Monet dispensou as grandes narrativas em prol da captação da natureza como processo, como devir, como sucessão de instantes precisos e insubstituíveis. Ancorou-se no presente. Também elas produziram uma espécie de “poética do instante” – instantes que deveriam ser evocados menos como descrição ou entendimento intelectual e mais como sensação. A série de pinturas da catedral de Rouen (uma delas ilustra este texto) é um ótimo exemplo. Monet pinta a mesma fachada em diferentes horários do dia, com ligeiras mudanças de ponto de vista. Cria uma espécie de narrativa do instante – o lugar revisitado jamais é o mesmo.

Difícil falar de uma influência direta da pintura sobre a música de Debussy. Quando L’Après-Midi d’Un Faune, sua primeira peça madura, veio à luz, em 1894, o impressionismo já havia sido “ultrapassado” por outras correntes artísticas. O compositor parece ter sido bem mais influenciado pela literatura do seu tempo. De fato, Debussy foi um grande criador de mélodies – o equivalente francês dolied alemão. Foi através da prática de musicar os versos de Verlaine, Mallarmé e Baudelaire (o pai dos simbolistas), de adequar sons e palavras, de mergulhar fundo no trabalho da língua francesa, que ele desenvolveu o que há de mais determinante em seu estilo. Mammì chega a sugerir que “é tentando combinar a modulação contínua de Wagner com as repetições obsessivas de alguns poemas dos Fleurs du Mal (Cinq Poèmes de Baudelaire, 1889), muito mais que por uma súbita influência exótica, que Debussy alcançará um estilo pessoal”. Ou seja: a relação com a palavra foi decisiva no desenvolvimento de sua música.

Proses Lyriques – Claude Debussy (I- De rêve)

Derradeira Primavera – Tom Jobim e Vinícius de Morais, com Gal Costa