Arnaldo e Hendrix contra o fascismo

Se me dão licença, vou fazer uma divagação aqui sobre as convocações para a manifestação golpista, partindo da reação do Arnaldo Antunes ao uso de sua música (e de Marcelo Fromer e Tony Belloto) O Pulso em uma delas, e chegando lá adiante no Jimi Hendrix. Se ficou curioso, venha.

Arnaldo avisou que vai entrar com processo contra Olavo de Carvalho, o mentor pseudointelectual do neonazismo tupiniquim, que compartilhou a convocação que usa O Pulso. Em sua manifestação, Arnaldo disse considerar Congresso e STF como preservadores da democracia e instituições que precisam ser defendidas.

O Pulso é de 1989, do álbum dos Titãs Õ Blesq Blom. Três anos antes, os Titãs fizeram o álbum que lhes granjeou maior popularidade, Cabeça Dinossauro. E é daqui que gostaria de partir, porque Cabeça Dinossauro é um álbum que se dedica, metodicamente, a demolir uma por uma de nossas instituições. Igreja, Polícia, Família, Estado violência, desde o título direto e letras idem, todos têm direito a críticas avassaladoras. Lembrei disso e pensei como seria fácil a um reacionário hoje criticar Arnaldo e chamá-lo de hipócrita por defender hoje o que já atacou com tanta fúria. Só que esta crítica simplesmente não aconteceu. E então fiquei pensando na reviravolta conservadora que o rock tomou e em como o uso de O Pulso se enquadra nela.

Isto porque, numa visão imediata, parece mesmo que quem ficou conservador foi Arnaldo. É claro que ele mudou de ideia em relação a várias coisa na vida, espera-se. Ocorre que uma crítica a uma instituição não necessariamente se dedica a destruí-la. Polícia para quem precisa não é um refrão contra a polícia. Cantar Família não impediu os Titãs de constituírem famílias, embora provavelmente tenham se esforçado para não tornarem as suas no retrato sarcástico pintado na canção. E mesmo na época e por muito tempo, Arnaldo não participou nem da gravação nem das performances ao vivo de Igreja, por ser católico praticante.

Ou seja, há não apenas nuances nas posturas, como também amadurecimentos nas posturas. Porém, o público que ouviu Cabeça Dinossauro não necessariamente avançou junto com seus autores, e não necessariamente faz a mesma leitura deles. Até aí tudo bem. O problema surge quando tenta-se apossar de uma visão corrompida destas obras – que efetivamente iam ao limite da expressividade e da ação política conjugadas – com finalidades espúrias, e quando elas são usadas para induzir ações criminosas.

O que me leva ao outro vídeo convocatório da manifestação, eles divulgado pelo próprio presidente. Ele consiste basicamente em frases soltas como O Brasil só pode contar com você e Juntos somos mais fortes, sobre fotos de manifestações, de Bolsonaro e muitas bandeiras brasileiras. Parece tosco, e é, mas obedece a uma estratégia muito clara de não afirmar nada claramente enquanto diz tudo sub-repticiamente. Como quando descobriu-se que os cafés da manhã de Bolsonaro em campanha, com pão e leite condensado e congêneres, eram minuciosamente posados, preparados pela equipe para apresenta-lo como homem comum. (Peço desculpas por ter que colocar este vídeo aqui, para facilitar o entendimento)

E há dois detalhes interessantes neste vídeo. Um é a mensagem “Somos capazes SIM!”, entre tantas estampadas no vídeo, num plágio evidente e descarado do “Yes, we can” de Barack Obama. E a outra, musical, é o uso de uma versão do Hino Nacional tocada numa guitarra. Ambas são parte da apropriação de símbolos da esquerda, uma muito evidente, a outra um pouco menos, mas quem foi o primeiro a tocar um hino nacional numa guitarra? Ele mesmo.

Segundo Eric Clapton em sua autobiografia, Jimi Hendrix nem era uma pessoa muito politizada inicialmente, mas na época de Woodstock estava tentado se aproximar dos Panteras Negras. O fato é que sua versão distorcida e incendiária – literalmente, já que termina com ele ateando fogo à guitarra – tornou-se um exemplo da apropriação de um símbolo patriótico para criticar ações do governo – no caso, a guerra do Vietnan. Contra-cultura, protesto, demolição das instituições – ou uma crítica ao que estavam fazendo delas. E então um vídeo convocando para uma manifestação que prega a destruição de instituições traz… uma guitarra tocando o hino nacional.

Ah, mas o sujeito que recebe o vídeo talvez nem saiba quem foi o Hendrix. Verdade. Mas Hendrix estabeleceu que o hino na guitarra tem uma significação específica de protesto e não é preciso sequer conhecer sua versão para ser influenciado por ela. Ah, mas a versão do hino nacional no vídeo é totalmente comportada. Mas é claro, trata-se da apropriação reversa, de amansar e domesticar o protesto, de retirar dele a autonomia, de coloca-lo a serviço de determinadas forças políticas. O hino nacional na guitarra do vídeo convocando a manifestação é como o café da manhã de Bolsonaro, um mero truque publicitário- mas bastante efetivo.

O que nos leva de volta a O Pulso. A letra de Arnaldo entremeia inúmeras doenças do corpo com alguns distúrbios psíquicos e outros, digamos, de caráter: culpa, rancor, hipocrisia, estão lado a lado com febre tifoide, sarampo, úlcera. Doenças que precisam ser erradicadas. O jogo de palavras e dignificados de Arnaldo há trinta anos equiparando corpo e alma e sugerindo as relações entre ambos hoje dá espaço a que um vídeo atribua a seus inimigos políticos a pecha de doenças como câncer, devido à sua hipocrisia, e defendam sua erradicação.

Este é o processo de distorção simbólica subliminar feito pela propaganda fascista, e foi a percepção desta distorção que moveu Arnaldo, bem mais que a reivindicação de direitos autorais. Arnaldo posicionou-se para defender sua obra e trajetória, esta em especial contra a visão simplista de quem a pretende usar para a destruição pura e simples. De certa forma, foi como se ele precisasse vir explicar seus versos. Mais de trinta anos atrás, um refrão como Policia para quem precisa continua sofrendo com entendimentos seletivos, o que mostra mais que nunca sua atualidade.

Sobre tempo e espaço

1- Envelhecer

Os Titãs eram do Iê Iê, e faziam questão de avisar que não havia o terceiro Iê. Por fim, cansaram e tiraram também os outros dois. Mas a música que faziam era, entre outras coisas, um pastiche do iê iê iê e do pop. Não era sempre fácil entender o que pretendiam. Hebe Camargo os apresentou em seu programa como roqueiros gracinha, e Fausto Silva, em seu Perdidos na Noite, sarcasticamente como um grupo de marionetes, devido ao modo como dançavam.

Particularmente Sonífera Ilha, seu primeiro sucesso, é fruto de uma espécie de mal entendido, o que a torna ainda mais saborosa. Basicamente, sua letra não faz sentido nenhum, é uma sucessão de clichês embalados por um arranjo igualmente clichê – mas em algum nível com a consciência de sua condição assinalada em algum lugar da interpretação, o que a põe numa estranha fronteira entre ser uma canção romântica que se leva a sério – o que é insustentável – e ser uma enorme zombaria sobre estas canções – o que a maior parte do público nunca percebeu. Mesmo Adriana Calcanhoto, em sua regravação, a embala num arranjo de cordas que, ele próprio, parece não saber o que está emoldurando.

O tempo passou e os Titãs mudaram, deixaram de lado o pastiche para adotarem um estilo muito mais direto (ainda voltariam a ele ocasionalmente em canções como O camelo e o dromedário) e furioso, ainda permeado por múltiplos sentidos, mas não mais ironizando sobre o próprio estilo. O rock pesado dos Titãs era realmente pesado, tanto que foram buscar o produtor do Nirvana Jack Endino para auxiliá-los. E o tempo passou e Arnaldo Antunes decidiu deixar o grupo para poder seguir caminhos artísticos mais variados, e lidou com a poesia concreta (coisa que já fazia desde sempre, aliás), estabeleceu novas parcerias, para finalmente… voltar ao iê iê iê.

Esta é uma blague, claro. Mas tem sua razão de ser. Não se trata de um filho pródigo voltando para casa, mas ainda assim é curioso que palavra tenha retornado, agora completa, à carreira de Arnaldo em seu álbum de 2009. Não é uma reconciliação, pois não houve rompimento explicito, mas a revisita a um lugar conhecido, agora com os olhos da maturidade. E portanto não se trata mais de pastiche, mas do olhar carinhoso sobre o estilo característico da Jovem Guarda e que primava pela ingenuidade. E foi no ritmo da Jovem Guarda, e justamente por isso datado ao envelhecer junto com seus cultores, que Arnaldo decidiu cantar seu próprio envelhecimento.

Há uma ironia aqui, mas não mais voltada ao ritmo, e sim a si mesmo. O iê iê iê, ele próprio, é tratado com todo o carinho, e os clichês do gênero como o coro de uuu, ou a descida de cinco notas do baixo para chegar à tônica são reproduzidos sem a menor intenção de ridicularizá-los, mas antes como uma forma de promover o diálogo do tema da canção com seu estilo da (não mais) Jovem Guarda. Arnaldo, nascido em 1960, mal vivenciou a versão domesticada do rock’n roll no Brasil, mas a toma como símbolo do envelhecimento, admitindo seu caráter datado, para então poder melhor absolvê-la.

Um verso particularmente resume este jogo entre o velho e o novo: Eu quero pôr Rita Pavone / no ringtone do meu celular. A justaposição da estrela italiana do rock pastiche com a o artefato tecnológico ganha imediatamente um caráter anedótico: é possível imaginar perfeitamente o celular do senhor idoso tocando Datemi un martello (esta própria uma versão de If I had a hammer, assim como boa parte do iê iê ie nacional). E por sua vez a afirmação peremptória, ente outras, cantadas por Arnaldo nas notas mais agudas da canção, têm um quê de orgulho implícito, um orgulho da consciência do ridículo, que afinal é apenas humano – e assim, pelo avesso, Envelhecer é uma afirmação de humanidade.

2- O Mundo

O Mundo é uma redação escolar. Ou melhor, uma ambiciosa redação escolar, como se vê pela escolha do tema: nada de minhas férias. Está no álbum inaugural do Karnak, de 1995, e abrindo o encarte a primeira frase que se lê é Karnak não é World Music! Portanto, O mundo não é musica do mundo. Mas é.

Mas é? É difícil, se não impossível, mapear as influências sonoras do Karnak, quase tanto quanto afirmar categoricamente quantos membros tinha a banda, que chegou a incluir uma dançarina do ventre e um cachorro. A mistura não hierárquica de sons de toda parte incluiu a criação de um dialeto fictício, o Davadara, espécie de russo falsificado (ou catalão mentiroso, como descrevem a canção Inalabama, cuja letra é neste, digamos, idioma). O Karnak canta o mundo de forma literal, amontoando sons de todo o mundo. Ainda assim, é compreensível a recusa terminante em ser classificado num gênero que se leva tão a serio como a world music.

Mais apropriado seria talvez dizer que o Karnak faz um pastiche de world music, como os Titãs faziam de iê-iê-iê. Mas não, nem isto, porque, ao invés de refereciar-se ao estilo que abordam, André e o Karnak correm paralelos a ele enquanto o recusam (e no entanto, Os Mulheres Negras, banda anterior de André com Mauricio Pereira, não recusava de forma alguma o recurso do pastiche, antes o explorava tanto quanto os Titãs em sua primeira encarnação). No fim, o que há em comum na relação de ambos, André e Arnaldo, com os estilos com que se relacionam é o fato de evidenciarem os pastiches que eles se tornaram, seja radicalizando este pastiche (fazendo o pastiche do pastiche, por assim dizer), seja fazendo deles o que poderiam e deveriam ser.

Há mais coisas em comum entre André e Arnaldo além das suas iniciais. Ambos compartilham uma escrita de inspiração infantil. A ideia de olhar as coisas pelos olhos da criança de forma a enxergá-las de forma renovada, ou usar o o discurso infantil como licença poética para dizer as coisas mais fundamentais de forma direta, percorre os trabalhos de ambos – Arnaldo chega a fazê-lo literalmente ao publicar o livro Frases do Tomé (seu filho) aos Três Anos. André a usa explicitamente em O mundo, partindo de definições inesperadas e mesmo aparentemente óbvias para delas extrair significações extras, seja por elas mesmas – o mundo, caquinho de vidro – ou pelo contraste entre elas – o mundo é azul lá de cima / o mundo é vermelho na China. Já Arnaldo, pelo próprio tema que aborda ser o oposto de um olhar infantil, tem a oportunidade de utilizar este olhar pelo avesso, e então Envelhecer se torna exatamente uma celebração da capacidade de manter este olhar renovado sobre as coisas, incluindo a si próprio.

Porém, o recurso ao olhar infantil de forma alguma se reduz a uma visão simplificada da realidade, e isto se reflete, no número de detalhes e sutilezas inseridos nos arranjos complexos do Karnak, em alguns casos verdadeiros easter eggs. Ao fundo, um homem fala em várias línguas: todos falamos a mesma língua, a língua do coração! Sutilezas que são também de interpretação: se o canto de André é quase inteiramente desdramatizado (ao contrário da voz de Arnaldo, que apenas por seu timbre já impõe alguma tensão) até o terço final da gravação, ele escolhe justamente o verso o mundo é azul lá de cima para acompanhar musicalmente o movimento ascendente, subindo uma oitava e carregando agora de emoção os últimos versos: o mundo tá muito doente / o homem que mata, o homem que mente.

O Mundo se encerra, após o fade out,  com o som do vento ecoando, sugestão de amplitude tanto de espaço como de tempo ao evocar desertos e antiguidades. Um clichê sem dúvida, mas imediatamente contradito pelo som que realmente encerra a gravação, de uma espécie de canto de pergunta e resposta em, naturalmente, uma língua desconhecida. O inesperado da interrupção se torna cômico e avisa: não leve a sério demais: pode ser um pastiche… Mas o fato é que, enquanto se canta o mundo, o tempo não deixa de ter seus efeitos. Em entrevista à revista digital Gafieiras em 2003, André diz:

Eu não levanto muito bandeiras. Com o Karnak no começo, eu falava,“Todos somos filhos de Deus, vamos nos unir…” Hoje eu falo, “A gente não vai se unir porra nenhuma, mas vamos tentar entender o outro”. Eu já mudei um pouco a cabeça. Acho que isso que é a vida.

No álbum seguinte ao de O Mundo, chamado Universo umbigo, o Karnak incluiu a canção Velho no metrô, com os versos:

E passa tempo passa hora passa ano
E o cabelo branqueando
As rugas na minha cara aparecendo
Talvez esteja envelhecendo

Nosso entendimento do mundo, do tempo e de nós mesmos não para de se expandir e de mudar. Que venha o próximo.

O caminho do meio e o lugar comum

No texto de apresentação de seu álbum de 1975, Lugar Comum, João Donato diz o seguinte:

A origem da primeira música, Lugar Comum, que dá nome ao disco, é um assobio de um homem descendo a canoa no Rio Acre, em Rio Branco. O rio passa bem no meio da cidade. Ao cair da tarde, eu estava lá, pequenininho ainda, com uns sete ou oito anos, não me lembro bem. Passou uma canoa com o cara assobiando, e eu fiquei melancólico pela primeira vez na minha vida, um sentimento até então desconhecido para mim. Fiquei pensando, ‘por que eu fiquei assim?’, mas eu sabia que esse sentimento vinha daquele assobio e eu guardei a melodia.

Tempos depois, o mesmo João contaria em entrevista a Almir Chediak para seu Songbook:

Peguei aquele ita em Belém e havia um artista no navio, o cantor Carlos Galhardo, parecia um artista de cinema. puxa! Eu era garoto, ficava olhando para ele cheio de admiração. Também me lembro que o rádio do navio tocou I’m getting sentimental over you, com a orquestra do Tommy Dorsay, e eu fiquei triste, jururu. Foi a segunda vez que fiquei assim. Na primeira, eu tinha uns oito, nove anos, e tava na beira do rio assobiando um troço assim (assobia a melodia de Lugar Comum). Fiquei meio triste, com aquele negócio na cabeça. Muitos anos depois, Gilberto Gil botou letra naquela melodia, deu o nome de Lugar Comum e o Tárik de Souza considerou uma das 10 obras mais significativas da música brasileira dos últimos tempos. Para você ver a força que tem uma música simples, sertaneja.

Mas peraí, então: quem assobiou, e portanto é o autor original da música, foi o homem na canoa (que nem é citado na segunda versão) ou João Donato? Esta dúvida pode parecer insignificante. Mas ela ilustra um bocado do que é esta canção, cuja autoria o próprio João, numa terceira ocasião, afirmou que é do Acre, nem mais nem menos. Uma criação natural, emanada de um lugar. Um lugar comum.

Lugar Comum já se chamou Índio perdido, antes de ser kentonizada – a expressão que João utiliza quando promove um upgrade harmônico no material a molde do orquestrador americano Stan Kenton (1912-1979), que o influenciou. Este upgrade significa o acréscimo de extensões nos acordes – nonas, décimas primeiras, décimas terceiras, além de acordes de transição e/ou substituições de acordes por outros que mantenham suas funções, mudando sutilmente a sonoridade. No entanto, a estrutura básica da canção, retirados estes acréscimos, é franciscana (veja a harmonia dela aqui). Tárik de Souza, em seu texto de apresentação no Songbook, afirma: Minimalista, avesso à grandiloquência, Donato é um inimigo ferrenho do chichê. Clichê, no dicionário Aurélio, sinônimo de… lugar comum. Haveria aqui então uma contradição?

Lugar Comum é composta sobre três frases musicais. A primeira, de meras duas notas, sobe dois tons com a harmonia indo da tônica à dominante – Beira do mar -, e apenas um tom quando esta volta à tônica- lugar comum. A segunda, com amplitude de três notas, faz o mesmíssimo caminho à dominante – começo do caminhar, e volta à tônica tocada um tom abaixo – pra beira de outro lugar. Repete-se com outra letra, e fim da primeira parte. A segunda tem apenas uma frase, igualmente curta e com a mesma amplitude. Vai sendo repetida quatro vezes, sempre iniciando-se um tom abaixo, indo à subdominante – a água bateu, à antirelativa – o vento soprou, à relativa da dominante – o fogo do sol, à dominante em II/V e volta à tônica na primeira vez – o sol do Senhor – na segunda, fica na dominante preparando a volta ao tema inicial, e a frase da última vez – de onde tudo sai, ao invés de se iniciar um tom abaixo como as outras, começa dois tons abaixo, mantendo o mesmo desenho. Fim da canção, e seu recomeço.

A descrição acima pode parecer extremamente complexa a um não-músico, mas ao contrário, o fato de toda a estrutura caber em um parágrafo e não haver na melodia uma única nota fora da tonalidade é sintomático de sua frugalidade. E aí talvez haja um caminho para explicar melhor a fala de Tárik: não que ele seja inimigo do clichê, mas talvez mais apropriadamente ele não tenha medo do clichê. O que poderia soar como clichê em outras mãos, nas de João Donato soa como o caminho absolutamente natural e mantendo um frescor de coisa nova, como um lugar ao qual, mesmo se voltando sempre, haja sempre algo a descobrir. Resta-nos tentar descobrir como e por quê.

Lugar Comum, o álbum, é o segundo de Donato em que as composições têm letra. Gilberto Gil, autor desta, conta:

A letra de Lugar Comum foi escrita em Itapuã, no verão, estimulada pela sensação boa de estar ali e de ali ser um lugar comum a tanta gente comum – pela idéia de comunidade. Os versos finais reafirmam minha obsessão com o eterno retorno, como sentido yin-yang da realimentação, do embricamento vida-e-morte e da polaridade dos contrários: a coisa de o um dar o dois, o dois dar o três, e o três dar tudo.

O fim da fala de Gil se refere a um trecho do Tao te ching, o Livro do Caminho, obra mestra do taoismo e do zen. Em seu verso 49, ele afirma:

O Tao (o caminho) gera o um
O um gera o dois
O dois gera o três
O três gera as dez-mil-coisas.

O que pode ser pensado assim: de Deus (ou do devir, ou do insondável, dependendo da sua concepção) vem a unidade, que desdobrada, gera a dualidade (como quando Deus separa o que está em cima do que está embaixo ou o mar da terra seca no Genesis). A partir da oposição entre opostos surge o terceiro elemento, formando-se a trindade (outra vez o Cristianismo encontra pontos de contato, mas poder-se-ia pensar em dialética também). E daí desenvolve-se a multiplicidade absoluta.

Estou dando uma enorme volta, mas não é à toa, e aqui começo a retornar. A ideia de uma unidade em meio à multiplicidade norteia esta canção, não apenas a letra de Gil escrita na praia e referencial ao mar, mas a melodia ouvida/composta por João no coração da selva e na beira de um rio. A dicotomia entre estes dois lugares é já uma pista: a melodia que ressoa num lugar ressoa também em outro, mais do que traçar uma ligação, indica uma identidade entre estes dois lugares.

Lugar comum: lugar como outro qualquer; lugar de todos. Dois sentidos diversos, a que se acrescenta o sinônimo de clichê, de fórmula gasta pelo uso. Itapuã, lugar como outro qualquer, lugar de todos. Praia, ponto de partida para chegar a outra praia, outra margem. Margens que também tem o rio, que vai em direção ao mar. Permito-me esta associação de ideias para indicar o quanto há efetivamente uma identidade na diferença de cenários que vai da melodia-rio de Donato à letra-mar de Gil. Em ambas, a constatação de algo subjacente ao lugar, algo que os une. A sensação de melancolia de João é irmã da sensação agradável de Gil, reações individuais ao mesmo reconhecimento do que desafia a ser exprimido – Donato e Gil, cada um por sua vez, aceitaram o desafio.

E em 1995, Arnaldo Antunes, a seu modo, também aceitou, ao gravar Lugar comum em seu álbum Ninguém.

A voz rascante de Arnaldo contrasta fortemente com a suavidade de gravações anteriores. Os harmônicos da guitarra do excelente Edgard Scandurra substituem as extensões dos acordes de Donato. Porém, a canção sobrevive perfeitamente a estas mudanças, e mais ainda, ressurge com renovado interesse. Como um lugar a que se volta, mas se enxerga com outros olhos. Na gravação de Arnaldo, a canção Lugar comum é ela própria o lugar comum a que se volta, que ele visita. E quando Arnaldo consegue, metalinguisticamente, deslocar o significado do lugar de um lugar propriamente dito, percebe-se com mais clareza que o lugar que Gil e Donato visitam também não estão em Itapuã ou no Acre, nem mesmo na memória (pois João nem tem certeza sobre a autoria da melodia), nem sequer é a própria canção.

O lugar é o lugar que se visita ao ouvir a canção. O lugar a que Donato foi ao ouvir o assobio do índio na canoa, a que Gil foi partindo de Itapuã – de suas impressões de Itapuã e suas divagações sobre o Tao. Lugares comuns, lugares em comum, a que se pode chegar por caminhos muito diversos, assim como deste mesmo caminho pode-se ir a diversos lugares. Uma canção como Lugar comum se presta a tornar comum (a todos) um lugar que se pode visitar ao ouvi-la, e impedir que este lugar seja comum (banal), tornando-o especial, acrescendo-lhe significados novos a cada visita. Como a melodia de Donato é sempre nova a cada audição. Como a letra de Gil aponta na direção oposta do Tao te ching, retomando das dez mil coisas ao três, ao dois, a uno, o mar remontando ao rio e este da foz à nascente, no coração da floresta. À origem comum. Cuja percepção pode ser agradável e feliz como a de Gil, melancólica como a de João, e que pode vir de um assobio perdido na mata ou na gravação de uma orquestra feita em outro continente e ouvida como que por acaso numa viagem. Unidade insuspeita, inefável, que se traduz em canção.

Brinde: I’m getting sentimental over you – Tommy Dorsey Orchestra

Melodia de George Bassman, letra de Ned Washington. Arranjo de Noni Bernardi. Frank Sinatra começou como crooner nesta orquestra, cantou esta música com ela e a gravou em 2961, depois da morte de Tommy em 56, no álbum I remember Tommy, em que volta a este repertório.

Poesia concreta e canção

Poesia concreta e canção são uma relação inesperada ou inevitável? Musicar um poema concreto é seu corolário ou sua traição? É possível transpor para a linguagem musical a ordenação espacial que caracteriza esta poesia? Vejamos:

Ideograma: apelo à comunicação não verbal. O poema concreto comunica a própria estrutura: estrutura conteúdo. O poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. A palavra (som, forma visual, carga semântica). Seu problema: um problema de funções relações desse material. Fatores de proximidade e semelhança, psicologia da gestalt. Ritmo: força relacional. O poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma área linguística específica – “verbivocovisual” – que participa das vantagens da comunicação não verbal sem abdicar das virtualidades da palavra. Com o poema concreto ocorre o fenômeno da metacomunicação: coincidência e simultaneidade da comunicação verbal e não verbal, com a nota de que se trata de uma comunicação de formas, de uma estrutura-conteúdo, não da usual comunicação de mensagens (Plano-piloto da poesia concreta, 1958, de Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos)

Por aí se vê que, apesar da noção comum de que a poesia concreta consiste na preparação visual/gráfica do poema apenas, a questão sonora também está incluída, o que poderia consistir numa ponte para a sua… transcrição? tradução? em canção. Mas será por aí?

Pulsar – poema de Augusto de Campos musicado por Caetano Veloso. Animação de Paulo Barreto sobre a apresentação gráfica original do poema.

Ao musicar Pulsar, Caetano adotou uma solução quase literal, numa minicanção de apenas três notas: a mais agudas correspondem à letra E, gravada como uma estrela; as graves à letra O, que lembra o buraco negro – e assim a dupla característica do pulsar é retratada, demais vogais na nota intermediária. Na palavra eco/oco, grafada O com a estrela da letra É, Caetano canta as duas simultaneamente.

Caetano consegue uma aproximação total entre grafia e som. Ainda assim, trata-se de uma leitura. A identificação entre símbolos e sons determinados é uma escolha de caminho entre outras possíveis. Mas este caminho permite estender a metacomunicação, amplia a relação forma/conteúdo (em que ambos se confundem) do gráfico para o sonoro mantendo a correlação de premissas. Isso sem que Pulsar chegue a se configurar como uma canção de formato clássico.

O que – Titãs

A última faixa do álbum Cabeça Dinossauro causou um grande estranhamento, fechando um disco de rock avassalador com algo que não apenas quebrava a fúria punk com um funk, mas também parecia não querer dizer nada. À época, alguns integrantes do grupo foram a uma rádio fazer a promoção do álbum, e o seguinte diálogo surreal teve lugar:

Locutor: Eu acho que entendi o que O que quer dizer. Não é o que não pode ser, não é? Então tem que ser sim!
Titãs: O que?

O que leva a premissa da metalinguagem da poesia concreta ao cúmulo, brincando de significados a cada nova rearrumação das palavras. O que seria organização espacial no papel aqui é arrumação sonora, e novamente o que se ouve não é uma canção convencional, mas mais propriamente uma espécie de poema concreto sonoro (não confundir com música concreta, algo totalmente diferente) em que o canto sem empostação particular e com o reforço da sintaxe gritada reforçando trechos, que se tornou marca registrada dos Titãs, sem nuances interpretativas, direto e cru, se assume como uma forma de recitação extremamente adequada e precisa, como que pregando as palavras no ar, e neste caso em vez de remeter ao punk, parece mais com Kraftwerk, quase maquinal.

O poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. O que, poema atemático, radicaliza esta definição e permite imaginar inúmeras possibilidades de transposição de sua letra/melodia (ambas sendo forma/conteúdo) para o papel. No entanto, o grande desafio da poesia concreta talvez seja exatamente manter esta característica ao ser temática, desatrelando-se, parcialmente que seja, do seu próprio jogo interno para relacionar-se com o mundo, com outras formas artísticas, podendo ser, inclusive, canção. Arnaldo Antunes levou adiante suas experimentações no primeiro álbum solo, Nome:

Nome não – Arnaldo Antunes

Nome não é um poema concreto, como mutos de Arnaldo – e muitos, como este, foram inclusive publicados em livro antes de serem musicados – e é uma canção. Na verdade, uma das poucas deste álbum, que nem é exatamente um álbum, mas um projeto que une as composições musicais com os clips quase indissoluvelmente. Muitos destes clips são autênticos poemas concretos em movimento. Em Nome não, o jogo entre obra/objeto adquire tensão máxima, pois o que se questiona é exatamente esta relação. No clip, vemos escrever-se a palavra cavalo no dorso de um cavalo, seguida de diversas de suas características (couro, por exemplo), até ficar tão sobrecarregado de significados que se torna ilegível; e no fim, literalmente ser lavado de todos os significados, sem por isso perder nenhum deles… enquanto isso, a canção inicia enumerando bichos e cores, para a seguir enumerá-los novamente pelos materiais que podem assumir sua forma – plástico, pelúcia – ou carregá-las em si – tinta, arco-íris.

O canto de Arnaldo suaviza a forma falada/cantada/gritada desenvolvida nos Titãs, sem perder a característica incisiva: uma recitação em que ele localiza os sons no espaço em linhas retas, geométricas. Nome não tem o desenvolvimento lógico de um raciocínio, de que o refrão é o corolário, a conclusão do silogismo:

só os bichos são bichos
só as cores são cores
só os sons são
som são, nome não

onde Arnaldo sintetiza a relação palavra/som/objeto/espaço gráfico, assinalando o que há de intraduzível em cada uma destas instâncias: as coisas são as coisas e sua multidão de características; os sons são – são simplesmente, para além das coisas; os nomes são o que não é nada, e por isso podem intermediar tudo. Nome-ideograma (do grego ιδεω – idéia + γράμμα – caracter, letra, símbolo gráfico utilizado para representar uma palavra ou conceito abstrato; estrutura-conteúdo; silogismo-canção.

E de brinde, um excelente sitio sobre poesia concreta, inclusive com canções.

“Bom dia, comunidade!”

No DVD de Marisa Monte relativo, se não me engano, ao álbum Mais, havia uma cena em que ela, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown estavam sentados de frente uns para os outros compondo. A cena era bem engraçada. Arnaldo com um bloco de anotações, tentando inutilmente colocar ordem na sequência de pensamentos de Carlinhos, que vai fazendo uma livre associação mirabolante, até que começa a batucar com os objetos da mesa e não para mais. Arnaldo cai na risada, tudo sob o olhar atento de Marisa, que quase não chega a se manifestar. Lembro bem que quando assisti esta cena pensei: isto não tem como dar certo.

Ainda bem que não apostei. A química entre os três deu tão certo que acabou originando o álbum Tribalistas, anos depois, um trabalho daqueles em que se tem ao mesmo tempo as características individuais bem claras e um somatório que parece ser, se não superior, ao menos diferente. Estão lá a lógica delirante de Brown que baseia o sentido na rima e inclui palavras em inglês e neologismos; a poética econômica de Arnaldo que privilegia o olhar infantil, e o carinho de Marisa por uma certa produção romântica pós-jovem guarda que chega à beira do brega.

Todas estas características estão presentes do álbum, mas de maneira absolutamente sintética, o que me levou a cometer outro engano, agora quando o ouvi pela primeira vez, em baixo volume numa casa cheia de gente: achei tudo de uma pobreza só. Isto porque as canções são estruturalmente e harmonicamente espartanas, porém cheias de detalhes que incluem citações díspares nas letras e um tremendo detalhamento instrumental – de resto, algo que Arnaldo já exercitara à exaustão nos Titãs.

Mas tudo isto ficou meio de lado graças a toda a badalação que houve no lançamento do álbum. A celebração do encontro dos três músicos festejados foi tão grande que acabou deixando de lado o entendimento de que o álbum… é exatamente isto, apenas e tão somente o festejo de um encontro. A expectativa de uma profundidade do trabalho gerou decepções – como este hilariante criador automático de letra tribalista. As canções simples produzem uma impressão de profundidade pelas associações inesperadas que trazem; num segundo momento (ou terceiro), parecem novamente superficiais pelo fato de estas associações não se revelarem logicamente – e assim sucessivamente; e em muitos casos ficou faltando mais uma escuta que revelasse um outro nível de profundidade, não uma revolução na MPB, uma mudança de paradigma ou a criação de um movimento.

E o mais engraçado é que os próprios integrantes do trio parecem ter previsto esta expectativa irreal, como também, de certa forma, as críticas afirmando  que posariam de mudernos com uma música que na verdade seria tatibitate. Tanto que o fecho do álbum é a canção que ao mesmo tempo as  rebate antecipadamente e resume e explica o próprio álbum.

Tribalismo, a última canção, é uma tiração de sarro já de saída, em que Arnaldo faz uma lista de palavras que evoquem a quantidade de três – o que a própria palavra Tribalistas não faz, com seu falso prefixo. Depois, vem uma série de declarações de princípios ao contrário:

Os tribalistas já não querem ter razão
Não querem ter certeza
Não querem ter juízo nem religião
Os tribalistas já não entram em questão
Não entram em doutrina, em fofoca ou discussão

(Aliás, a afirmação também vale para a abertura do álbum, a saudação que intitula este post, fake de saudação funkeira – mas por outro lado, suscitando a pergunta: de que comunidade ele está falando?) Estas definições negativas desmontam a expectativa de quem espere discussões filosóficas como as que permeiam o trabalho de Arnaldo, culturas tradicionais como as que geraram Brown (OK, nem tão tradicionais) ou ecletismos, modernosos ou não, como o que caracterizou Marisa Monte e fez surgir o epíteto cantora eclética como uma nova categoria da MPB. Os três se recusam a tomar uma posição. Acontece que esta atitude também é uma tomada de posição, e eles sabem disso…

E fechando a letra:

O tribalismo é um anti-movimento
Que vai se desintegrar no próximo momento
O tribalismo pode ser e deve ser o que você quiser
Não tem que fazer nada basta ser o que se é

onde a contradição chega a seu ponto máximo: o Tribalismo é feito para durar apenas um momento, mas em compensação, se só é preciso ser o que se é para fazer parte dele, automaticamente todos estão incluídos, mesmo à revelia – e assim eles brincam com quem achou que eles tinham que revolucionariar a MPB, fazendo um movimento total – e instantâneo. Toda a canção, assim como todo o álbum, é uma coleção de jogos de palavras/conceitos transitando entre a simplicidade escancarada e outras possibilidades de significação escondidas. As melodias são propositalmente grudentas no ouvido como chiclete, as letras são crivadas de trocadilhos e absurdos (Bim, bom, naylon, ou Dois homens e uma mulher / Arnaldo, Carlinhos e Zé), em que o som pode ser mais importante que o sentido da palavra, e se prestar a interpretações múltiplas – e mesmo, por que não, viajandonas. Isto faz o álbum ao mesmo tempo pop e descartável, e um clássico – depende da leitura, variando o tempo todo entre o simples e o aprofundado, num vai e vem em que ambos os extremos são fundamentais, um não funciona sem o outro. Posso estar viajando? Mas acho que era exatamente o que eles queriam.

Pare de dourar a pílula

Em 2002, quando Paulo César de Araújo publicou o livro Eu não sou cachorro não – Música popular cafona e ditadura militar, o brega ainda era brega, ou seja, uma parte considerável, mas não considerada, da produção musical brasileira. O livro, ao ir bastante fundo na pesquisa dos músicos de sucesso popular na década de 70, assinala duas coisas importantes: primeiro, que não é verdade que a música de Benito de Paula, Odair José e Waldick Soriano fosse sinônimo de alienação; e segundo, que havia uma questão social subjacente à separação imposta entre a música destes e a música popular “séria” feita por compositores oriundos de uma classe alta, de formação intelectualizada.

Por sinal que a versão mais aceita para a origem da palavra Brega é a de que teria vindo da Rua Manuel da Nóbrega, do meretrício de Salvador, que teria sido parcialmente apagada. O tipo de música corrente para “embalar os romances de aluguel” teria virado “música da Brega”, e mais tarde, simplesmente brega.

Trecho da coluna de Joaquim Ferreira dos Santos publicada no Globo, semana passada:

De onde veio o baião? Que mistério tem Clarice? Que será da minha vida sem o teu amor? Nega do cabelo duro, qual o pente que te penteia? Ninguém sabe as respostas. Ninguém sabe como se soma dois e dois para dar cinco e formar o paladar musical. Eu sou feliz com o meu. Desde os 9 anos tenho o meu coração de luto, que depois juntei ao coração materno arranjado pelos tropicalistas. Se isso fosse um texto de autoajuda, eu diria. De quantos tipos de música você gostar, melhor. Eu prefiro todas.

Brega é um rótulo para um tipo de música que teve a pouca sorte de surgir depois da bossa-nova. Orestes Barbosa seria brega se escrevesse ” A lua é gema de ovo no copo azul lá do céu” depois de Ronaldo Bôscoli. Como Moisés no Mar Morto, os garotos de Ipanema separaram as águas do grande rio das canções e estabeleceram: algumas são de bom gosto, geralmente as feitas por pessoas brancas de formação universitária ou pessoas pretas de nenhuma formação. Outras, decidiram os bacanas ao balanço da garota que vem e que passa, outras são o fim, o lixo, coisa de pardos-suburbanos-ginasiais que ficaram no meio do caminho, sacolejando no vagão da SuperVia.

Uma vida só (Pare de tomar a pílula) – Odair José, de 1973 (com um clip engraçadinho)

Aliás, esta música foi uma das proibidas pela censura, numa época em que o governo fazia campanhas de controle de natalidade entre as populações pobres – cheirava a desobediência civil, um desafio ao neomalthusianismo que guiava os ideólogos da ditadura.

Só que, desde esta mesma década de 70, o muro deste apartheid começou a apresentar rachaduras, e o maior responsável por elas foi Roberto Carlos. Roberto gravou Antônio Marcos, Márcio Greik, Benito di Paula, Wando, e era habituée da dupla Maurício Duboc / Carlos Colla – e também gravou Dolores Duran, Caetano Veloso, Dorival Caymmi e a dupla Fagner e Belchior. E gravando uns e outros construiu uma sintaxe própria que se soma às suas próprias parcerias com Erasmo, com um fraseado particular e reconhecível à distância. O estrondoso sucesso de Roberto extrapolou classes sociais ao se legitimar em ambas, e tornou-se impossível de ser ignorado.

Quarto de dormir, com Marcelo Jeneci

A canção acima é de 2010, de autoria de Marcelo Jeneci e Arnaldo Antunes. As características da composição de R. & E. estão todas aí, da abordagem da temática amorosa evocativa similar a Detalhes (porém aqui de forma espelhada), nas frases da letra todas com a mesma métrica, algo muito comum nas composições de Roberto, na condução da melodia em uma amplitude pequena, próxima da expressão coloquial, no desenvolvimento do tema escalando a tonalidade num crescendo progressivo de tensão, na sonoridade das cordas – tudo evoca a produção setentista de Roberto, com toda a sua exitosa breguice tecnicamente impecável.

Mas ainda faltava, digamos, reunir a Zona Norte e a Zona Sul, como disse Lulu Santos (falando de outra coisa). E aí temos uma longo percurso musical, que passa pelo Tropicalismo e faz escala na ruptura do BRock dos anos 80 e sua sequência no Manguebeat, aliado a um igualmente longo percurso de mudanças sociais que culminam hoje com a ascenção de uma nova classe média, um acesso maior ao ensino universitário etc. (Tudo isto é sujeito a variadas interpretações e ressalvas. Mas são fatos.) Hoje há condições para que uma síntese entre os opostos de três décadas atrás seja esboçada.

Como as luzes – Cidadão Instigado

Não por coincidência, o álbum Uhuuuu!, de onde saiu esta faixa, também tem a participação de Arnaldo Antunes. Frases desbragadamente românticas como Não sei como existo longe de você são realmente dignas de Odair José. Toda a sonoridade do arranjo vai nesta direção também, pela escolha dos timbres da guitarra, pela levada próxima da Jovem Guarda, pelo thurururu egresso da Jovem Guarda que criou Roberto e alimentou Odair…

Claro que este é apenas mais um indício, um passo pequeno no processo de pazes entre duas canções populares que ficaram apartadas por décadas, desde que a Bossa Nova condenou o bolerão e se tornou a matriz hegemônica para tudo que pudesse se considerado válido em música popular. E também no processo histórico de elaboração de uma identidade nacional, musical, artística, cultural, pelo respeito às classes “menos favorecidas” (para usar o jargão) e pela educação verdadeira, baseada na troca e no aprendizado mútuo, para todas as classes. Pois quando Paulo Cesar de Araujo (autor depois da famosa biografia de Roberto Carlos embargada pelo retratado) enxergou o enfoque político na produção musical chamada cafona ou brega, decididamente, ele não estava vendo miragens.

De virgem a grávida

Marina Lima escreveu no encarte de seu álbum de mesmo nome:

É 1991.
Talvez seja o tempo mais brilhante e atravessado pela noite que esse mundo já viu. Eu tenho 35 anos. Às vezes quando eu digo isso alguém rapidamente responde: “Mas não parece”, como se fosse ruim ter mais de 30 anos. Mas para mim não é assim. Para mim a infância, a adolescência, os 20 anos, eu os vivi até o fim para chegar a esta idade. Eu tenho 35 anos em 1991 e não há nada melhor do que isso.

Em 1987 ela lançara o álbum Virgem, onde há a música de mesmo nome, dela e do irmão Antônio Cícero. Já este de 91 é aberto (depois de uma vinheta de Ela e Eu, de Caetano Veloso) por Grávida, de Arnaldo Antunes. A primeira e obvia leitura é de que Marina traz ao público seu amadurecimento – o que é verdade, e que se aprofundará no álbum seguinte, O Chamado, o mais pessoal de sua carreira. Mas há outras possibilidades.

Uma vez assisti uma entrevista com Caetano Veloso em que as perguntas eram feitas por outras personalidades, músicos, escritores. Herbert Vianna perguntou algo sobre como é que se fazia para conseguir continuar achando motivação e inspiração para compor depois de anos e anos de carreira. Caetano disse que a melhor resposta que conseguia pensar era citando um filósofo (que esqueci totalmente qual é): é preciso gostar das coisas. A partir desta postura emocional é possível escrevê-las e cantá-las, e redescobri-las.

Virgem é uma canção de amor. Na verdade, uma canção sobre o fim de um relacionamento, o que não deixa de ser estranho – uma virgem terminando uma relação? A virgindade não pode ser senão figurada. A letra começa com uma espécie de justificativa:

As coisas não precisam de você
Quem disse que eu tinha de precisar?

A partir daí, o que há é uma lista de lugares da cidade do Rio de Janeiro, e nenhum precisa do amor que se foi. Marina personaliza a cidade, e o que era uma justificativa se torna uma identificação total. Marina é a cidade e suas coisas, a ponto de justapor seu nome com o do Hotel, e afirmar no último verso: o farol da ilha procura agora outros olhos e armadilhas. Ora, como outros olhos? Porque os olhos da Marina agora são o farol.

Grávida também se constrói como uma lista de coisas, criando múltiplas variações inesperadas a partir de uma simples afirmação. Soa surrealista pelas associações absurdas. Não é por acaso. Um dos trabalhos do artista é exatamente procurar as relações inesperadas entre as coisas. Mas é possível ir mais fundo. É possível pensar no artista como alguém que se emprenha de realidade. E o que vai parir depois é sua própria visão particular, que, como nos sonhos, será uma transfiguração desta realidade. Grávida tem em seu arranjo algo desta atmosfera de sonho, com os dedilhados de guitarra e uma cama de teclados que permanecem mesmo sob o solo de sax e as viradas da bateria.

Marina dá à luz – sobre a mesma cidade que encarnou em Virgem – as mais diferentes coisas, de um furacão a uma bolha de sabão, a fúria e a delicadeza, quase em sequencia. Como a realidade é múltipla, a arte também. E o artista aceita esta variedade e a usa a seu favor. Como disse Caetano, o artista gosta das coisas, engravida delas, e depois as ilumina com luzes novas, renovando nosso olhar sobre elas. Ao fim deste processo, está vazio, novamente virgem. E volta novamente seus faróis, à procura de outros olhos e armadilhas.

Virgem

Grávida