Guinga e a última canção do beco

A música popular brasileira hoje está pobre e nivelada por baixo. Pobre de assunto, de letra, de melodia, de harmonia, de arranjo. É aquilo que a indústria, em crise, tentando sobreviver ao naufrágio, produz. É feio. Não é dessa água que a gente vai beber. Não é que as cantoras ou os cantores vão mal, mas é um cenário que não incentiva a busca do conhecimento, da qualidade ou da consciência do que você faz.

A declaração de Mônica Salmaso, dada ao jornal O Globo na entrevista de divulgação de seu álbum Corpo de Baile, causou reações contraditórias, indo do limite do desaforado, ao listar nomes de compositores atuais de qualidade para sugerir a ela, a reclamações mais ou menos genéricas sobre o padrão da música divulgada hoje nos meios de comunicação de massa, em especial as rádios, por décadas o grande meio de divulgação de música no Brasil. A imbricação, na mesma frase, de dois assuntos bem diferentes porém igualmente complexos (a produção composicional da música brasileira e seus padrões estéticos em mutação; e a mutação e o estilhaçamento igualmente acelerados dos meios de veiculação, divulgação e comercialização desta produção), praticamente impediram um consenso, porém geraram debates muito ricos.

Destes, destaco dois. Um, o comentário do cantor e compositor Sérgio Santos, reproduzido no blog Massa Crítica MPB, que, entre muitas ponderações, lembrava algo óbvio, mas que na pressa escapava de muitos: Mônica divulgava um novo trabalho, e este sem dúvida falaria por ela melhor que declarações pinçadas de uma entrevista e transformadas em manchete. E outro, o artigo de Paulo da Costa e Silva em seu blog Questões Musicais. Estes dois comentários me servirão de ponto de partida para tentar levar adiante o entendimento do assunto. E começo seguindo o conselho de Sérgio, para mais à frente aproveitar bem mais de seu artigo e do de Paulo.

Rancho das Sete Cores – de Guinga e Paulo Cesar Pinheiro, com Mônica Salmaso.

O Rancho das sete cores é integrante do álbum de Mônica Salmaso Corpo de Baile, inteiramente voltado para a parceria de Guinga e Paulo César Pinheiro, ocorrida durante as décadas de 1970/80. A única canção deste repertório que obteve alguma difusão foi o Bolero de Satã, gravado por Elis Regina – o que, por algum motivo, não foi suficiente para Guinga angariar a popularidade conseguida por diversos outros autores lançados por ela, como Milton Nascimento, Tim Maia e João Bosco. Durante a década de 1980, Guinga foi gravado em alguns álbuns como o de Miúcha em 89 (Non Sense e Porto de Araújo, ambas gravadas por Mônica neste álbum), teve Senhorinha como tema de novela na voz de Ronnie Von, mas apenas na década de 1990, já desfeita a parceria com Paulo César Pinheiro e iniciada a com Aldir Blanc, Guinga obteve reconhecimento na gravadora Velas, fundada por Ivan Lins e seu parceiro Vitor Martins especialmente para lançar Guinga (lembro de anúncios de seu álbum de estréia na TV em que Ivan dava seu testemunho pessoal) e mais tarde responsável pela aparição nacional de nomes como Lenine e Chico César. Em seus álbuns subsequentes, Guinga deu sua versão para algumas delas, como Saci e Passarinhadeira no segundo álbum, e a própria Porto de Araújo em Casa de Villa. Ilana Volcov e Simone Guimarães também chegaram a gravar algumas (minha crítica do ótimo Bangüê, da Ilana, está aqui). Mas o grosso do repertório permanecia inédito ou próximo disto.

Ou seja, todo o álbum Corpo de Baile é um resgate. Resgate de uma obra específica, uma espécie de elo perdido da canção brasileira, de chamada linha impressionista da composição, que parte da influência de Debussy sobre o jovem Villa-Lobos, deste (não só) sobre Tom Jobim e estes dois estendendo copas frondosas sobre toda uma geração de músicos, dos quais Edu Lobo e Chico Buarque são figuras proeminentes (e Guerra Peixe pelo outro lado). E na ponta destes ramos, Guinga. Mônica, portanto, traz a público um pedaço de um caminho que foi considerado a jóia da coroa da música brasileira, e que hoje enfrenta ao questionamento de ter se transformado em um beco sem saída.

Explico, e simplifico, citando o artigo do Paulo da Costa:

Entendo perfeitamente quando Mônica Salmaso diz que o que tem sido produzido hoje “é feio”: ela tem em mente um critério muito específico, extraído de um conjunto determinado de obras e autores do passado, de uma das tradições musicais brasileiras. Tal tradição inclui e exalta nomes como Villa-Lobos e Tom Jobim na mesma medida em que exclui ou diminui outros. É guiada pela busca de uma beleza lírica, contemplativa, associada com grande controle e definição formais e seu aspecto é clássico: tende mais para o lado do equilíbrio, da clareza e da exatidão.

A tradição específica a que Paulo se refere, para muitos, consiste simplesmente na MPB, ou ao menos no seu núcleo duro, e baseia-se em dois pilares: as conquistas da Bossa-Nova, síntese da modernidade brasileira em harmonia avançada, ritmo e canção, e a extensão de seus paradigmas a todo o Brasil. A Bossa toma o samba, tornado o ritmo brasileiro por excelência pela difusão radiofônica partida do Rio de Janeiro, e o estende do morro para o asfalto. O samba, criado junto com a urbanização da virada do século XX e tendo influenciado inúmeros ritmos regionais, do cateretê ao coco, torna-se também o símbolo da consolidação da urbe e deste novo Brasil. Porém, num segundo passo, os mecanismos e processos utilizados para a criação da Bossa Nova são aplicados também ao coco e ao cateretê, e ao baião e à toada, na formulação de um repertório em que a harmonia estendida, os arranjos sofisticados e a poesia moderna que a integram trouxessem para a cidade também a imensa diversidade cultural brasileira, quase integralmente forjada ao largo da urbe ao longo de mais de quatro séculos.

Esta fusão, ou talvez seja adequado dizer atualização, do imenso e profundo Brasil rural ao paradigma crescente da cidade foi uma das melhores chaves para a compreensão do fenômeno chamado MPB por algumas décadas. E no entanto, este paradigma começou a apresentar fissuras praticamente no seu nascedouro. A primeira delas, podendo ser considerado mãe de todos os outros, sendo a Tropicália, que, ao invés (ou melhor dizendo, ao lado) de recorrer ao manancial do folclore, foi ouvir rock, voltando-se (também) para fora, não (apenas) para dentro. Mas que fique claro que não se trata unicamente de uma disputa entre ritmos autóctones ou alienígenas. Ocorre que os procedimentos de realização musical propostos pelos tropicalistas fugiam à proposta bossanovista que naquele momento tentava cumprir em outra encarnação o projeto de integração nacional de Getúlio Vargas, agora sob as asas militares. A Tropicália queimava etapas buscando uma integração entre urbes, indo a Londres (até mesmo via exílio de Caetano e Gil, tiro no pé dos militares), a Nova Iorque, à música de vanguarda européia e aplicando-as em novas canções, que em vez de trazerem o campo, origem da maioria dos moradores das novas cidades via êxodo (no caso de Brasília, paradigma da urbanização, todos eles), para a cidade, preferia levar a cidade a outras cidades.

Porém, a urbanização do Brasil não parou. Em algum momento no meio da década de 1970, a parcela de população vivendo nas cidades tornou-se maior que a rural. Concomitantemente, uma cultura urbana ia fermentando nas sucessivas e cada vez maiores gerações de jovens nascidos na cidade. A música que trazia as tradições de seus pais e avós ia tornando-se paulatinamente velha, e mesmo seu processo criativo, embora de uma força e uma capacidade de desdobrar-se em novas  produções de altíssima qualidade, ia vendo sua modernidade ser deixada para trás. Indo buscar cada vez mais longe (no tempo ou no espaço) as fontes primeiras de sua criação, e explorando seus processos até os graus extremos, o resultado é uma música progressivamente mais e mais sofisticada, mas também progressivamente saudosista e evocativa daquilo que a motivou, capaz de alcançar níveis artísticos sublimes como a fruta no galho mais alto da árvore, mas sem a perspectiva de ir muito além  por aquele caminho.

(Um parêntesis necessário. A tese que defendo aqui é sem dúvida uma generalização. Eu mesmo posso apontar dezenas de músicos que admiro profundamente e que se encontram exatamente, ou em parte, nesta vertente da música brasileira que descrevo, músicos com obras de uma vitalidade espetacular, o que demonstra que sim, ainda há aonde ir, pois os caminhos da criação são sempre surpreendentes. Da mesma forma, decretar o fim inexorável de nossas tradições rurais seria de uma cegueira sem par, pela sua igualmente insuspeita capacidade de se reinventar, inclusive indo parar na cidade juntamente com seus habitantes. Faço aqui uma leitura propositalmente generalista para me referir a um trabalho em particular, centralizando minha atenção em uma canção particular deste trabalho, e que a meu ver simboliza exemplarmente a tese que defendo. Mas tenho consciência da quantidade de exceções possíveis a esta regra, e no fundo dou graças a Deus por elas. Dito isto, sigamos.)

O Rancho das sete cores é uma canção emblemática em todas as suas escolhas. A começar pela combinação exata entre o ritmo descrito em seu nome, parceiro principal do samba na formação do carnaval carioca, e sua temática. Mônica explica no vídeo da gravação da música que trata-se de uma marcha de um bloco de senhorinhas que ficam relembrando naquele momento de saída do bloco os tempos… a roupa já está meio puída, assim, os pares já não estão mais ali… a descrição de um mundo perdido, a visão fugaz de uma paisagem que se esvanesce aos poucos, mas que se teima em recordar e viver como se ainda ali estivesse. Uma decadência que é exatamente a do gênero marcha (e aí a polissemia da palavra Rancho, referindo-se tanto ao cortejo carnavalesco quanto ao ritmo que o embala, vem a calhar), da qual já falei em um artigo do blog, focando especificamente nas marchinhas de carnaval. Se estas ainda sobrevivem dificilmente nos novos blocos – que no entanto não conseguem emplacar novas composições e recentemente passaram a recorrer à adaptação de quaisquer outros gêneros -,  os ranchos propriamente ditos foram praticamente extintos durante a década de 60 – exatamente o momento de gênese da chamada MPB.

Existe uma analogia óbvia aqui. O Rancho das sete cores, e a obra de Guinga como um todo, inscreve-se como a ponta de lança da corrente da música brasileira que descrevi acima. Mas mais que isto, ele soa como uma microcosmo desta corrente: uma elaboração extremamente refinada de uma manifestação popular, aproximando-a decididamente da música erudita (no sentido de utilizar seus procedimentos). A melodia do Rancho é rebuscada desde suas primeira notas, um intervalo de nona ascendente particularmente difícil. Ao final desde vídeo, Mônica aparece tirando a dúvida de uma passagem com o clarinetista, e mesmo depois que ela se diz segura das notas a melodia que inicia a segunda parte não fica inteiramente nítida, tendendo a ser retificada em direção a uma escala convencional. Não à toa, diversas canções de Guinga, tanto em gravações alheias quanto nas sua próprias, são cantadas dobrando a melodia com o solo do violão do autor, como que explicitando o fato de que são melodias no limite entre os vocal e o instrumental. Este imenso requinte tem um preço, e este é o afastamento, não apenas semântico, mas efetivo, do meio que gerou o gênero desenvolvido. O que significa que, mesmo que os ranchos hoje continuassem populares, seria quase impossível que algum adotasse uma marcha como esta, pela impossibilidade técnica de ser entoada em coro. O Rancho das sete cores é, portanto, em sua reminiscência, um simulacro do original que se perdeu, mas, ao contrário do simulacro diluidor, um simulacro refinado pela memória.

Guinga então, herdeiro de uma tradição elaborada e com raízes fundas no cruzamento da música de concerto com as variadíssimas manifestações musicais populares brasileiras, sintetizadas no formato da canção, juntamente com um dos maiores representantes da condução da palavra lado a lado com a melodia, a transfiguração da fala em música, compôs uma ode ao tempo passado em que se projetava a fusão entre culturas, em que uma integração nacional era vislumbrada ao longe no carnaval, utilizando as formas e técnicas desenvolvidas anos depois, quando esta fusão se deu num pacto que se consolidou como o espelho da música nacional. Porém, por uma razão obscura (que mereceria um outro artigo), esta canção permaneceu desconhecida, até que uma cantora a resgata numa gravação primorosa, em que, em suas próprias palavras, os músicos convocados se espantaram por gravarem todos juntos no estúdio, que nem antigamente! São contínuos resgates de resgates, lembranças de lembranças, refinamentos de refinamentos.

E o Rancho então, e todo este repertório, carrega em si o acúmulo da beleza apolínea destes refinamentos contínuos de que ele se faz continuador. Enquanto este ciclo se repetia, a cidade mudou, o rock chegou, o rap tomou espaço, vanguardas musicais se sucederam e se dissiparam, a MPB tornou-se isto, aquilo, tudo, nada, dividiu-se em mil caminhos a partir de sua cisão inicial da Tropicália, precedente perigoso e riquíssimo que gerou quase infinitas outras possibilidades de desenvolvimento. A vertente impressionista, para lhe dar um nome entre tantos possíveis, não deixa de ter sua faceta moderna, haja vista a parceria posterior de Guinga e Aldir Blanc que lhe deu visibilidade, com um lirismo muito diverso e recheado de referências contemporâneas e urbanas. Mas mesmo esta faceta, de uma forma escancarada ou subreptícia, tira sua imensa força de um passado profundo de chorões – outro gênero datado dos primórdios de nossa urbanização. Por mais que, do ponto de vista dela, outras vertentes possam ser pobres ou feias, não se trata de lhe tirar o valor por isto, e sim regalar-se com seus frutos maduros, com seu vinho envelhecido.

Como João Gilberto, após a revolução da Bossa Nova, progressivamente recorreu a um repertório mais e mais antigo em suas gravações posteriores, a enorme vitalidade do Rancho vem de um passado profundo que a alimenta. Quanto mais profundo o mergulho, mais preciosa a pedra e mais burilada a lapidação. No entanto, o veio original pode estar em vias de se extinguir. Mas enquanto isto não acontece, a vitalidade permanece presente. Ou mudando a metáfora, esta vertente da música brasileira chamada por alguns de MPB pode estar num beco sem saída. Mas como é bonita a vereda que ela percorre.

Lá vem

as pastorinhas do Rancho das Sete cores

Querendo encontrar outra vez seus amores

Que saíam no Resedá

Que dançavam nos Azulões

Cada uma buscando um par

Pra formar os cordões

E eram guardas, garçons, gigolôs,

Estudantes, marujos, ciganos, cantores,

Vestindo pierrôs e arlequins sedutores

Que brincavam no Dois de Ouro

E na Kananga do Japão

Cada uma com seu namoro e acenando com a mão

Até hoje elas tem

Saudade do cordão

 

São colombinas iguais às mimosas cravinas

Trazendo o arco-íris no seu estandarte

Jogando beijos de amor

Aos saudosos pastores da Flor do Abacate

E elas vêm vindo inocentes

Jograis decadentes mas chamando a gente

Pruma fantasia

Prum carnaval de esplendor

E quem não se acabou um dia?

Marginal, fronteiriço, Beradêro

beiradeiro
[De beirada + -eiro.]
Substantivo masculino.
1. Bras. CE V. caipira (1).
2. Bras. PB Pessoa rústica que mora na circunvizinhança das vilas sertanejas.
3. Bras. PE Pequeno comerciante das margens das estradas de ferro.
4. Bras. BA V. barranqueiro.

Já virou lugar comum começar um texto com uma definição do Aurélio. Pouco importa. Esta é uma canção que fala de lugares comuns, em diversas acepções do termo, ao promover um diálogo, quiçá um debate interno, entre vários lugares, partes de um lugar, entre si e com um lugar em particular, e sobre suas fronteiras – suas beiradas.

Beradêro – gravação original Chico Cesar

Pois Beradêro vai pela beirada do repente, e também pela beirada da experimentação concretista. Vai à beira de ser temática, sobrepondo imagens e palavras que vão mudando de significado em relação à anterior e à seguinte: E o beijo que vós me nordestes / Arranha céu da boca paulista. Vai também à beira de ser um retrato do Brasil, mas este retrato se estilhaça na linguagem propositalmente desestruturada, na despretensão pretensiosa de não querer abarcar toda a multiplicidade, mas permanecer fronteiriço. Mas fronteiriço interno, não externo. Pois a fronteira do beiradeiro é a fronteira do sertão, interior, de dentro para dentro.

Beradêro é construída sobre o modo mixolídio, em que a sétima nota abaixada muda toda a hierarquia harmônica, fazendo do acorde dissonante o acorde da tônica, fazendo estável o instável. Beradêro, a bem dizer, poderia ser cantada inteiramente sobre um único acorde maior com sétima menor, sem variações. Mas isto seria um empobrecimento absurdo. E, sendo cantada à capela, sem acompanhamento, ocorre o inverso: na voz de Chico Cesar, sugerem-se variações harmônicas a cada desdobramento melódico.

Chico Cesar acompanhado da banda Cordel do Fogo Encantado

Nesta gravação, acompanhado por um acordeão ao longo da canção propriamente dita e por percussão no improviso / música incidental incorporado à canção, aquilo que era implícito na gravação à capela se torna explícito, o que permanecia à beira se assume em uma de suas possibilidades. Mas apenas uma delas. Porque, ao se materializar nas variações harmônicas escolhidas, negam-se todas as outras que são sugeridas na voz pura de Chico, assim como a escolha rítmica redunda o ritmo da sua voz. Um dos motivos para Beradêro ter sido regravada várias vezes (Mônica Salmaso, Zizi Possi, entre outros) é sem dúvida o número de possibilidades abertas no silêncio do acompanhamento da primeira gravação – e que às vezes foi seguido pelos arranjos minimalistas das outras, como que tentando não negar os múltiplos caminhos de escuta possíveis, não direcioná-los para um apenas pelas escolhas de interpretação dos músicos. E é impressionante então como os silêncios de acompanhamento de outras vozes são também outros silêncios, com significados diversos.

Com Mõnica Salmaso

Por tudo isso, permanecer à beira não significa renunciar a uma escolha que, como toda escolha, é excludente; ao contrário, significa a escolha de recusar a exclusão. Particularmente significativo é o verso E a moça cozendo roupa com a Linha do Equador, em que o marco ideal e abstrato de divisão geográfica é transformado em linha de unir, de juntar, de tecer. Este é o jogo semântico que percorre esta canção, uma linha que faça a ligação entre a Catolé do Rocha natal de Chico e a São Paulo onde ele se estabeleceu.

O meio de caminho entre estes dois pontos é ocupado pela humanização da paisagem: Cadeiras elétricas da baiana (outra vez a transformação de sentido a cada nova palavra cantada) e a incrível inversão dos versos E a cigana analfabeta / Lendo a mão de Paulo Freire, em que saberes em margens diversas se encontram no sertão. Não à toa, as notas mais altas de cada estrofe, indicativas de maior tensão e destaque, são ocupadas por partes do corpo: E a voz da santa dizendo; O olhar vê tons tão sudestes; No peito dos sem peito uma seta; e na última estrofe, o verso São sons de sim, não contudo vai originar a seção final, retirada de todas as gravações alheias mas fundamental, e que merece uma atenção especial.

A repetição do trecho do verso são sons de sim, acompanhada da palavra não em inglês e alemão (no e nein), por si só, já é expressiva o suficiente e nada sutil. Muito diretos também são os versos de origem popular que ele canta logo depois:

Catolé do Rocha / Praça de guerra
Catolé do Rocha / Onde o homem bode berra

Bari bari bari / Tem uma bala no meu corpo
Bari bari bari / E não é bala de coco

O bari bari bari – e aí chegou eu também à beira da interpretação se transformar em exegese – pode ser ouvido como buddy, buddy, buddy – numa tradução livre do inglês, colega, compadre, camarada – como soldados americanos chamam uns aos outros. Transportado para o universo sertanejo, podemos estar falando de cangaço, ou mesmo de episódios mais recentes, mas igualmente sangrentos. Neste ponto, ao traçar o paralelo entre guerras distantes entre si no tempo e no espaço, há, sim uma opção: Os sem amor, os sem teto / Os sem paixão, sem alqueire (atenção para a equiparação entre as duas instâncias), os marginais na acepção estrita da palavra – numa palavra, os beiradeiros, unidos geograficamente na sintaxe de Chico e na cidade grande que os iguala.

E se a opção pelo centro é naturalmente criadora de margens, a opção pela margem, ao contrário, tem o dom de não excluir o centro, mas mediar centros e outras margens. Beradêro radicaliza a característica híbrida da canção popular, sendo em sua forma beira entre folclore e vanguarda, e torna-se capaz por isso mesmo de dialogar com estas formas e subvertê-las:

Chico Cesar com a Jazz Sinfônica, no Kaiser Bock Winter Festival – São Paulo, 1996

A interpretação de Chico com a orquestra é apenas mais uma das muitas possibilidades que Beradero oferece. Mas uma possibilidade que, em vez de excluir as demais, é inclusiva ao confrontar o maracatu rural furioso do refrão final com o arranjo de viés erudito das primeiras partes, ao mesmo tempo explicitando o abismo entre eles e sobrepondo-os na mesma interpretação. Os versos finais Pé quebrado, verso mudo / Grito no hospital da gente, pessimistas numa primeira leitura, contrastam com as possibilidades de diálogo criadas a cada verso de Beradêro, mas a última frase serve como uma definição para ela própria. Ao tornar as beiras entre lugares lugares eles próprios, beiras entre saberes saberes eles próprios, Beradêro faz a ligação entre beiras por sobre abismos, barrancos e precipícios pela linguagem, como um grito que se ouve do outro lado, na outra beira.

Música de povo, folia de reis

Onde a música brasileira é brasileira? O que a diferencia de todas as outras músicas populares, dos cancioneiros dos outros países? Pergunta ainda não, e acho que nunca, inteiramente respondida. Mas não tenho dúvida de que o fato de estar profundamente enraizada numa produção popular é o que lhe dá o imenso fôlego criativo que tem. O fato de suas misturas primordiais se terem dado num nível muito profundo, no sentido de ter ocorrido concomitantemente com diversas fusões étnicas e culturais, e também econômicas e políticas, e de forma quase inconsciente em uma população em grande parte iletrada, ou ao menos despercebida do processo para o qual contribuía. Num segundo momento, aí sim, especialmente depois da Semana da Arte Moderna, foi tomando corpo aos poucos um pensamento de valorização e de estudo destas tradições que haviam se formado, e de sua utilização como base para obras de elaboração menos intuitíva. Mais elaborada? Num determinado sentido, sim, ao se cruzar com técnicas de elaboração diversas. Por outro lado, quem estudou a fundo as chamadas manifestações folclóricas sabe que elas, sendo buriladas no próprio ato da sua realização ao longo de gerações, tem muitas vezes um grau de complexidade igual ou superior ao de composições autorais. Trampolim, de 1998, é o segundo álbum de Mônica Salmaso, mas na verdade é o primeiro, pois o anterior, Afro sambas, feito com o violão de Paulo Bellinati, fixara-se na coleção de canções de Baden Powell e Vinícius de Moraes, e não tivera liberdade na escolha do repertório. Agora, Mônica busca uma espécie de solução de continuidade entre a criação folclórica e sua releitura pelos cancionistas da MPB – o que não deixa de ser o que Baden e Vinícius haviam feito – mas desfazendo a homogeneidade que eles conseguiram e traçando uma trajetória de autores múltiplos entre o que seriam aqueles dois extremos. Assim, no repertório do álbum se vê, ao lado de canções de Guinga (O saci) ou Edu Lobo e Chico Buarque (A permuta dos santos), além de outras canções que tratam de temas folclóricos como o boto ou que fazem reflexões ou alegorias sobre questões da formação da cultura brasileira, há também quatro temas de domínio público, entre eles dois apresentados originalmente por Mestra Virgínia Ô minha gente / Determinei Dona Virgínia de Moraes, das Alagoas (como se diz por lá), foi mestra de Reisado, que é também a Folia de Reis, o Auto dos Congos, o Congado, o Boi-Bumbá, o Bumba-meu-boi, o Guerreiro – no entanto, sob cada um destes nomes se escondem características muito particulares, uma multitude de variações espalhadas por todo o território nacional, daquele que foi pela maior parte da nossa história o principal festejo do Brasil: a comemoração do ciclo natalino, culminando no dia 6 de janeiro, da chegada dos Reis Magos, amalgamada com o motor subjacente da vida de um país que foi agrário pela maior parte de sua existência: o boi. O auto da morte e ressurreição do boi constitui-se a parte central do Reisado, mas este é um espetáculo muito maior, que envolve música, dança, teatro, circo, artes plásticas, e tudo em interação direta com o público, na praça ou entrando-lhe casa adentro. Uma obra de arte total, em proporções que Richard Wagner não chegou a sonhar. Dito assim, parece absurdo que as duas singelas peças gravadas por Mônica, cada uma delas com oito versos, possa ter, ou apenas refletir, o grau de complexidade, seja do grande Auto do Reisado (que dura horas e é apresentado ao longo de dias), seja das composições de Guinga ou Edu Lobo. Senão, vejamos:

Ô minha gente / Eu vi a nuvem girando / Eu vi o vento ventando / Eu vi a terra girar Meu figurá / A Mestra Virgínia é peia / Quem anda na terra alheia / Pisa no chão devagar

e

Determinei subir no vento / Eu fui o país da lua / Arrecebi uma friagem tua / Eu vi a terra diferente Mas o corisco ía passando de repente / Com o corisco eu me abracei / Voltei pra terra, eu aplantei / Aplantei pra nascer semente

Comparando-se a letra e as melodias destas duas pequenas cantigas que narram ambas uma espécie de viagem sideral de sonho, nota-se uma outra coisa em comum. Nas duas, o movimento geral realizado pela letra ao longo das duas estrofes é repetido pela melodia, só que a cada estrofe, e duas vezes ao todo. Em Ô minha gente, a melodia abre em movimento ascendente, enquanto a letra narra a visão da viagem, e termina de volta à nota fundamental, base da escala, juntamente com as palavras terra, na primeira parte, e chão, na segunda. Em Determinei, a melodia já se inicia no agudo e vai novamente baixando aos poucos, enquanto a letra igualmente faz o movimento do céu para a terra, e novamente a fundamental (o chão da melodia) corresponde ao pouso (e neste caso mais ainda, ao aprofundar-se na terra). Mas não é só. Estas duas melodias são construídas sobre o modo mixolídio, em que o sétimo grau da escala, abaixado em meio tom, quebra com a percepção de encerramento vinda da afirmação da tonalidade, comum à maior parte da música a que estamos acostumados. Nas duas, a melodia se inicia apoiada justamente neste sétimo grau, que se torna assim a nota mais distante do chão, afastada propositalmente da nota de repouso, o que dá a sensação de instabilidade, de suspensão no ar – em conformidade absoluta com a descrição de quem sobe no vento e vê a nuvem girando. Mônica Salmaso, ao gravar estas duas músicas e as outras de origem folclórica neste álbum deu a elas o mesmíssimo tratamento instrumental dispensados às composições com autoria definida. Não foram usadas como vinhetas entre as faixas, e sim como os cantos elaborados que são. Mestra Virgínia (como Clementina de Jesus, que recolheu outra cantiga gravada neste álbum, Bate canela) aparece como representante, depositária e construtura de um saber que mal tem como ser medido, criado no correr de tempos e tempos e que dá à música feita no Brasil a profundidade inclusive para se misturar com outras sem perder o senso próprio. Uma arte que para ser ouvida e entendida é preciso ver a terra diferente, através do tempo, ver a terra girar, e ter a paciência de entender o processo que faz nascer uma música que, como árvore, vai tão alto porque tem raízes fundas, porque alguém antes soube aplantar para nascer semente. _______________________________________________________________________________________________________ E já que falamos do ciclo natalino, o Sobre a Canção deseja Boas Festas e um ótimo 2012 para todos.

Em Feitio de Oração

Gilberto Gil, ao longo de sua carreira, sempre oscilou entre álbuns em que explicita sua veia pop e outros em que tende para uma “brasilidade” mais explícita. Em 1998, foi à Noruega gravar, junto com Marluí Miranda, cantora e pesquisadora da música indígena (mas não só indígena) do Brasil, um de seus trabalhos mais ligados diretamente à cultura popular, O Sol de Oslo. E neste álbum Gil gravou Kaô, letra dele sobre melodia do baixista Rodolfo Stroeter.

Kaô – ou melhor, Kawó-Kabiesilé, é a saudação a Xangô, orixá de diversas religiões africanas e brasileiras. A saudação a um orixá tem significados e funções rituais importantes, mas dificilmente seria ouvida da maneira como Gil a faz nesta música.

Kaô, a música, é, em espírito, um ponto de umbanda. Um ponto é formado por uma ou duas quadras, raramente mais, com estrutura simples, em louvor de um orixá, podendo conter em si a saudação, ou contar um pouco de sua história lendária. No ritual, tem o objetivo de evocar as forças correspondentes àquele orixá, sugestionando o médium, que geralmente dança enquanto ele é cantado, induzindo ao transe e movimentando as energias correspondentes para permitir a incorporação.

Mas a interpretação de Kaô não é a de um ponto, que é acompanhado ritmicamente, de forma tradicional, por palmas ou atabaques. Kaô é cantado de forma intimista, reverente, no tom mais suave possível. A atmosfera do arranjo, com teclados etéreos e uma percussão de efeitos e não de marcação, sugere uma introspecção mais próxima de uma missa do que de uma gira. Pela repetição da saudação ao longo de toda a música, tem-se muito mais a impressão de mantra que de ponto.

Mas a estrutura de Kaô não é nem de ponto nem de mantra. Um mantra tem como característica básica a repetição, não apenas da letra, mas também da melodia. A estrutura da música oriental, que esmiuço um pouco mais aqui, implica em repetição, mas também em infinita variação improvisativa em torno do tema original, propositalmente bem simples. A música ocidental, em oposição, tem como característica a introdução de um tema, que é desenvolvido em variações pré-estabelecidas, com mudanças de altura e tom, ornamentações, mudanças de voz etc. As duas primeiras, especialmente, são usadas no formato canção. O motivo inicial é repetido mais agudo, ou mais grave, modulado para um tom vizinho, e estas mudanças pequenas dão ao mesmo tempo a impressão de desenvolvimento e de familiaridade ao ouvinte.

Pois é exatamente o que Gil e Rodolfo fazem. Kaô tem o formato clássico da canção: o tema é apresentado na sequência inicial de 5 obá; é repetido uma terça abaixo, depois desce mais uma terça, sempre no mesmo tom. A segunda estrofe se inicia uma quarta acima da primeira, caracterizando a ida ao tom vizinho da subdominante, agora com adaptações melódicas que provocam súbitos mergulhos da voz; o ciclo de descida por terças se repete nesta nova altura. Mais tarde, a canção vai decisivamente para a subdominante, mas mantém o mesmo tema melódico, agora bem agudo (como num clímax) e com a letra kabiesilé, antes realizar uma ponte de modulação e reafirmar o tema pela última vez, terminando com um salto de quarta ascendente que reforça a volta à tonalidade e termina a canção na nota fundamental.

Então Kaô é canção. Mas é mantra. Mas é ponto de umbanda. Na canção título de seu disco gravado em Oslo, Gil explicita a sincretização Xangô/ Thor, deuses do raio e do trovão, como Tupã, como Zeus. A miscigenação de Gil não é apenas ética, mas se materializa em estética. O resultado é uma prece de pouquíssimas palavras, uma saudação não a um orixá, mas à força transcendente que ele representa, uma mentalização do simbólico.

Kaô – Gilberto Gil – de Gil e Rodolfo Stroeter

Mônica Salmaso também gravou Kaô, em seu álbum Nem 1 Ai. Deixo também a gravação, feita dentro do mesmo espírito mas com diferenças sutis e belas, para quem quiser conferir.

Canções de Lista e suas listas

O podcast zuim estreou em janeiro deste ano com programas conceituais. Um dos primeiros esmiuçou a música Pra Ninguém (letra aqui, programa com a música aqui), de Caetano Veloso, que consiste em uma lista de títulos de outras canções. O sítio então fez o programa tocando as músicas citadas na letra. Deu tão certo que, mais recentemente, voltaram a usar esta tática com Todas Elas Juntas Num Só Ser, de Lenine e Carlos Rennó. Desta vez a letra quilométrica não coube em um programa só, precisaram de cinco! Daí que fiquei cismando com esse negócio de canção de lista, quando é que funciona e quando fica chato.

E quando é que funciona, quando é que fica chato? Confesso que já tive uma certa implicância com canções de lista, por ter a impressão de que cabia qualquer coisa, que não chegavam a lugar nenhum. Isso até me dar conta de que gostava de algumas sem me dar conta de que se encaixavam nessa categoria. Primeiro então pensei que funciona quando o sujeito sabe onde quer chegar, quando ele tem uma finalidade em mente que direciona a lista. É o caso de Passaredo, de Francis Hime e Chico Buarque, por exemplo. Mas aí lembrei de Diariamente, de Nando Reis, que parece não ter fim e não chegar a lugar nenhum, e mesmo assim se torce para continuar, pela curiosidade do jogo de associações.

Então achei que vale a surpresa da enumeração, indo até o limite do absurdo, como Dos Margaritas, dos Paralamas, ou Por Você, do Barão Vermelho. A surpresa não vem apenas do próximo ítem a ser reconhecido ou não, no caso de uma citação, mas também o estratagema e o contexto para ele ser encaixado na música, à maneira dos sambas-enredos, como em Cinema Novo, de Caetano e Gil, que ambiciona contar toda a história do cinema nacional em quatro minutos! A canção pode saber ou não onde quer chegar, mas tem que curtir o trajeto. Um componente bem humorado sempre ajuda, como em Por que que eu não pensei nisso antes?, de Itamar Assumpção  e Façamos (Vamos Amar), de Cole Porter em versão de Carlos Rennó (parece que este gosta de fazer canções de lista mesmo)   E uma lista pode ser também de sonoridades, mais até que de significados, como em Dançapé, de Mário Gil é Rodolfo Stroeter.

Finalmente, há algo que pode tranformar a mera lista em algo maior: é quando o compositor sabe usar a propriedade de acumulação de tensão inerente à repetição de uma fórmula, juntando-a a um acompanhamento crescente, a uma intensificação instrumental ou de interpretação, e assim empolgar, emocionar. Milton Nascimento faz isto  magistralmente em A de Ó (Estamos Chegando), em parceria com Pedro Tierra e Dom Pedro Casaldáliga. Francis e Chico (de novo) também o fazem em E Se…

E nesta brincadeira, acabei fazendo, a meu modo, um podcast também, uma lista de canções de lista. Então, à maneira do zuim, que aceita listas enviadas pelos ouvintes para fazer os próximos programas, aceito também sugestões de canções de lista interessantes. Com link para ouvir então, melhor ainda.

PS. No link de Dançapé, o sítio dá várias versões da música para escolher. Recomendo a penúltima da lista, de Mônica Salmaso.