Zumbi, Zabé, Johnson e Ismael

No início de 2022, Sergio Camargo, presidente da Fundação Palmares, revelou seu desejo de mudar o nome da instituição para Fundação Princesa Isabel. Camargo foi nomeado para este posto por Jair Bolsonaro com o objetivo explícito de destrui-la por dentro, tática também usada pelo fascismo tupiniquim em diversas outras. Porém, neste caso tratava-se de um dos muitos factoides criados apenas para estabelecer polêmicas estéreis que mantenham a oposição alvoroçada. A mudança de nome precisaria ser aprovada pelo Congresso.

Porém, a escolha da polêmica vazia, assim como a loucura de Hamlet, tem seu método. Pois a oposição entre Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon-Duas Sicílias, cognominada A Redentora por ter assinado a também cognominada Lei Áurea, e Zumbi, negro nascido livre, escravizado, tornado líder do maior quilombo das Américas, capturado e assassinado, é um dos símbolos das mudanças trazidas pela luta do movimento negro no Brasil. A passagem da assinatura da Abolição (13 de maio) para a morte de Zumbi (20 de novembro) como principal data comemorativa para estes movimentos (pois são múltiplos) é reflexo de uma postura que não aceita nada que possa ser interpretado como um favor e se apresenta como protagonista da própria história.

Esta introdução não é um mero nariz de cera – gíria antiga pra inícios de textos que não dizem a que vieram, atrasando a entrada no assunto real. No entanto, ela será ainda insuficiente diante do tamanho da divisão que se afigura aqui. Assim, não vejo outra maneira de entrar efetivamente no assunto que não de supetão, e o assunto aqui é, antes de tudo, canção. Portanto, vamos a elas, ou à primeira delas.

Meu coco é a faixa de abertura e também título do álbum de Caetano Veloso lançado em 2021, o primeiro de inéditas após a sua chamada trilogia do rock (álbuns , Zii e Zie e Abraçaço). Nele, Caetano faz um, ou vários, vigorosos libelos contra o fascismo tupiniquim, contrapondo a este uma noção de civilização longamente desenvolvida ao longo de sua obra, em particular a visão de Brasil inclusa nesta civilização. E, após evocar alguns dos nomes fundadores da canção brasileira moderna – Noel, Caymmi, Ary -;e de elencar os nomes de filhos de seus pares e de si mesmo como representantes de um futuro que já se afirma; e de mencionar João Gilberto como um oráculo que centraliza tudo isto e muito mais, Caetano encerra sua canção com o verso: Tudo embuarcará na arca de Zumbi e Zabé. Sendo Zabé uma corruptela, trocado o z por s, para ela, a Princesa Isabel.

Não é a primeira vez que Caetano põe estes nomes lado a lado. A canção 13 de maio, do álbum Noites do Norte, inicia em 2000 a metamorfose do nome, de Isabel a Isabé. E em Feitiço, composta e gravada com Jorge Mautner no álbum conjunto Eu não peço desculpa, de 2002, eles foram ainda um pouco mais longe nos versos Zabé come Zumbi / Zumbi come Zabé, numa letra abertamente tropicalista que louva a capacidade de música brasileira de regurgitar influências, invertendo os versos de Noel Rosa ao referir-se ao funk: um feitiço indecente que solta a gente, e uma resposta crítica de Caetano ao que ele já classificou como versos racistas de Noel. A decisão de colocar lado a lado os dois nomes – e a antropofagia recíproca imposta a eles em Feitiço – assemelham-se a tentar encostar os lados opostos de um imã, e no entanto é o que ele faz, e mais: não apenas encerra a canção com eles, mas o faz direcionando tudo o que disse antes a eles, passando obrigatoriamente por Chico Buarque – e o neologismo emb(u)arcar é o filtro que direciona e unifica o que passa por ele, como um filtro torna potável a água ou a torna café – que possivelmente orienta o carnaval.

Somemos agora a esta discussão outro álbum lançado em 2021, e que traz uma visão radicalmente diferente sobre o assunto que vai se desenhando aqui: Delta Estácio blues, de Juçara Marçal, e sua canção-título.

Rodrigo Campos, co-autor de Delta Estácio Blues contou em seu perfil do Instagram:

Quando recebi o convite, junto com a base construída por Juçara Marçal e Kiko Dinucci, pra compor com eles o que viria a ser a canção “Delta Estácio Blues”, tinha acabado de assistir um documentário sobre Robert Johnson. (…)
Ao mesmo tempo também ressoavam na minha cabeça os papos com Bernardo Oliveira, em que concordávamos sobre ter acontecido uma subestimação da Turma do Estácio como movimento que ajudou a forjar uma identidade cultural brasileira, com a criação da primeira escola de samba, junto com os instrumentos e a estética musical que usamos até hoje. As épocas dessas personagens coincidiam, foram contemporâneos. A música negra se reinventando de formas diferentes e ricas em dois lugares do mundo no mesmo período.
Fiquei cantarolando em cima da base, onde encontrei essa melodia, que conversava com a harmonia do violão do Kiko Dinucci, que me lembrava, talvez pela levada e timbre, também, o violão do Robert Johnson. Tava ali o mote: Robert Johnson não fez trato com o diabo pra passar de medíocre a deus do Delta Mississipi, ele havia encontrado a Turma do Estácio. Numa espécie de vingança “tarantinesca”, imaginei: agora, Bide, Baiaco, Ismael e grande elenco, não tinham fundado, apenas, os alicerces da música brasileira, mas também da música do mundo, com os poderes pagãos por eles conferidos a Robert Johnson.

A canção Delta Estácio blues conta a história deste encontro de forma propositalmente elíptica, como se fazem as formações de mitos, mas com uma conformação de estrutura que inclui uma ponte instrumental entre a segunda e a última estrofe correspondendo ao período misterioso em que Robert Johnson teria desenvolvido sua técnica, e a inclusão de uma cuíca tocada por Paulinho Bicolor – instrumento introduzido no samba a partir de sua origem congo-angolana por João Mina, integrante da Turma do Estácio não mencionado na letra. Já Delta Estácio Blues, o álbum, se passa inteiro neste presente alternativo, bifurcado na virada da década de 1930 – tanto estilisticamente quanto, se ouvirmos com atenção, conceitualmente, até mesmo nas letras. Assim como o livro O Homem do Castelo Alto se passa num presente em que o nazismo venceu a guerra e o Japão governa o território dos EUA, Delta Estácio Blues se passa num Brasil em que Ismael e Johnson se encontraram e mantiveram unida a diáspora. Que mundo teríamos então?

Caetano, em seu livro Verdade Tropical, fala dos dois gigantes da América, EUA e Brasil ao norte e ao sul, e sua difícil convivência. Juçara traça um elo (não tão) perdido entre a música negra dos dois países, não no tempo, mas territorial, aproveitando o elemento mítico para colocar o Brasil em vantagem – pois Robert Johnson vem receber seu poder, receber a unção de Bide, Marçal e Ismael – uma Santíssima Trindade ao avesso, que substitui o Demônio no pacto. Só que, para Caetano, esta reescrita mítica não é necessária, pois o elo perdido para ele foi achado em 1958, por um homem branco de Juazeiro e igualmente com a vantagem para o Brasil, mas possivelmente um outro Brasil. E aqui temos um ponto chave para entender as diferenças entre estes dois trabalhos.

Robert Johnson e João Gilberto têm uma coisa em comum: ambos, de forma algo misteriosa, estabeleceram as bases fundamentais dos estilos que os consagraram. Johnson, do Mississipi Delta Blues, com seu formato consagrado de 12 compassos e cadências harmônicas tão características. E João, da Bossa-Nova, estilização do samba conforme este fora codificado por… Ismael Silva e seus amigos. A centralidade de ambos em virtualmente toda a música produzida em seus respectivos países é inquestionável. E Robert Johnson e João Gilberto têm uma coisa diametralmente diferente entre si: um era negro, outro branco.

João Gilberto não é apenas central na música brasileira em geral, mas em particular na obra de Caetano. No entanto, o que Delta Estácio Blues propõe é outra coisa: uma união dos negros para fazer o que querem fazer, antes que o branco o faça por eles. No universo de Delta Estácio Blues, João Gilberto está obsoleto com trinta anos de antecedência. Nada pessoal. Apenas a retomada de, para usar a expressão consagrada de Caetano, outras diversas linhas evolutivas da música brasileira deixadas de lado, recalcadas, e que retornaram à evidência em tempos relativamente recentes.

Em outro artigo deste blog, tratei de como a promessa de felicidade  – termo sintético usado por Zé Miguel Wisnik, aliás tirado de uma canção de Caetano, Lindeza – feita pela Bossa Nova, ao longo de 60 anos, mostrou-se gradativamente feita de escolhas que não necessariamente incluíam a todos, e como a MPB foi sendo gradativamente esgarçada para tentara suprir estas ausências a partir do surgimento da Tropicália e de Jorge Ben (trato-o aqui sem o Jor, por tratar apenas de sua carreira anterior à mudança), até ter sua planejada aliança de classes rompida simbolicamente por uma delas com a ascensão do rap, centralizada este na obra dos Racionais MCs. Pois, de forma sintética (mas a ser nuançada adiante), pode-se dizer que Caetano insiste no suposto vigor da MPB em promover uma inclusão geral e que esta união seria a arma mais potente contra o fascismo, enquanto Juçara prefere seguir a trilha aberta pelos excluídos e elaborar uma resposta ao fascismo que não caia nos mesmos erros da trilha que, ao fim e ao cabo, permitiu sua ascensão. Delta Estácio Blues reivindica e esboça um novo mito de origem para a música brasileira, nada menos.

Enquanto isso, Caetano segue considerando a MPB a redenção do Brasil, ou dos Brasis. Com Naras, Bethânias e Elis / Faremos mundo feliz / Únicos, vários, iguais são versos que vão ao limiar extremo do passadismo, não estivessem duas destas três tremendas protagonistas da canção brasileira mortas há décadas – e duas delas fossem desafetos inconciliáveis… no entanto Caetano, ao longo de todo o álbum, vai evocando – ou seria mais exato dizer invocando – todas as forças da música contra o fascismo, dos dodecafônicos e vanguardistas Shoenberg, Webern, Cage, passando pela lista de GilGal (a começar pelo título e mencionando Pixinguinha, Benjor, Jorge Veiga, Djavan, Milton Nascimento, Tincoãs e outros), seguindo por nomes brasileiros contemporâneos em Sem samba não dá – Ferrugem, Djonga, Baco Exu do Blues, Glória Groove, Mayara e Maraísa, Marília Mendonça, Duda Beat, Gabriel do Borel – e encerra o álbum inteiro com os nomes do Olodum e de Carlinhos Brown.

O que ele está fazendo é uma arregimentação: Caetano elenca todos, mesmo os ligados ao sertanejo do agronegócio, como antípodas do fascismo, preferindo enxergá-los como continuadores da cultura brasileira. E o que permite esta convocação, planejada nos versos de Não vou deixar: porque eu sei cantar / E sei de alguns que sabem mais / Muito mais, é a sua convicção férrea de que todos são ouvidos pelo filtro poderoso e unificador de João Gilberto e o representante que Caetano elege entre os hoje vivos, Chico Buarque.

Há ainda dois outros níveis de convocação utilizados por Caetano. Um é a listagem de nomes de filhos como Moreno, Zabelê, Amora, Amon, Manhã, dele e de seus companheiros de geração como Gil e Jorge Mautner, tirando proveito do exotismo de cada um (porta aberta por Riroca, não posso deixar de pensar) para assinalar sua fé em uma nova geração, original desde os nomes – embora a noção de uma continuidade por herdeiros tenha não apenas no Brasil um histórico oligárquico deplorável. E o outro consiste em convidar para arranjar suas canções nomes como Thiago Amud e Letieres Leite, músicos de trabalhos arrojados unindo tradição e uma enorme inventividade. Por todas estas características, Meu coco se configura como uma espécie de toque de reunir da música brasileira contra quem a despreza, tendo no entanto nascido e crescido nas sombras do território que ela renunciou a abarcar.

Já Juçara – e Kiko Dinucci, seu fiel escudeiro aqui e responsável pela maior parte da sonoridade de Delta Estácio blues – fazem sua aposta no futuro partindo de pressupostos muito diversos. Ao invés de tentar o resgate do que parece se perder, eles investem no que não chegou a ser, mas mostra hoje muito mais fertilidade. Delta Estácio blues é um álbum de música negra, e também de música eletrônica. Assim como o álbum anterior de Juçara, Encarnado, tomava uma bifurcação na MPB joãogilbertiana ao ter seus arranjos desenvolvidos não a partir dos clássicos blocos de acordes, mas em contrapontos ásperos em que a tensão nunca era suavizada, aqui, lado a lado com a união entre blues e samba narrada na letra da canção título, ocorre uma reivindicação de território – porque a música eletrônica tem raízes negras constantemente esquecidas. Neste sentido, a escolha estética de Juçara e Kiko se mostra tão política quanto a plêiade de nomes recitados por Caetano, e também mais sintética, mais direta e, de certa forma, mais potente na sua intenção de projetar o passado para o futuro.

E aqui voltamos à questão racial, que permaneceu latente por todos estes parágrafos. Dizer que a MPB obliterou o negro é manifestamente uma falácia, e vários nomes listados por Caetano – em particular em Gilgal – evidenciam isto. Porém, sua capacidade de assimilação da cultura negra urbana, para além da cultura popular que inspirou Ponteios e Disparadas, não acompanhou as necessidades destas classes, e, novamente, isto é demostrado desde Jorge Ben, que não por acaso foi acolhido por Caetano e tropicalistas. Assim, a postura de Caetano é bem mais dialética do que pode parecer. O mesmo Caetano que grava Quando Zumbi chegar em seu álbum Noites do Norte, em grande parte dedicado a dissecar a herança escravocrata, em Meu coco canta Você-você, um fado interpretado junto com a cantora portuguesa Carminho e encerrado com versos que de intentam pós-colonialistas ao justaporem:

Ary, Noel Tom e Chico
Amália, blues, tango e rumba
Atabaque e bailarico
Peri, Ceci, Ganga Zumba

Ganga Zumba, é bom lembrar, foi o líder de Palmares anterior a Zumbi, e este tomou seu lugar em rejeição à proposta de Ganga Zumba de fazer um pacto de não agressão com os portugueses, que, em tese, garantiria a liberdade dos quilombolas, mas inseriria o quilombo na administração portuguesa. Zumbi rompeu este pacto, precipitando a guerra. E aqui ele é acrescentado ao índio Peri e à branca Ceci (Ubirajara também é um dos nomes listados em Meu coco), o bom selvagem e a mocinha do romance de José de Alencar, e ao acrescentar um terceiro nome ao amálgama iniciado com referências musicais, acaba idealizando um estranho triângulo amoroso.

A par disso, Caetano se reconhece mulato, como afirma na canção Branquinha (feita para a mulher Paula Lavigne), ou pardo, que é como se identifica para os censos e também na canção de mesmo nome neste álbum – que no entanto é, à maneira enviesada de Caetano, também uma declaração de negritude: Sou pardo e não tardo a sentir-me crescer o pretume. Sua condição de mulato em uma canção se afirma em contraste com uma mulher branca, e em outra contrastando com um homem negro.

Todas estas nuances, ou mesmo contradições internas, são inerentes à persona tropicalista e suas provocações, o que não significa que sejam olvidáveis. Mas o fato é que o Brasil que Caetano defende, em que o racismo e a herança da escravidão sejam rigorosamente banidos, também é um país em que as heranças culturais se amalgamem numa diversidade específica em que todas terão vez, e esta fusão de heranças para ele passa inevitavelmente por João Gilberto. Caetano se permite acrescentar ao legado de João, mas não deixá-lo de lado, e trabalha incessantemente pela ampliação do círculo e pela inclusão de novas vertentes que foi o projeto tropicalista, mas sempre a partir do ponto fulcral, do Big Bang de João. Daí a condição imposta por ele aos novos nomes da música brasileira: Vai chegando que a gente vai chegar / Vê se rola, se tudo vai rolar / Só que sem samba não dá. E para Caetano, sem samba significa sem João.

Este é seu grande trunfo, e também o seu grande limite. Pois não é possível incluir neste projeto utópico quem não acredita nele, e, malgrado os esforços de Caetano, o projeto deu a uma parte expressiva de nossa população escassos motivos para ser encampado por ela. O resultado estético disto é que, embora Caetano consiga dialogar com o universo do rock e mesmo do funk, este último com uma capacidade de canibalizar influências e informações análoga (mas não idêntica) à da Tropicália, além do humor, em compensação, a conversa com o universo do rap e do hip-hop se revela muito mais truncada, malgrado a predileção destes pelo mesmo Jorge Ben acolhido por Caetano. Há exceções: Haiti, dele e de Gil, é uma honrosa, mas um passo que não foi seguido por outros.

Pois Juçara dialoga com esta estética com enorme desenvoltura. Ela reconhece que distinção entre canto e fala se esboroou e isto se reflete em sua interpretação. Um ouvido condicionado pela MPB poderia considerar que o álbum Delta Estácio blues não é um álbum de cantora, em que sua capacidade vocal e interpretativa se destaque. Juçara não está nem aí. Faixas como Oi,Cat e Crash estão fora dos limites da MPB e demonstram uma assimilação do cantofala, mantendo-se no limite entre um e outro, de uma forma que nenhum dos compositores da MPB clássica, Caetano incluído, se atreve a fazer. E é possível aventar que isto só é possível trilhando os caminhos que a MPB não percorreu: os caminhos que ligam misteriosamente Ismael Silva a Robert Johnson, sem nenhuma mediação.

Crash, canção que levou o prêmio de canção do ano da Multishow, é de autoria de Kiko Dinucci com Rodrigo Hayashi, o rapper cronista de São Paulo conhecido artisticamente como Ogi, e consiste na descrição física de uma briga sem praticamente nenhuma informação contextual de quem ou por quê além de o oponente ser da Calábria (ou seja, branco). Trata-se de um modelo de estilização cinematográfica da violência que a Tropicália não deixou de praticar (Olha a faca! já avisava Gil em Domingo no Parque), mas é também um rompimento – mais um – com a noção de que está tudo bem entre as classes. Algo se quebrou e não tem conserto. Juçara reconhece o crash.

Já Caetano, em diversos momentos do álbum (em especial Não vou deixar), vai até onde a melodia estilizada consegue se reaproximar da voz falada, no quase monocórdico verso inicial, equilibrando-se entre dois semitons. Este é seu limite, que quase é ultrapassado no verso Muito mais!, um instante apenas em que o cantofala surge, fluido e dando conta da intensidade que a simples melodia não daria.

Por sinal que Não vou deixar (um funk-maculelê, conforme nota o pesquisador Pedro Bustamante Teixeira nesta ótima entrevista sobre o álbum, mas de contornos muito suavizados) é reveladora da própria fragilidade enquanto manifesto. Caetano conta que ela surge de sua reação diante da televisão que noticiava a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. Ele se viu esbravejando praticamente os versos iniciais: Não vou deixar, não vou deixar!, ao que seu neto pequeno, vendo sua indignação, exclamou: O vovô tá nervoso, que acabou se tornando outro verso. À parte a maestria de Caetano em transformar o episódio em canção, ele não deixa de se tornar bem representativo da impotência de sua própria afirmação. Caetano, uma vez perguntado em uma enquete de jornal sobre o futuro do Brasil, respondeu: O Brasil vai dar certo porque eu quero. O contraste desta declaração no limite da arrogância com a imagem de um senhor, na época com 76 anos, esbravejando diante da TV é também ilustrativo de o quanto o projeto de Brasil sonhado por sua geração se tornou distante, por mais que a canção resultante tenha em si também sua força, rescaldo ainda deste sonho.

Este artigo não tem a menor intenção de tomar partido entre estas duas visões, mas apenas compreendê-las o mais possível – e já é muito! Entre elas há um processo histórico acontecendo, um processo vivo que procura respostas estéticas para problemas muito mais amplos: para além da expulsão do fascismo tupiniquim, as exclusões históricas que nos levaram a ele. Se o modelo da MPB oriundo da Bossa Nova e turbinado pela Tropicália se revela hoje insuficiente para fornecer uma visão de Brasil que abarque e inspire a todos – se é que um dia foi suficiente-, surgem sons novos com a vitalidade que estes movimentos um dia tiveram, e que incorporam em si vozes que não tinham lugar, e com elas timbres, dicções, sintaxes.

Caetano pretendeu, na canção Meu coco, em suas palavras, fazer uma canção que mostrasse o que se passa em minha cuca ao ouvir João falar. Delta Estácio blues, inversamente, trata de abrir novas possibilidades de passado, procurando caminhos inexplorados e deixados para trás. Em ambos, a certeza de que ainda há muitos futuros a construir. E possivelmente o delta aberto para além de Mississipis e Estácios, lá adiante, volte a se encontrar com a antiga promessa de felicidade, mas desta vez incluindo-a em vez de aspirar ser incluído, construindo futuros em que ninguém mais fique para trás.

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Além da já mencionada entrevista de Pedro Teixeira, este texto se hauriu do de Acauam Oliveira O Brasil no coco de Caetano, que antecipou diversas questões tratadas aqui – como ele volta e meia faz, aliás – e da mencionada entrevista de Pedro Bustamante Teixeira. E agradeço também à Juçara Marçal por uma curta mas esclarecedora troca de mensagens.

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Este artigo foi publicado originalmente na revista Uma Canção, editada por Marcos Lacerda e Alexandre Marzullo, a quem agradeço o espaço.

Duas faces de uma canção menor

Em sua autobiografia Rita Lee comenta suscintamente sobre o álbum Tropicália ou Panis et Circencis, mas sem deixar de lhe dar a devida importância:

O disco Tropicália foi minha definitiva desvirginada na neo-MPB – Música Planetária Brasileira. Farra boa quando a gangue se encontrava para escolher quem gravaria o quê. A genial foto da capa foi apenas uma amostra da nossa audácia.

E a este se segue o primeiro álbum da banda, sobre o qual ela conta:

Na cola dos baianos, o destino dos Mutas ganhava novos desafios. Surgiu o convite da gravadora Philips para um primeiro LP solo. Pernas pra que te quero, bora buscar repertório. Gil e Caetano deram o mapa de como fazer letra e música em português, além de nos presentearem com Panis et circences, cuja composição em apenas 15 minutos eu, deslumbrada, testemunhei.

Já Caetano Veloso dedica um grande capítulo de seu Verdade Tropical ao álbum Tropicália ou Panis et circences, e se fala pouco sobre a canção, dedica um bocado de texto a seu erro de latim na escolha do título, e o significado deste erro.

Eu tinha feito e dado para Gil musicar uma letra a que pus o nome de Panis et circencis. Pensei em usar isso como subtítulo do disco que se chamaria – assumindo o título usurpado pela canção à obra de Oiticica como nome geral do movimento (mas, naturalmente, rejeitando o ismo) Tropicália. Não fui verificar (àquela altura nem saberia onde) se a expressão panis et circencis estava na forma latina correta. (…) (Na verdade, a forma em que a expressão se fez famosa é panis et circences, esta última palavra sendo um adjetivo que, no plural, substantiva-se no significado de coisas de circo). Afinal, em meio à iconoclastia tropicalista, a reverência às letras clássicas era a última das exigências a ocorrer a alguém. Mas o reconhecimento íntimo de que a intenção seria a de sobrepor à colagem pop de uma letra de música banal – e agora de um disco de canções pop – uma citação latina (ademais muitíssimo conhecida) cuja correção deveria contribuir para o efeito de contraste, empresta uma dimensão de atroz ridículo ao momento de reflexão devotado à questão. Havia, no entanto, orgulho nesse desleixo. (…) Eu me identificava com essa exibição de desprendimento intelectual. (…) Tropicália ou Panis et circencis (o mau latim – que Décio Pignatari, nos anos 70, já chamava de delicioso provincianismo de vanguarda – agora soa cheio de charme histórico), nosso disco-manifesto, saiu em 68 (…)

Quando o disco ficou pronto, eu exultava com o êxito conceitual, mas o que me parecia um relativo avanço técnico soava como um retrocesso aos ouvidos de Gil. De todo modo, para Zé Agrippino, apenas a faixa dos Mutantes (o tratamento que eles deram à minha parceria com Gil Panis et circencis) saia do limbo do subdesenvolvimento.

Do modo como Caetano se refere a ela, é fácil deduzir que ele considera Panis et circences uma obra menor. Panis et Circences é uma canção feita para preencher um espaço num álbum coletivo que se afigurava a partira da pretensão de Caetano Veloso de fazer um manifesto do movimento insurgente que ele e Gil estabeleciam. É, no entanto, uma canção nascida menor na comparação com outras decisivas neste movimento como Alegria, alegria e Domingo no parque. No entanto, se alguma canção está no lugar certo e na hora certa, é esta. É curioso como uma canção considerada menor por um de seus próprios autores (e provavelmente também por Gil, que só voltou a apresentá-la em shows quase 45 anos depois, em seu Concerto de cordas e máquinas de ritmo) esteja posicionada estrategicamente em dois marcos da música brasileira: como subtítulo do álbum Tropicália e abrindo o primeiro álbum dos Mutantes. Difícil acreditar que o que tenha levado até aí seja o mero acaso e não suas qualidades. No mínimo, trata-se de uma canção que dizia o que precisava ser dito naquele momento. Porém, obra menor que seja, datada ela está muito longe de estar.

Estruturalmente, é mesmo uma canção simples. Sua melodia é singela, uma ascendente que escala o acorde da harmonia triádica para repousar instavelmente na nona, mergulhar e ascender novamente, sucessivamente – a parte dois é basicamente uma variação suavizada deste tema. Traz mesmo em si o espírito de ter sido feita em 15 minutos, em que pese a enorme fluência de Gil para criar melodias. A letra também tem este espírito, escrita à base de associações livres e descrevendo ações de liberdade – panos, leões e tigres soltos, plantas crescendo e buscando o sol, mesmo o assassinato do amor como uma libertação -, e a liberdade destas associações serve de contraste com a imagem das pessoas na sala de jantar. Se esta imagem domina a canção, o seu contraste é o que a estrutura esteticamente, permitindo toda a liberdade literária das estrofes, com a amarra segura dos versos finais. Paradoxalmente, são estes versos que, ancorando as estrofes, dão coesão à composição.

Mas é útil ouvir a gravação dos Mutantes antes de prosseguirmos.

Nem o álbum Tropicália nem o dos Mutantes, ambos de 1968, trazem créditos de músicos, embora evidentemente saiba-se que arranjo de Panis et Circences (usarei esta grafia, preferida pelos autores e por Rita) é de Rogério Duprat e que os integrantes do grupo se encarregam da maior parte da instrumentação. A versão do álbum dos Mutantes (que traria também do Tropicália as canções Batmacumba e Baby, estas em versões diferentes por terem sido gravadas por outras pessoas no álbum) é aproveitada quase ipse literis, com pouquíssimas diferenças, sendo a mais notável a inserção, como abertura, do prefixo do Repórter Esso, o consagrado programa jornalístico do rádio (correspondente nos dias atuais a usar o prefixo do Jornal Nacional ou do Plantão da Globo), cortado abruptamente para entrada do arranjo original. Como Panis et circences é a primeira faixa, a salva de metais característica do informativo serve como introdução também do álbum e da própria banda, anunciando sua chegada com pompa e alarde. Porém, o corte no meio da cadência e sua substituição pelo andamento mais lento da introdução original como que desmoralizam esta pompa. Este recurso do corte sonoro inesperado, usado de forma algo humorística, se repetirá em outras canções dos Mutantes e nesta própria mais adiante.

O andamento escolhido pelos Mutantes para sua gravação, de um andante marcado, imprime um tom entre o majestoso e o jocoso à canção, acrescido do arranjo de Rogério Duprat com os metais graves marcando o contratempo como passos pesados e desajeitados. Tudo neste arranjo, desde o trompete épico à maneira de Penny Lane dos Beatles (provável influência para os autores), à flauta quase primaveril da segunda parte, têm implícito algo de zombeteiro à linguagem que apresentam.

Panis et circences não tem propriamente um refrão, e sim um formato AAB, mas com a particularidade de que tanto as duas estrofes A quanto a B terminam nos mesmos versos: Mas as pessoas da sala de jantar / estão ocupadas em nascer / e morrer. Para além do contraste já mencionado acima, um elemento a mais foi introduzido na gravação dos Mutantes, sem que se saiba se já fazia parte da composição de Caetano e Gil: a repetição da primeira frase. As pessoas da sala de jantar / são as pessoas da sala de jantar. Este proto-refrão passa a ter a duplicata da mesma expressão no sujeito e no complemento, igualando as pessoas da sala de jantar a elas mesmas, trazendo implícito o tom idiomático de um sinal de desânimo com o que elas são, algo típico do português coloquial e quase impossível de traduzir em outros termos.

Em vários aspectos de sua gravação, os Mutantes dizem mata onde Caetano e Gil dizem esfola, reforçando até extremos em termos sonoros o que é sugerido pela composição. Este é um dos casos em que isto se dá: Se nas primeiras duas estrofes (partes A) eles executam os versos finais como (provavelmente) foram compostos, sem repetições, na terceira vez (a parte B), os mesmos versos são entoados quatro vezes, numa reiteração circular que se aproxima perigosamente de perder o sentido, como se a autossuficiência de ser as pessoas da sala de jantar bastasse por si, numa espécie de carteirada existencial.

A extensão da estrofe pela repetição do penúltimo verso, como se sua estrutura fosse modular, prepara o ouvinte para a passagem seguinte. Após um efeito de estúdio em que a velocidade da gravação é diminuída até parar, como se tudo se derretesse (os equipamentos, foram efetivamente desligados), o verso-chave da canção passa a ser repetido com uma melodia mais linear, acelerando contínua e desvairadamente. São 10 repetições tautológicas até na décima primeira passar-se a um aaaaaaaah que pode ser de mergulho na alucinação ou no desespero, e que é – novamente – cortado de supetão para a entrada em cena dos próprios protagonistas destes versos, não mais musicalmente, mas em som ambiente.

Pois deste corte caímos em plena sala de jantar e sua ambiência sonora completa – mastigações, tilintar de copos e talheres, pequenas falas de obviedades e, ao fundo, Danúbio Azul, de Strauss, provavelmente a mais conhecida valsa da história e trilha sonora dos salões mais cafonas, símbolo supremo do kitsch. Interessante notar que esta mesma valsa seria usada – e recuperada em sua beleza original – por Stanley Kubrick em seu filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço, também de 1968 e que serviria por sua vez como inspiração parcial para a canção 2001, de Tom Zé e Rita Lee, que seria gravada pelos Mutantes em seu álbum seguinte e inclusive parodiaria outra peça usada por Kubrick em seu filme – mas agora a nada kitsch Lux Aeterna, de György Ligeti (analiso esta canção em outro artigo deste blog).

O recurso de simplesmente interromper a música para a inserção dos sons que são, em última instância ou em espírito, descritos pela canção, é outro dos estratagemas usados amiúde pelos Mutantes, e que tanto pode ser interpretado como uma incursão na música de vanguarda quanto uma literalização que, afinal, corre o risco de suplantar e dispensar a linguagem musical. Também não seria a última vez em que recorreriam a este artifício: sua gravação de Chão de Estrelas, o clássico seresteiro, traria para dentro da gravação tiros, helicópteros, sons circences, escorregões e muito mais, espinafrando com a canção até desmoralizá-la. Porém, se em Chão de Estrelas estas sonoplastias são sobrepostas ao arranjo, aqui o arranjo desaparece, e o que há é só e somente só a sala de jantar, sem mais nada. Estamos entre o arrojo absoluto e a obviedade absoluta. Os Mutantes, em sua primeira gravação, vão ao extremo da linguagem musical até a deixarem de lado, ou para trás.

Já o grupo vocal Boca Livre, ao regravar Panis et circences em 1983, tomou caminho radicalmente diferente.

Panis et circences também abre o quarto álbum do Boca Livre, mas as coincidências param por aqui. O contraste entre estas duas visões de uma mesma composição é tão gigantesco que custa crer que seja a mesma. Tudo que para os Mutantes era ácido, para o Boca Livre é delicado. Tudo que ia ao limite da música para aqueles, para estes é estritamente musical e se basta. O arranjo de Maurício Maestro (outra vez a ficha técnica é escassa, mas sem dúvida ele toca o baixo, Lourenço Baeta faz o solo de flauta e provavelmente David Tygel uma viola caipira ou violão) é regular como um relógio, impressão reforçada pelos numerosos staccatos em diversos instrumentos, dos violões e baixo às cordas. Quiçá emulando o tique-taque do relógio da sala de jantar, como um símbolo do tempo passando inutilmente e se esvaindo em vão para estas pessoas ocupadas em nascer e morrer… regularidade que chega ao ponto de dispensar as repetições do proto-refrão que são uma das marcas da primeira gravação. Em vez disso, na do Boca o verso é sempre cantado duas vezes, em todas as suas aparições, inclusive na última, em que parece suplicar para ser bisado e bisado…

Entretanto, a maior diferença entre estas duas visões da mesma canção, e que possivelmente é a determinante de todas as demais decisões tomadas por estes dois grupos de músicos, é a de qual é o eu lírico da canção. Pois, se o Boca Livre assume o ponto de vista objetivo, do narrador da letra em primeira pessoa que se apresenta logo no primeiro verso em oposição às pessoas na sala de jantar, os Mutantes escolhem o caminho mais sinuoso e subjetivo, e, ao criarem uma interpretação que reforça a cada passo o que é dito na letra, embora refiram-se às pessoas na sala de jantar na terceira pessoa (como está na letra, afinal), cantam assumindo em boa parte suas personas, de forma totalmente contraditória – e no entanto esta contradição enriquece a canção por seu próprio caráter. Se o registro interpretativo do Boca Livre é o de alguém que recusa-se a compactuar com elas, o dos Mutantes parece ser, desde o arrastado da introdução até o derretimento sonoro do efeito já descrito, o de alguém que até tenta escapar mentalmente da mesmice, da mediocridade, mas é puxado de volta para ela por seus pares, por seu ambiente, por algo de que não consegue escapar.

Desta diferença é possível derivar todas as características de uma e outra gravação. A dos Mutantes é uma montagem de estúdio cheia de artificialidades; a do Boca Livre é de músicos tocando junto. A atmosfera da gravação dos Mutantes é sufocante, dentro da sala de jantar possivelmente esfumaçada; a do Boca é uma atmosfera de ao ar livre, até otimista, de quem dá graças a Deus por não estar preso na sala de jantar. E o ápice da versão dos Mutantes se dá justamente quando a canção é abandonada e, não tendo mais as amarras da letra, eles assumem totalmente o discurso das pessoas da sala de jantar (Passa o sal, por favor), tornam-se elas – e não quase vestígio da paródia, do exagero que caracteriza investidas posteriores do grupo. O que há é o som ambiente de um jantar, nada menos. Neste momento os Mutantes efetivamente mutam, assumem a persona dos retratados pela canção, e ao fazerem isto, o eu lírico descrito por eles submerge na pequenez de que não conseguiu escapar, a canção é derrotada pelas pessoas da sala de jantar, e esta derrota é aquilo que leva a mensagem da canção até o ouvinte.

Enquanto isso, na versão do Boca Livre, a canção é a grande vitoriosa. Até porque, sem utilizar artifícios que não sejam estritamente musicais, o grupo cuida de apresentar a canção e permitir que ela fale por si. Pode-se dizer que os Mutantes reforçam à exaustão o que a canção diz, mas não necessariamente a própria canção, enquanto o Boca Livre reforça a canção, e assim também reforça o que ela diz. A versão do Boca Livre pode ser tida, em uma primeira instância, como conservadora, e certamente o caminho escolhido por ela é menos surpreendente que o dos Mutantes ao seguir em linha reta o que a composição indicava. Mas sua busca de expressividade consegue resultados igualmente excepcionais.

Em certo sentido, os Mutantes, apesar de terem ficado deslumbrados ao assistirem o processo de feitura da canção, a consideraram insuficiente para dizer por si o que tinha para dizer, e por isso a abarrotaram de efeitos, repetições e interrupções até chegarem a anulá-la e substitui-la pelo figurativismo puro, ao passo que o Boca Livre preferiu confiar nela e investiu em sua estrutura, em seus elementos constituintes mais elementares – melodia, ritmo, harmonia, letra e suas relações entre si. Neste sentido, são lados da mesma moeda. Certo é que ambos extraíram, cada um a seu modo, de uma a canção menor o suprassumo do que ela possuía para oferecer. E, ouvindo os resultados destas explorações, não se pode dizer que se trate de uma canção assim tão menor.

João de novo e sempre novo

Lá vem ele falar do João de novo. Verdade, e se reclamarem vai ter um blog só para falar de João. A centralidade de João Gilberto na música brasileira não se dissipa facilmente. A forma absurdamente sintética que ele encontrou de conciliar o formato da composição tradicional com as novas tecnologias de gravação e a modernidade brasileira gerou a partir de si tudo o que se convencionou chamar MPB, e se esta hoje se dissipa no ar, esgarçada em seus limites até se tornar indistinta ao absorver outras e outras influências, ainda assim sempre se pode voltar ao João para entender como este processo se iniciou. Mesmo em trabalhos aparentemente díspares das últimas décadas há o DNA de João. Los Hermanos tem João, Metá Metá tem João (aliás, bom assunto para outro texto). Afora isso, nesses tempos em que o Brasil está no redemoinho é que é ainda mais necessário falar de João. Então falemos de João.

Meu descobrimento particular do João se deu ouvindo o álbum Brasil, de 1981, gravado com Caetano Veloso e Gilberto Gil (Bethânia participa da faixa No tabuleiro da baiana). Brasil é um curso avançado de Bossa-nova, de canção e de… Brasil, em que João é o professor, Caetano e Gil os alunos e nós todos também alunos ouvintes. O formato escolhido por João é mesmo muito próximo ao de uma aula. Boa parte das músicas, em especial Aquarela do Brasil, Milagre e Bahia com H, ganham a mesma estrutura: após uma abertura a três vozes uníssonas, os três se alternam repetindo os mesmos trechos, como um professor dando a lição e em seguida os exercícios de fixação. Para os discípulos, uma aula prática única, e para nós uma oportunidade também única de, didaticamente, entender o que João faz com o que escolhe cantar.

E o que ocorre na escuta desta alternância? Ocorre o entendimento de um dos segredos de João, um ensinamento zen: a voz de João pode mais quanto menos se dá importância. Ela se torna o veículo absoluto da canção, desaparece sob a música para que esta surja em todo seu esplendor. Em tempos de vozes exuberantes e programas de calouros repaginados em que a firula e o grito são capazes de desfigurar completamente uma composição, não custa entender porque muitos dos fãs de discípulos confessos de João afirmam não o suportar, com sua cara de escriturário e sua interpretação sem nenhum excesso. Esta é a aula de João, de uma modéstia absoluta: que o intérprete desapareça para que a canção se desvele, e só assim o intérprete estará realmente fazendo o seu trabalho.

E esta lição vem em ondas sucessivas na audição de Brasil. A cada faixa, Caetano e Gil esforçam-se para seguir o preceito do mestre – pouca voz, pouca potência, nenhuma variação ou improvisação melódica (mas sim na divisão rítmica, sempre dialogando intimamente com a batida do violão), apenas a canção em si, com graus diferentes de êxito. Ao ouvir Caetano, Percebe-se que algo sobra ali de sua identidade pessoal. Caetano escolhe ênfases, deixa sua voz personalíssima conduzir a música e não ser conduzida. O resultado é belo, mas não é completamente a canção, é a canção segundo Caetano – o que pode ser interessantíssimo, mas não é a lição, até porque, para que haja a canção segundo Caetano, é preciso antes o entendimento da canção.

Gil vem em seguida, e a diferença com Caetano é nítida. O próprio Caetano não se cansa de destacar a imensa musicalidade de Gil, superior à sua própria. Gil aproxima-se do âmago da canção em sua leitura, deixando a voz branca e sem vibrato ser atravessada por ela.  Pode parecer que esta é a lição aprendida. Mas então é a vez de João. E aí é que a lição acontece. Pois com ele não há nada que não seja significação da canção em si. a relação letra/melodia/harmonia/ritmo em seu estado mais puro. O ouvido tem a impressão de estar ouvindo a canção tornada cristalina, como ela sempre quis soar. Não há interferência de uma outra personalidade, não porque João não tenha personalidade, mas porque ele humildemente se retira. E o seu modo particular de se retirar é sua grande lição, e é quando o ensinamento zen então se completa. Porque quando João se retira, ouve-se somente a canção, e quando ouve-se somente a canção, é aí que mais se ouve João. E ouvindo de novo estas gravações, no momento por que passa o país, me convenço de novo que, mais que nunca, é preciso ouvir João, para lembrarmos quem somos e o que é verdadeiramente o Brasil.

 

Ora (lereis) ouvir estrelas

Ao lançar quase simultaneamente um livro e um disco, em 1997, Caetano Veloso decidiu chamar o disco de Livro, e por muito pouco não inverteu a equação batizando o livro de Disco – acabou chamando-se Verdade Tropical. Seria apenas uma brincadeira, já que não havia tão grande  correspondência entre as duas obras. Mas a ligação mais profunda entre elas acabou se materializando na canção Livros.

Porém, embora Livros não deixe de citar de forma indireta o fato de seu autor ter escrito um, sua forma remete menos à literatura propriamente e mais à própria forma canção. E esta prioridade se materializa na frase escolhida para sua espinha dorsal: tropeçava nos astros desastrada, uma citação paródica do verso chave da canção de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, Chão de Estrelas.

A última estrofe de Chão de Estrelas é uma página lírica exemplar da produção pré-bossa nova que adiante passou a ser vista de forma algo caricato.

A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros, distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão

A beleza da imagem das estrelas representadas no chão do barraco apresenta uma visão idílica da favela e romantiza a pobreza de uma forma que se tornou inaceitável alguns anos depois, e que chegou a ser abertamente ridicularizada pelos Mutantes. Em 1970, o grupo de rock fez uma versão picaresca do clássico em que estes versos eram acompanhados do som de um helicóptero e de tiros, trazendo os versos a uma literalidade nem um pouco glamourosa.

O caminho escolhido por Caetano tem relação com este, mas traz desde o princípio um certo carinho que os Mutantes não tiveram em sua impiedosa gravação, e que também é típico dele. O verso inicial de Livros traz uma aliteração de encontros consonantais que evoca os esbarrões de uma pessoa desajeitada, numa divisão rítmica acompanhando o baque do maracatu que, embora cantada suavemente, carrega implícita o andar aos arranques. Além disso, traz na palavra desastrada o sentido duplo da pessoa sem luz própria, sem estrela. E como se não bastasse, a melodia de apenas três notas repete a de Chão de estrelas para o verso original, mas num contexto harmônico diferente – outro procedimento recorrente de Caetano. No caso mais extremo, toda uma estrofe de Você já foi à Bahia, de Caymmi, foi trazida para dentro da sua Terra, mantendo letra e melodia originais, mas encaixando-as inteiras num único acorde de sol maior que sustenta a canção, numa suspensão com relação à harmonia que se soma ao tema da Terra vista do espaço e dá aos versos uma transcendência já esboçada em Caymmi, mas aqui escancarada.

Segue-se a letra, e logo após Caetano mergulha repentinamente da visão idílica de Chão de estrelas (ou de sua visão destes versos, simultaneamente zombeteira e carinhosa ao manter sua associação à mulher amada) para um conceito físico complexo como o de corpo negro – que no entanto não está aí por acaso. (O Corpo negro é um objeto ideal que absorve toda a radiação dirigida a ele, podendo no entanto liberar a sua própria – o que significa que sua radiação não será influenciada por nada externo. Em 1993, conseguiu-se medir a radiação cósmica de fundo, que é fundamentalmente o som do Big Bang, ou seja, a reverberação eletromagnética da explosão que originou o Universo e que ainda ressoa. A comparação entre esta radiação e a de um corpo negro forneceu uma das comprovações de que o Universo está em expansão.) A mudança abrupta de registro nos versos obedece a um esquema de relações internas. A noção astrofísica de expansão do universo encontra paralelismo com o contraste entre uma cidade tão pequena que não tem livraria e a expansão pessoal do universo descrita textualmente. Assim, o procedimento estético da estrofe espelha e exemplifica o que é dito.

Na primeira repetição do verso de Chão de Estrelas, Caetano não se contenta e continua: sem saber que a ventura… seguindo adiante a letra e também o padrão melódico da canção original, porém tomando no meio do caminho outra virada brusca, ao como que anular a palavra ventura acrescentando seu antônimo – trazendo à memória a dor e a delícia de ser o que é, de sua Dom de Iludir. Em seguida, retoma a exploração do verso, porém desdobrando a palavra vida de Chão de estrelas em esta estrada que leva o nada ao nada. E o último verso, são livros e o luar contra a cultura (em que a palavra luar ocupa exatamente a mesma posição que no verso de Chão de Estrelas), por sua vez dialoga diretamente com Alegria, Alegria: caminhando contra o vento / sem lenço, sem documento.

A substituição simbólica lenço / luar e documento / livros é, no entanto, seguida por outra inversão de sentido, pois aqui eles não são dispensados, ao contrário, tornam-se dois âmbitos de expansão (a cabrocha, elemento complementar da tríade, segue implícita no interlocutor a quem a canção se dirige). A chave da relação contra o vento/ contra a cultura resolve em si a estranheza causada pelo segundo verso: livros contra a cultura? Porém, os versos de Alegria, alegria são um dístico que acompanha e de certa forma descreve a trajetória independente de Caetano, sua recusa em assumir compromisso com saberes institucionalizados, e talvez seja a ponte mais sólida entre esta canção e o livro em que ele revisa esta trajetória.

Tu pisava nos astros distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar, o violão

Tropeçava nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Desta estrada que leva o nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura

Caetano, portanto, glosa os versos de Chão de Estrelas ampliando-lhes o alcance e seguindo não apenas indicações métricas, mas também melódicas.

Na segunda parte da canção, Caetano dedica-se a uma reflexão sobre o livro como objeto em si, mas que não escapa de uma ironia fina, que já começa na pouco lisonjeira comparação entre livros e cigarros, como se ambos fossem vícios mais ou menos elegantes. Se a primeira se dedica a traçar o paralelo entre uma materialidade quase abstrata como o espaço sideral e a subjetividade muito próxima da frase, o conceito, o enredo, o verso, agora ele passa a desconstruir o livro e nossa relação com ele. Ao listar de forma meio surrealista os lugares que podem servir para o cultivo de livros – aquários, estantes, gaiolas, fogueiras – o discurso transita entre o material e o simbólico: se a gaiola remete à prisão de ideias (ou ideias que sejam prisões?), a fogueira traz uma significação dolorosamente literal. Mas mesmo nos outros dois casos, o cultivo do objeto livro não necessariamente se traduz em germinação, antes sua presença em aquários ou nas estantes tradicionais aqui soa estática, estéril. As ideias subsequentes vêm quase por livre associação, num crescendo depreciativo: a inutilidade insinuada no verso anterior conduz a defenestrá-los, antes que eles nos enlouqueçam. O quase ode aos livros da primeira estrofe desmoronou.

Mas o ápice da desconstrução vem em seguida. Ou­, o que é muito pior, por odiarmo-los / Podemos simplesmente escrever um. A noção de se escrever  um livro por odiar os livros inverte a equação de lançar mundos no mundo, é a sua negação absoluta. No entanto, ambos são fundamentalmente o mesmo, Ulysses e Mein kampf, ou pode ser simultaneamente os dois, como o chamado livro dos livros, a Bíblia, dependendo não apenas de quem o escreve, mas de quem o lê. Pois os livros não são alheios a nós, são antes nossos espelhos. Caetano, além da auto-ironia de atribuir de passagem a si mesmo ter recém-feito o que descreve (Encher de vãs palavras muitas páginas / E de mais confusão as prateleiras) não perde de vista que a confusão nas prateleiras é a mesma nossa.

Livros é uma canção de ódio e amor, e isto se reflete em suas diversas escolhas. A principal delas: por que, ao falar de livros, Caetano escolhe para seu interlocutor principal não um livro, mas outra canção, uma antiga canção? Por que, ao dedicar-se tratar da materialidade do objeto livro como condutor, como mesmo materializador de mensagem e linguagem, escolheu como contracanto a seu discurso uma forma que só faz sentido cantada, e não escrita? Pois a canção popular tem algo que desafia o registro escrito muito mais até que a música de concerto, esta escrita antes da execução, aquela às vezes nunca escrita. Caetano nega seu objeto ao afirmá-lo, e Livros transita entre o saber erudito e o popular, o literário e o musical – como aliás toda canção afinal. E, sem dúvida, sobretudo o verso é a sua conexão escolhida entre estes dois mundos. Assim como Chão de Estrelas, Livros é escrita em decassílabos martelo, uma variação do heroico usado por Camões nos Lusíadas, em que as acentuações ocorrem na terceira, sexta e décima sílaba (o heroico troca a terceira pela segunda), métrica de inúmeras formas poéticas clássicas como o soneto e bastante raro em canção popular, como o próprio Silvio Caldas explica ao contar a história da composição.

Sua melodia é muito próxima da recitação em si, em boa parte alternando-se em duas notas contíguas, o que torna relevantes mesmo variações mínimas. O terceiro verso, E a cidade não tinha livraria, traz um primeiro pequeno salto para o agudo, que já é suficiente para trazer a tensão de viver numa cidade sem acesso ao saber. É o que pode lançar mundos no mundo se estende na passionalidade da última nota, desacelerando para permitir ao verso tomar o espaço evocado no texto. Da mesma forma, a sequência da segunda estrofe avançando sutilmente para o agudo vai aumentando a tensão: Ou lançá-los pra fora das janelas / (Talvez isso nos livre de lançarmo-nos) / Ou ­ o que é muito pior, por odiármo-los, para no encerramento inesperado do pensamento: Podemos simplesmente escrever um, manter o agudo mas novamente escandindo as sílabas, liberto da rítmica, fruindo o impacto deste verso no ouvinte.

Mas a chave do entendimento da ambiguidade/dualidade de Livros frente a seu tema talvez esteja na sua outra citação. No intermezzo, Caetano recita em francês um excerto de O vermelho e o negro, de Stendhal. (aqui na tradução de Paulo Neves)

“Ici, dit-il avec des yeux brillants de joie, les hommes ne sauraient me faire de mal.” Il eut l’idée de se livrer au plaisir d’écrire ses pensées, partout ailleurs si dangereux pour lui. Une pierre carrée lui servait de pupitre. Sa plume volait (…) “Pourquoi ne passerais-je pas la nuit ici? se dit-il; j’ai du pain, et je suis libre!” (…) Au son de ce grand mot son âme s’exalta (…) Mais une nuit profonde avait remplacé le jour, et il y avait encore deux lieues à faire pour descendre au hameau habité par Fouqué. Avant de quitter la petite grotte, Julien alluma du feu et brûla avec soin tout ce qu’il avait écrit.’

“Aqui, disse com olhos brilhantes de alegria, os homens não poderiam fazer-me mal.” Teve a ideia de entregar-se ao prazer de escrever seus pensamentos, em qualquer outro lugar tão perigosos para ele. Uma pedra quadrada servia-lhe de púlpito. Sua pena voava (…) “Por que não passar a noite aqui?” disse a si mesmo. “Tenho pão e sou livre!” A essa frase grandiosa, sua alma exaltou-se (…) Mas uma noite profunda substituíra o dia, e ele tinha ainda duas léguas de caminho para descer até a cabana habitada por Fouqué. Antes de deixar a pequena gruta, Julien acendeu um fogo e queimou com cuidado tudo o que escrevera.

Este é um trecho de um livro clássico que fala por sua vez do ato de escrever, o que já é por si um paralelo com a canção que o acolhe em si. Nele, o arrivista Julien, disposto a tudo para triunfar socialmente, está só e se dispõe a escrever o que lhe passa pelo íntimo, para afinal considerar perigoso deixar sobreviverem aqueles registros e destruí-los. A ilusão de verdade trazida pela aparência de perenidade do livro é posta à prova. É uma grande ironia que Caetano traga para dentro de uma efêmera canção um trecho literário que fala do efêmero da literatura, uma ironia sobre o caráter pretensamente duradouro da escrita em contraste com a canção. Assim como a alardeada liberdade de Julien não ultrapassa os limites da pequena gruta em que se refugia e ele se vê impedido de dizer o que realmente pensa e sente, o registro que sobrevive a ele será tão confiável quanto ele próprio (e no entanto, o livro de onde vem o trecho retrata exatamente este dilema). É como se Caetano, autor principalmente de canções, duvidasse por um momento da capacidade do livro, a começar pelo seu próprio, de dizer o que realmente lhe interessa, e apostasse na das canções, inclusive ao fazer uma canção para falar de seus amados livros.

E ao fim, volta mais uma vez o verso sustentáculo de Livros, o verso que simultaneamente zomba e afaga. Mais que à mulher amada personagem da canção, os dois últimos versos de Livros são dirigidos à própria Chão de Estrelas, a seu romantismo exacerbado e demodé, seus decassílabos literatos e kitsch, e no entanto tão autênticos e representativos de um Brasil profundo, de uma alma popular que podia ser também a alma russa exaltada por Tolstoi. No embate entre o livro, objeto transcendente, e o não-objeto canção que não pode ser guardada em aquários ou gaiola, esta leva a melhor ao jogar em seu campo, não por qualquer motivo racional, mas pelas razões que a razão desconhece – e as estrelas retomam sua denotação poética.

Não há nem sombra de anti-intelectualismo aqui, mas o relato de uma relação pessoal: sem prescindir dos livros e dos mais diversos saberes, a razão de ser destes aqui é desaguar transfigurados no seu fazer de compositor, sendo Caetano da geração que fez da canção popular um sucedâneo da literatura para as massas, atingindo um nível de elaboração intelectual conciliado com um alcance continental. Aqui está a grande ponte entre estas formas e saberes, que se materializou por décadas no Brasil e de que Caetano ainda é um dos expoentes. Após ter escrito um livro para explicar seu lidar com a forma canção, Caetano agradece a eles pelo que lhe deram e dão e retorna a ela, a perdoa pelas falhas que também são suas, e a abraça de volta.

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Meu agradecimento ao músico mineiro Pablo Castro, que corrigiu a harmonia de Livros depois de eu tirá-la canhestramente.

O pós-futuro do Pós-Brasil

Aqui tudo parece que é ainda construção e já e ruína.

Vejo uma trilha clara pro meu Brasil apesar da dor
Vertigem visionária que não carece de seguidor

Caetano Veloso, em Fora de OrdemNu com a minha música

PrestençãoComecemos por uma história próxima do inacreditável e aparentemente bem distante de onde queremos chegar: Caetano Veloso incluiu no repertório de seu show na Concha Acústica de Salvador, em janeiro deste ano, o hit do verão baiano, Me libera, nega, do Mc Beijinho. Eis a história da canção:  Ítalo Gonçalves, de 19 anos, foi preso em flagrante numa tentativa de assalto à mão armada em Salvador. Saiu do camburão cantando a canção com uma voz que imitava acusticamente o efeito eletrônico do autotune, diante do incrédulo repórter do programa policial. O vídeo viralizou e Ítalo, já com nome artístico, gravou um clipe caprichado da canção, agora um samba-reaggae. O hit pegou, Luan Santana o cantou em seu show na Bahia… e Caetano também.

E foi o que bastou para se acender a polêmica da vez, polemica velha, de quase 50 anos. Pois em 1968 Caetano já gravara Coração Materno, de Vicente Celestino, no álbum Tropicália, inaugurando um procedimento artístico que segue semi-compreendido até hoje, de escolher e cantar exemplos do repertório à margem do consenso construído historicamente pela MPB, seja entre o brega, o axé ou o funk carioca, provocações que ao mesmo tempo explicitavam as limitações deste consenso e tratavam de expandi-lo, no sentido estético, mas principalmente no político. A Tropicália apontava a nudez do rei. A MPB não era a representação por excelência da música popular brasileira, em que pese a sigla que se arrogava. As rachaduras abertas ampliaram-se até que na produção atual não haja quase nada que possa ser reconhecido por este nome – e quem o recebe reage, incomodado.

A história original do surgimento de Me libera, Nega, um macro/microsucesso, por instantâneo e espetacular, e efêmero e passageiro, é tão boa quanto qualquer outra para falar da falência do projeto MPB, e esta como representação da falência de país por que hoje passamos. Uma metáfora grande demais para ser contida num acontecimento só, dirão, e é verdade. Por isso Caetano há 50 anos, segue apontando periodicamente para direções diversas, indicando as porções tanto estéticas quanto sociais deixadas de lado na produção do consenso do Brasil que importa. A MPB, o fenômeno urbano de cristalização da forma estilizada da Bossa-Nova com relação ao samba e a extensão de seu procedimento a toda e qualquer forma musical brasileira, do forró ao bolero, do choro ao sertanejo, engendrou dentro de si ou a partir de seu avesso, quase simultaneamente, a semente de sua própria destruição, a Tropicália. A Tropicália é um vórtice estético que traz para dentro de si mesma tudo o que entra em seu horizonte de eventos. A Tropicália, assim como a Teoria da Relatividade, de alguma forma previu seu próprio fim, não funciona dentro dos buracos negros.

E é o que parece acontecer com o Brasil, em outra/mesma instância. O chamado consenso de classes que regulamentou o país por anos entrou em colapso e a situação atual é de beco sem saída. O consenso questionável e injusto que transformou o repertório da MPB no repertório no Brasil por excelência, ignorando os pontos ainda não abarcados por ela, e que antes transformara o samba no ritmo nacional por excelência, atropelando com a Rádio Nacional as manifestações não abarcadas por ele (e portanto a chegada da Bossa Nova, fazendo a transição entre um modelo e outro, assegura a permanência do consenso forçado e possível); este consenso foi denunciado nos raps das quebradas paulistas, perdeu-se. Da mesma forma, o modelo de país estabelecido e levado adiante, com marchas e contramarchas, desde a redemocratização, acabou. Aspectos estéticos e civilizacionais estão inextrincavelmente ligados.

E num momento histórico em que este consenso se desmorona politicamente, mais que nunca torna-se necessária uma reinvenção estética daquilo que nos define ou que nos une – não um novo consenso, mas a explosão antecipada de todos os novos consensos, para que sobre os destroços possa surgir um modelo de país realmente novo. E é isto a que se propõe, ambiciosamente, o álbum do Coletivo Chama, Todo mundo é bom: dar uma direção de dentro do nevoeiro. E é talvez o trabalho que, individualmente, consegue ir mais longe em sua auto-imposta tarefa. E qual caminho é este? Qual o passo além da antropofagia, que segundo Oswald, é só o que nos une?

Esteticamente, portanto, Todo mundo é bom é um disco pós-tropicália. Não o primeiro, mas possivelmente aquele com mais consciência disto até agora: um mergulho no buraco negro para ver o que tem depois do tempo. Mas ocupado também com a retomada dos caminhos possíveis da Tropicália que foram deixados para trás, em grande parte por interpretações parciais ou superficiais que se tornaram dominantes. E isto a partir de seu título, uma ironia-não-ironia que ataca simultaneamente as noções de separação entre um saber/produzir válido e outro não, delimitados ente si pelo conceito cada vez mais difuso de MPB, e de outro lado a aprovação irrestrita de todo saber/produzir, fruto de uma certa preguiça de avaliação que passou a confundir antropologia e estética.

Porém, a preocupação do álbum não é de demolir estes conceitos, e sim se posicionar para além deles. E para isto ela vai recorrer a todas as influências possíveis e imagináveis, para pintar um retrato detalhado, contraditório, conflituoso e ambíguo do beco sem saída em que se meteu o pais. Em alguns momentos paródia, em outros angústia, o tom geral da maior parte do disco varia entre um riso cínico e um desencanto. Há uma relação direta entre forma e conteúdo: a profusão desnorteante de referências tem um motivo para além de cada uma individualmente. Nos vídeos de divulgação do álbum, em que personalidades da música escutam e comentam as canções, Valter Garcia diz:

Por um lado assim, tira o chão da gente, vai tirando o chão, porque quando a gente ouve, mais ou menos, o caminho mais ou menos óbvio, alguma coisa assim, você ouve alguma coisa e vai procurando referências, e aí vai tirando o chão dessas referência.

Em outro momento, a cantora Áurea Martins, ao ouvir Passarinhão, elenca uma série de influências detectadas, de Alceu Valença a Piazzolla, tantas e tão díspares que é impossível não achar graça. Mas esta multiplicidade referencial, embora manifestamente destinada a confundir o ouvinte, não é por sua vez uma mera demostração de intelectualidade. Em vez disso, ela ganha funcionalidade pela forma como se afirma um retrato do seu entorno – um retrato fiel, porém paródico, na medida em que esta contradição é possível. Uma relação intrincada entre forma e conteúdo: se um álbum como Cabeça Dinossauro, dos Titãs de 1986, faixa a faixa demolia as instituições – Polícia, Igreja, Estado, Família, (e o álbum é justamente um dos da leva do BRock, uma das ondas a rachar o edifício da MPB), Todo mundo é bom não procede a demolição, que já está posta, mas a retrata em várias frentes: na sua temática e das canções em si, e na forma multifacetada e de estruturação complexa de sua construção, em que a profusão de direções para onde se aponta descreve (e critica) em sua forma a falta de direção, a anomia contemporânea.

É recorrente no álbum a denúncia da afirmação de que a verdade é só um truque / resquício tardio do cristianismo / uma aporia do positivismo, ou seja, a incapacidade ou desistência de definição de referências, sejam morais ou estéticas, não por um questionamento objetivo, mas simplesmente porque a inclusão desenfreada de novas visões e possibilidades tende a nivelar tudo (note-se a menção ao Cristianismo a ser desenvolvida mais tarde). Esta crítica pode ser facilmente confundida com uma postura reacionária, contrária à inclusão e/ou moralista. Os músicos do Coletivo Chama não temem esta confusão, menos preguiçosa que mal intencionada, porque podem não saber onde pretendem chegar, mas certamente sabem onde não querem. E não por acaso, abrem o álbum com o desenho do fenômeno fascista acontecendo em plena praça, na mente do homem comum. Antes de tudo, negam o negacionismo, proíbem proibir. E a partir daí, fazem sua crítica.

E a partir daí, alterna-se a descrição da terra arrasada em instâncias diversas com a narrativa em primeira pessoa: Na minha terra tem destroços (Apocalípticos e integrados); ou E eu aqui suspenso / Pêndulo de aço / Já não posso ir nem voltar / Êxtase e colapso (Kamicase). Como que hesitando em se envolver diretamente, como se se recusasse a tomar parte na corrida em direção ao abismo, mas ao mesmo tempo percebendo que, de algum modo, sua participação é irrecusável. A queda no abismo é inevitável, mas meramente permanecer no eu avisei também não é uma saída possível, por cômoda que pareça. O álbum inteiro expressa este dilema, entre as canções mais jocosas como Chapa Branca e O artista social de Facebook, e outras pessoais, em que o processo de dissolução geral atinge diretamente o eu lírico de forma angustiante, como Kamikase, ou Quem vê cara (esta uma canção de amor desencantada e despedaçada pelo arranjo). Às vezes dentro da própria faixa duas canções dividem esta dicotomia, como na Artista Social de Facebook/Apocalipticos e Integrados. Ou dentro da mesma canção, como a intrincada Duelo, que por baixo da sátira acadêmica quase indecifrável traz inquietações sinceras: Se julgamos nossa herança / por aquilo que lhe escapa / não miramos na bonança / e acertamos na zurrapa?, inserindo-se diretamente no que descreve: não sou pedra, sou vidraça / e me cabe a carapuça.

O tratamento dado aos arranjos precisa ser tratado à parte. Cheios de polirritmias, sua característica comum é a de se recusarem terminantemente a enquadrar as canções em um estilo específico, mesmo quando a própria composição aponta em alguma direção, como o blues Polaquinha ou o samba canção Quem vê cara. Os arranjos acompanham o retratar de um esfacelamento. Mas tecnicamente eles são possíveis justamente porque as canções são extremamente bem estruturadas. Os arranjos ultrapassam largamente a funcionalidade de sublinharem as canções. Sem deixarem de fazê-lo, dialogam com elas quase em pé de igualdade, mas não de forma autônoma. De certa forma, são eles próprios releituras das canções, mesmo nos casos de primeira gravação, no sentido da enorme liberdade tomada com cada uma delas. O resultado é uma superposição de camadas que não necessariamente dizem o mesmo, mas, ao fim e ao cabo, se encaminham num sentido comum. A leitura entre este aparente descompasso se dá em muitos níveis: em Quem vê cara, o desencontro entre dois amantes; mas num âmbito maior, o desencontro entre música brasileira e seu público, o Brasil e seu povo, o país do futuro e o futuro.

O futuro. Apontar uma direção para o futuro, quem se habilita? Pois o mero retrato da desesperança pode ser pintado de forma magistral, mas indicar possibilidades para além da desesperança de forma convincente, sem apelar para clichês, pode ser uma tarefa ingrata. No entanto, na própria estrutura de Todo mundo é bom já se esboça desde o início esta necessidade. Assim como toda obra artística, um álbum musical tem o seu próprio arco dramático. Um bom álbum é mais que uma coleção de boas canções, mas ele próprio conta uma história tendo-as como capítulos. A permanência na crítica de um estado de coisas soaria irresponsável, seria como assumir apenas, do título do álbum, a leitura irônica, o que tiraria de todo o conjunto a profundidade de leitura. É necessário aventar caminhos, e mais que isso, começar desde já a trilhá-los. Realizar esta passagem é o desafio auto-imposto pelo álbum.

O arco narrativo de Todo mundo é bom parte da descrição do caos para a o vislumbre de uma nova ordem, e inicia a subida já a partir de um ponto bem alto, a impressionante Boa praça, de Cezar Altai, cantada pelo mineiro Kristoff Silva (aliás, o Chama, fiel ao trocadilho de seu nome, não hesitou em, mesmo formado por vários e ótimos cantores, chamar ainda outros como Kristoff e Ilessi e ceder-lhes a frente em canções, uma generosidade que é também a constatação de que há, sim, muita gente boa procurando ou trilhando o mesmo caminho), retrato impressionista, hanna-harendtiano de uma sociedade lentamente cedendo à tentação totalitária numa construção sutil de alusões e temas que se desdobram, tanto musicalmente quanto quanto no desenvolvimento de uma dissertação que não explica, mas envolve o ouvinte em tensão antes mesmo de que ele perceba do que se fala.

Este retrato será esmiuçado em diversos aspectos daí em diante, e a segunda canção, Chapa Branca, de Thiago Amud, desenvolve quase didaticamente a divisão ideológica do país, ao mesmo tempo que desacredita totalmente de sua veracidade, tratando-a com um cinismo de franco-atirador. A citação, uma após outra, de Levada Louca, do repertório de Ivete Sangalo, e Cálice, o manifesto contra a ditadura (e Thiago, não contente em ridicularizá-la com a resposta vem calar, ainda imita o tom anasalado de Chico), coloca ambas no mesmo buraco negro de insignificância, em que tudo se torna moda ou sai de moda, tudo é carne para moer. Não porque as iguale, mas porque tangencia o universo em que elas são igualadas, um universo absurdo, mas que nos parece normal nas bancas de revista. E no entanto, Chapa branca é uma marchinha, o ritmo usado historicamente no Brasil para a crítica política. Ou seja, ironicamente, não deixa de ser tradicional sua iconoclastia.

Daí seguem-se instantâneos de um estado de coisas tirados de diversos pontos de vista, ora pessoais, ora distanciados, retratos parciais que deixam sempre a sensação de relatarem uma incomunicabilidade  como em Kamikaze, nos versos Terra, pátria, mãe, babel (Outra vez a referência bíblica). Porém frequentemente uma incomunicabilidade voluntária, e aí a verve crítica se mostra fortíssima. O melhor exemplo desta abordagem dupla é a também canção dupla O artista social de Facebook/Apocalipticos e integrados. A primeira, experimental, radicalização estética da desintegração, leva a letra de Thiago Thiago de Mello ao limite do compreensível para tratar do cinismo do relativismo sob a desculpa da pós-modernidade, o Todo mundo é bom da interpretação equivocada da Tropicália, o deslumbramento com o exotismo moral típico do fin de siècle, cujo corolário foram o totalitarismo e a guerra. Este cinismo é devolvido na mesma moeda, e sobreposto imediatamente ao desamparo da segunda canção, em que o verso Lá vem a tropa de bons moços, outra vez referencia indireta ao totalitarismo, é sublinhado pela melodia final do arranjo de Chapa Branca, lá feito no kazzo (instrumento musical com som de zumbido) em forma de zombaria, aqui soando como um lamento – que acompanha por sua vez o tom lamentoso da voz de Renato Frazão, ao contrário da de Thiago Thiago de Mello. Nela transparece a compaixão – a mesma do personagem que explode tudo, última palavra da letra.

Sim, mas e para onde ir? Como sair do beco sem saída? É possível apontar possibilidades, no espaço de um álbum de 11 canções, sem cair no messianismo barato diante desta ambição? As duas últimas faixas vão tentar traçar o fim deste arco – ou melhor, já no fim da antepenúltima, Polaquinha, o verso final Cada um acredita no que quer acreditar extrapola a temática da canção, e o jogo entre anjo e demônio e as referências religiosas de sua letra preparam o terreno para o que virá. O caminho não será percorrido, apenas vislumbrado. E talvez seja simultaneamente um caminho adiante e de retorno.

Mas antes, Passarinhão, que centraliza numa pequeno inventário ornitológico do cancioneiro nacional, partindo da referência folclórica a outras indiretas como o Passarim de Tom Jobim e o Acauã de Luiz Gonzaga (dialogando com o pássaro como símbolo de Brasil e inserindo-se nesta conversa de canções), mas principalmente contendo em si o verso que dá nome ao álbum e aqui, completo: Todo mundo é bom e mau. A ironia do título se dissolve no desdobramento da equação, e como que dá continuidade ao verso final de Polaquinha. Passarinhão põe em palavras finais as perguntas sobre o país do futuro onde tudo parece que é ainda construção e já é ruína: Passo-preto, passado que não passou (…) Que ato, que palavra oculta te perpetuou? E termina com o exorcismo deste passado:

Passa noite, passa arribação
Passa a terçã
Passa, passa, gavião
Me larga e segue a trilha do acauã
Que a manhã rebrilha

Sai, sai, volta não
Passa, passa, gavião
Redondilha, redenção

O fato de Passarinhão ir buscar sua base numa cantiga folclórica infantil é digno de nota, outra pista de um retorno às origens para retomar o caminho – quem sabe para descobrir qual bifurcação tomou.  A canção que encerra Todo mundo é bom avança neste sentido. Mas ainda antes, uma surpreendente Ave Maria, que outra vez corre o risco de ser confundida com um refluxo conservador, como um apelo a uma determinada tradição como salvadora – e o Coletivo de novo escolhe correr este risco, pois a escolha não deixa de ser também um ato político. Porém, o tom simultaneamente medieval (de Gesualdo) e contemporâneo (de Ligeti) escolhido impede esta noção pelo embaralhamento de cartas e referências (a estratégia volta a funcionar), como também dá a deixa para a passagem da referência religiosa à mística, escolhida para o encerramento.

E chega a Rainha do Meio Dia. Dedicada à memória de Ariano Suassuna (sutileza: à sua memória, não a ele próprio), na verdade dedicada à (re)invenção da memória de um país. E assim como a Ave Maria, também é a saudação a uma mulher: Rainha do Meio Dia é uma das denominações bíblicas da Rainha de Sabá, que por sua vez foi identificada com Maria desde a Idade Média, mas também com os Reis Magos por ter ido ao encontro de Salomão como estes foram em busca de Jesus. A sequência de associações leva daí ao Advento, ou seja, a vinda de Jesus, e desta à Parusia, a segunda vinda prometida. Uma sucessão de sugestionamentos que passa abaixo da linha da consciência do ouvinte, mas reverbera num atavismo que permanece latente em nossa civilização. Parece incrível que esta exegese não conduza a uma saída fundamentalista, que seria absurdamente simplória, para o caos descrito até aí (ou a Babel, como dito em Kamikaze).

Mas não o faz, e não o faz ao revelar finalmente sua outra chave: Eldorado, com que o Reino de Sabá é por sua vez identificado. O reino lendário, banhado em ouro, buscado América adentro e nunca encontrado. Um país do futuro perdido no passado, um tesouro que teima em se esconder sempre mais adiante, mais adentro, aguardando a chegada de quem o merecerá. A ultima estrofe de Rainha do Meio Dia tem todas as características apocalípticas de uma purificação:

Ali será um céu
Cercado pelo mar
No fogo vai penar
O povo incréu
O velho tirano e o feitor
Soçobrarão na decadência
Só restará
Do grande incêndio que advir
Anunciar

E o verso final, que ressignifica retroativamente toda a canção:

Eldorado, reino do meu capitão

Para em seguida passar de um acorde absurdamente dissonante a um de sol perfeito maior.

O Cristianismo é um dos guias de Todo mundo é bom, mas não como paradigma, e sim como metáfora. A retomada do ponto de partida feita pelos oito rapazes brancos inclui a tomada desta herança pessoal como ponto de partida não para a uniformidade, mas para a universalidade. Todo mundo é bom, não é de maneira nenhuma uma síntese. Ao contrário, há algo de barroco em sua exuberância. E a trilha que ele aponta não é prática, mas simbólica, como a obra de arte é, e tortuosa e difícil, mística, mas nunca simplória. No entanto, ele se recusa a não enxergar uma luz adiante – ainda que este adiante se perca no horizonte.

Thiago Amud definiu o álbum como um ensaio sobre mundo viral, sociopatias e a pertinência (ou não) de ainda sermos brasileiros. E na dedicatória ao meu exemplar, chamou-o de este libelo de sei-lá-o-que! Todo mundo é bom é, em sua audácia, uma das primeiras produções musicais brasileiras desde o advento da MPB e da Tropicália a superar efetivamente esta dicotomia fundadora, que poderia ser também a de Mário X Oswald de Andrade, fundadores do Brasil moderno. Finalmente, um sinal de que o eterno retorno da polêmica do Caetano cantando o outro Brasil pode ser deixado para trás.

Termino com um dos que trabalham para enxergar e revelar um destes possíveis Brasis, Eduardo Viveiros de Castro, olhando a mesma questão do ponto de vista de outra herança:

O Brasil não existe. O que existe é uma multiplicidade de povos, indígenas e não indígenas, sob o tacão de uma “elite” corrupta, brutal e gananciosa, povos unificados à força por um sistema mediático e policial que finge constituir-se em um Estado-nação territorial. Uma fantasia sinistra. Um lugar que é o paraíso dos ricos e o inferno dos pobres. Mas entre o paraíso e o inferno, existe a terra. E a terra é dos índios. E aqui todo mundo é índio, exceto quem não é.

Ou, no dizer do próprio Coletivo Chama, em Duelo:

Só a voz, a voz do outro
redimirá nossa cultura.

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  • O Coletivo Chama é formado por Sergio Krakowski, Thiago Amud, Ivo Senra, Pedro Sá Moraes, Renato Frazão, Fernando Vilela, Thiago Thiago de Mello e Cezar Altai. O álbum Todo mundo é bom pode ser baixado no seu site, pagando-se a quantia que achar justo, ou gratuitamente.
  • Meus agradecimentos a Makely Ka, que me contou a história de Me Libera, Nega, e a Paulo Almeida, que, ao postar uma entrevista de Caetano em que ele falava sobre sua decisão de cantar a música, suscitou um debate que serviu como ponto de partida para este artigo.

Sina: uma reescuta

Quantas vezes é preciso escutar uma canção até que não sejamos mais capazes de ouvi-la? Ou por outra, quantas canções já ouvimos tantas vezes que, ao soarem seus primeiros acordes, automaticamente desligamos a audição, e em vez de ouvirmos a música que toca, só percebemos aquilo que já conhecemos dela?

O exercício de tomar uma canção extremamente conhecida, já ouvida centenas de vezes, e tratar de escutá-la uma vez mais, como se fosse a primeira, pode ser revelador, especialmente se tratar-se de uma grande canção. Por debaixo das camadas de automatismo auditivo podem se esconder inúmeros detalhes e significados que passaram despercebidos da escuta cristalizada.

Sina, de Djavan,  é a rainha dos bares. Sua batida inconfundível ao violão foi tocada por todos. Recebeu inúmeras gravações até tornar-se quase um chichê de si mesma. No entanto, aquilo que a tornou a canção querida que é está ali, à disposição de nossos ouvidos. Então escutemos.

Esta é a primeira gravação de Sina, por Caetano Veloso no álbum Cores, Nomes. Sina foi feita por Djavan para Caetano e gravada antes por ele. Mas no mesmo ano, 1982, Djavan a gravou eu seu álbum Luz.

É interessante notar, antes de tudo, que o núcleo rítmico de Sina é um ijexá, presente de um alagoano para um baiano gravar. Porém, Caetano, ao invés de gravar a canção como um afoxé típico, aproveita somente a célula rítmica do acompanhamento que se tornou sua marca registrada, introduzindo um instrumental com a guitarra de Perinho Santana, uma sonoridade mais próxima dos caminhos que a música baiana ia tomando à época. (Parêntesis: numa reportagem do jornal Valor, Antônio Risério traduz o verbo caetanear, cunhado por Djavan nesta música, como defender o que para muitos críticos parece indefensável: o valor da música popular feita na Bahia desde a década de 1980, que costuma ser rotulada genericamente de axé music.) Além de Sina, ele utiliza o mesmo padrão rítmico em outros arranjos do mesmo álbum, como Ele me deu um beijo na boca (em que Caetano afirma: Eu sou do clã do Djavan). Já Djavan, em seu arranjo, se mostra de certa forma mais realista que o rei, ao gravar a canção com a percussão típica do afoxé, que se apresenta logo na introdução, antes de todo o restante da instrumentação. E por outro lado, Queixa, que abre o álbum de Caetano, inicia-se igualmente com a percussão de ijexá…

No entanto, o álbum Luz, gravado em Los Angeles com diverso músicos estadunidenses, foi tido como o primeiro passo para uma internacionalização da carreira de Djavan, e por isso mesmo tem uma sonoridade mais pop do que álbuns anteriores. O disco foi bastante criticado quando lançado, embora apenas no álbum seguinte, Lilás, Djavan fosse radicalizar a linguagem na direção do eletrônico – com resultados hoje datados em termos de sonoridade. Olhando-se retrospectivamente, Luz consegue uma fusão excepcional entre o  pop e a música brasileira, que serviu de base para muito da produção posterior de Djavan, aliada a um perfeccionismo de gravação que, em contraste com os poucos elementos instrumentais (além de bateria e percussão, as linhas de baixo, violão e piano são absurdamente econômicas) levou Djavan a gravar 15 camadas de vozes nos vários scat singing da gravação.

Voltando portanto a Sina, a canção, duas características podem ser nosso ponto de partida, pontos em comum na escuta cristalizada: além da batida sincopada já mencionada, sua letra de contornos inesperados e classificada de nonsense pelos desavisados – como aliás diversas outras de Djavan. Porém, a noção de que suas letras não façam sentido causa repulsa no próprio autor. Ao menos uma vez ele já se pôs a explicar verso a verso o refrão de Açaí no meio de uma entrevista, com uma indignação algo cômica. Mas efetivamente os versos isolados de diversas canções de Djavan (e de Sina em particular) não fazem sentido por si, ou o fazem em pequenos blocos que precisam ser articulados entre si, mais que pela melodia, pelo ritmo.

E neste ponto a escuta desatenta talvez tenha seu quinhão de sábia, por permitir a decantação dos dois elementos efetivamente fundamentais na composição. Em Sina, a síncopa, tanto do arranjo quanto da própria canção, é um elemento afinado com a fragmentação da letra.  Andam ambas pari passu. Ou melhor dizendo: a divisão rítmica é a costura entre os significados da letra. Como se as frases cantadas fossem a parte do fio visível e as interrupções entre o versos, o fio invisível no avesso do tecido.

Isto é perceptível desde os versos iniciais. Sina é aberta por um esquema de pergunta e resposta, um bate-bola de definições entre dois motivos musicais:

Pai e mãe: ouro de mina
Coração: desejo e sina
Tudo o mais: pura rotina

Esta delimitação introdutória usa um formato econômico usado por Djavan em outras composições, inclusive na indecifrada Açaí: Açai: guardião / Zum de besouro: um imã, tão somente uma elipse do verbo ser, deixando uma interrupção entre sujeito e complemento nominal, que por sua vez é espelhada no desenho rítmico. Porém, mal é desenhado este esquema, ele será interrompido por uma palavra: jazz. Luiz Tatit, criador de um método de análise da canção popular e que dedicou um capítulo a Sina em seu livro Semiótica da canção: melodia e letra, dá epecial atenção a este verso de apenas uma palavra, central na canção.

Tatit aponta que, após três reiterações da terminação na nota da tonalidade, como que compensando melódica/harmonicamente a falta de chão da síncopa rítmica, a palavra jazz se estende na terça da tonalidade, o que Tatit engenhosamente chama de síncopa vertical. Apenas dois tons de diferença entre as terminações são suficientes para dar ao ouvinte a sensação de que a melodia plana a dois passos do chão. Além disso, ao estender-se num tempo longo, jazz quebra a convenção rítmica recém-estabelecida e instaura instantaneamente a melodia passional, reforçada pelo fato de surgir numa nota mais aguda, de maior tensão.

Por sinal que a palavra jazz terá efeitos opostos encerrando a parte A e a parte B. Depois dos versos tudo o mais: pura rotina, o jazz, com sua característica do improviso, do inesperado,  apresenta-se como o antídoto, o recurso de cura, em contraste absoluto. O verso seguinte, tocarei teu nome pra poder falar de amor, associa a este o nome da amada e por consequência coloca-a também em contraste com a pura rotina. Já em sua segunda aparição, jazz segue-se aos versos tudo o mais: pura beleza, que por sua vez termina uma sequencia que fala da mulher amada (art nouveau da natureza). E neste caso, jazz vem complementar esta noção, tornando-se, inversamente à primeira vez que é dito, um exemplo de beleza, reforçando a frase anterior. Assim, retirando as palavras de ligação e apenas pela escolha da sequência e alternância  melódica/ritmica dos versos, Djavan dá à mesma palavra, enunciada no mesmo lugar melódico, funções opostas em sua relação com o todo.

O verso Tocarei teu nome pra poder falar de amor ao  mesmo tempo prenuncia o intermezzo que virá à frente apresentando seu tema melódico e serve de ponte para a retomada da forma inicial, mas agora não como pergunta e resposta, e sim falando diretamente na segunda pessoa – e só então Sina revela-se uma canção de amor. Após a segunda aparição da palavra jazz, virá o intermezzo, único momento da canção em que o padrão de duas notas marcadas do acompanhamento é quebrado, em dois versos:

A luz de um grande prazer é irremediável néon
quando o grito do prazer açoitar o ar: réveillon!

Estes versos tomam o tema introduzido em Tocarei teu nome… e o estendem na preparação do refrão. Merece atenção aqui a repetição algo corajosa da palavra prazer no mesmo lugar dos dois versos, explicitando: é disso que se trata aqui. No primeiro verso, comparada à luz néon e no segundo implicitamente aos fogos de artifício do ano novo,  num crescendo. Estes dois versos são talvez a mais bela descrição do orgasmo na língua portuguesa, e igualmente anunciam o refrão-orgasmo que virá. E ao mesmo tempo, o segundo verso remete de alguma forma aos primeiros da canção ao adotar o mesmo procedimento deles, mas invertido: a definição poética do termo vem antes, para só depois ele anunciar-se gloriosamente, com sua segunda sílaba na nota mais alta da canção – o próprio grito do prazer – e que será dada depois mais duas vezes durante o refrão.

E o refrão que vem tem a missão de unir em si duas características opostas: a divisão rítmica dos versos enunciativos com a extensão emocional remissiva. Djavan enfrenta este desafio com uma estrutura de versos que não remete diretamente a nenhum tema melódico anterior, seguro de que apenas a retomada do acompanhamento característico será suficiente para fazer o amálgama das partes. E funciona. Porém, para conseguir combinar a fragmentação das frases da parte A com a enunciação completa do intermezzo, ele consegue um verdadeiro ovo de Colombo, apresentando uma frase extensa de forma fragmentada.

Quiçá
um dia
a fúria
desse front
virá
lapidar
o sonho
até gerar o som,
como querer
caetanear
o que há de bom.

Tatit diz: Não há temas em seu interior, pois que ele próprio se configura como um grande tema resultante de toda a extensão melódica. Porém, longe de qualquer nonsense, esta sentença, em que pese o neologismo, faz todo o sentido em termos poéticos – ou melhor, a presença do neologismo ainda reforça este efeito. A extensão da frase, aliada ao desenvolvimento harmônico, pratica uma série de adiamentos da conclusão reconhecidos por Tatit em sua análise, concomitantes às síncopas que vão interrompendo a sentença em estacatos, até a volta à nota fundamental em terça descendente. Tatit nota também que o refrão se inicia acompanhando  o pulso: O luar / estrela, enquanto em seu desenvolvimento se desloca livremente, para ao final retornar a ele afirmativo, definitivo: O que há de bom.

Entretanto, entre a segunda estrofe, em que Sina trata de uma relação a dois, e o refrão, há uma mudança, e a tematização passa a um amor mais geral, como um sentimento de plenitude (intermediado pelo orgasmo do intermezzo). Sina amplia seu escopo no refrão e confirma-se uma canção de amor, mas não necessariamente do amor romântico. O eu lírico conversa com seu par sobre algo maior. É revelador desta abertura de foco o paralelismo entre os versos Tocarei teu nome pra poder falar de amor e Lapidar o sonho até gerar o som, o primeiro no início da canção, o outro no refrão.  Ambos descrevem a passagem do sentimento à palavra/música, ou seja, a canção. Um particular, dirigido a uma pessoa específica, outro geral, aberto, humanista; quando a alusão/homenagem a Caetano também mostra-se mais abrangente, definindo difusamente um modo de olhar, ou uma ampliação do olhar que Antônio Risério descreve acima, da Bahia para o mundo.

Mas afinal, tudo o que é dito nesta análise fria está em estado bruto na escuta, e pode ser um tanto arrogante classificar como desatenta ou redundante a relação de qualquer ouvinte com uma canção, pois o que faz a comunicação entre ela e o ouvinte é exatamente o fato de todos estes detalhes mencionados aqui moverem o ouvinte num outro âmbito, interno e maior.  O refrão de Sina, tanto por sua característica de ineditismo dentro da canção ao não retomar nenhum tema já apresentado, quanto pela ampliação de escopo que realiza, pede reiteração. Mas mais que estas característica técnicas, possivelmente há algo de autocongratulatório nele que nos leva a querer ouvi-lo e cantá-lo novamente. É a continuação de um festejo, a extensão do momento de prazer indefinidamente e estendido também a todos, como um réveillon utópico que não fosse apenas um instante. Uma trégua duradoura entre desejo e sina, se não alcançável, ao menos passível de ser vislumbrado numa canção. Este é o desejo de Sina.

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O blog agradece ao Luiz Henrique Assis Garcia, do blog Massa Crítica Música Popular, por ter fornecido o capítulo do livro de Luiz Tatit que serviu como uma das bases deste texto.

A Tropicália vai passar?

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval.  – Oswald de Andrade, Manifesto Antropófago

I. Tropicália

Nunca houve consenso, nem mesmo entre os protagonistas da Tropicália, sobre todos os detalhes e posicionamentos do movimento, e sequer se trata-se de um movimento. Mesmo assim, poucos – seja – movimentos tiveram tamanha influência sobre o imaginário nacional e sobre a constituição de nossa imagem de país. Talvez apenas outros dois, com os quais ela tem relações bem diversas: a Bossa Nova, no terreno musical; e o modernismo, ou melhor dizendo, uma das premissas basilares do pensamento modernista brasileiro, a antropofagia. Com a Bossa-Nova, uma contraposição algo dúbia, com muito de filial, enunciada no grito ao fim da canção Saudosismo: Chega de saudade! E com a Antropofagia, mais ainda, a Tropicália realiza uma espécie de retomada do bastão.

E no entanto, desde seu espocar, mas ainda hoje, atualizada, há também uma crítica à Tropicália, de quem enxerga em sua dialética, em maior ou menor medida, também indecisão, aceitação indiscriminada e/ou recusa em tomar uma posição. Porém, a diferença no diagnóstico talvez esteja menos na própria Tropicália e mais na análise da situação atual, como do fim dos anos 1960. Ou seja, a diferença entre a Tropicália e a esquerda que a critica está em enxergar ou não a necessidade absoluta de tomar uma posição.

Tomemos como ponto de partida a canção que lhe deu o título, e cujo próprio nome foi tirado de uma instalação de Hélio Oiticica – que Caetano Veloso sequer conhecia – por sugestão de Luiz Carlos Barreto. Aliás, partamos de quatro versos:

Eu organizo o movimento
Eu oriento o Carnaval
Eu inauguro um monumento
No Planalto Central do país

Os dois primeiros versos desta estrofe são uma espécie de síntese do pensamento da esquerda da década de 1960. Porém, engana-se quem pense que correspondem a uma tomada de posição de Caetano neste sentido. A citação desavisada destes versos com a intenção de defender esta posição acaba soando um bocado irônica ao se perceber que a Tropicália como movimento não a endossou. E na própria música esta síntese, imediatamente após ser feita, recebe uma crítica típica do movimento, ao ser relativizada num contexto mais amplo, cujo viés é descritivo e não imediatamente ideológico.

Os dois versos seguintes têm a construção de Brasília como referência óbvia. Mas o monumento, cuja descrição simbólica será explorada por todo o restante da letra de Tropicália, remete a todo um projeto de Brasil que acabou incorporado pela ditadura militar, a busca de uma modernidade que já nascia velha e escondia em suas ruas estreitas e jardins interiores urubus e crianças mortas. A crítica era feroz, mas se dava num registro muito diverso, por exemplo, do imaginado pelo CPC – Centro Popular de Cultura, paradigma de um alinhamento entre arte e política que chegava ao dogmatismo. Enquanto este “pretendia tirá-las da alienação e da submissão”, segundo seu manifesto, seguindo à risca os versos iniciais da canção Tropicália, a Tropicália “movimento”– trazia um posicionamento político embutido nas posições estéticas, e fazia pela via estética a crítica tanto da ditadura quanto de sua oposição, passando a ser detestada por ambas. Ficou famosa a charge de Henfil em que guerrilheiros de esquerda imediatamente se entrincheiravam ao ouvir mencionar o nome de Caetano.

O incômodo, neste caso, se dá ao lembrarmos da exigência do regulamento do desfile das escolas de samba cariocas de apresentarem temas de cunho nacionalista – exigência que se materializa no governo Dutra, em 1947, e que incentivava enredos que não desafiassem ou apresentassem críticas ao governo, sendo reforçada no período da Ditadura Militar, mas que foi sendo driblada pelas escolas ao longo dos anos, em desfiles memoráveis como História da Liberdade no Brasil (Acadêmicos do Salgueiro, 1967), Heróis da Liberdade (Império Serrano, 1969), Onde o Brasil Aprendeu a Liberdade (Vila Isabel, 1972) e tantos outros. Fica claro que o desejo de organizar o movimento não vem de apenas um dos lados. A visão de um povo a ser conduzido e esclarecido, não tendo condições fazê-lo por si próprio, estava no fundo do pensamento tanto de direita quanto de esquerda, e viria a ser contestada explicitamente pela Tropicália.

E aí voltamos à Antropofagia, como pensada por Oswald de Andrade. Não como algo realizado pelos artistas primordialmente, mas pelo país, com os artistas aprendendo com o país a serem também antropófagos. Uma ideia oposta a qualquer tipo de organização externa do movimento. Ao contrário, ela implicava uma atitude de aprendizado, não de liderança, o que, se artisticamente era interessante, politicamente soava absurda. Porém, era exatamente disto que a Tropicália tratava; ao fazê-lo, tornava-se crítica aos dois lados do embate que ocorria no Brasil, não por ser a favor da ditadura, mas por identificar nos que a combatiam elementos comuns a ela. Sua tomada de uma posição dialética foi e ainda é confundida com uma não tomada de posição, um “murismo” inaceitável para a época. Sua crítica é feita pelo ato de, citando determinada ideia, demonstrar a incapacidade desta ideia de abarcar um círculo mais amplo, indicando assim a existência de algo mais a ser olhado e pensado.

Ou esta crítica pode se dar pelo avesso, pela posição simultânea de elementos opostos, ou elementos que foram colocados ou categorizados como opostos em algum momento – o que pode significar também um questionamento desta oposição. Viva Iracema, Viva Ipanema! A exaltação simultânea da moderna Bossa e da arcaica palhoça, a indicação de que a realidade não é una, e por tabela a crítica de visões unilaterais. Uma crítica que é política, mas que se dá fundamentalmente por meio da estética, e de uma estética afirmativa, que no lugar de resistência, apresenta … digestão. Que ao invés de orientar o carnaval, propõe-se a deixar-se orientar por ele. Algo que uma parte da esquerda tradicional nunca soube perdoar.

II. Vai Passar

Humberto Werneck conta sobre o acidentado processo de composição de Chico Buarque em Vai Passar:

Chico trabalhava no samba-enredo Dr. Getúlio, feito em parceria com Edu Lobo para o musical de mesmo nome. Letra e música estavam prontas, faltando apenas acertar o refrão. De repente, em meio aos compassos de Dr. Getúlio, começou a insinuar-se um outro samba; Chico se pôs a persegui-lo, ora com o violão, ora apenas com a voz, resvalando aqui e ali de volta ao refrão do musical – até finalmente encontrar:

Ai que vida boa, olerê
Ai que vida boa, olará

Não foi além disso naquele dia. Uma segunda fita, gravada algum tempo depois, documenta o que Chico considera o auge de sua “ilusão coletivista”: a tentativa de fazer daquele esboço um samba de vários parceiros. Para isso reuniu em casa um grupo de compositores – Edu Lobo, Fagner, Francis Hime, João Bosco, Carlinhos Vergueiro, João Nogueira -, depois de um jogo do Politheama. Bem que tentaram, mas não deu certo: daquele berreiro não saiu um verso que prestasse. Nem tudo, porém, foi esforço perdido: Francis, ao piano, conseguiu dar um jeito na melodia, cujo tom subia, subia e não voltava mais. Mas ainda não foi dessa vez que Vai passar ficou pronta. Posta de lado, Chico só a resgatou no ano seguinte, ao reunir material para um novo LP. Mostrou então aquele samba ao produtor Homero Ferreira, seu ex-cunhado, e ao arranjador Cristóvão Bastos, que ficaram entusiasmados. Ali mesmo, no estúdio, a letra foi terminada.

Vai Passar, assim como Dr. Getúlio, é um samba-enredo, modalidade específica de samba que segue regras estritas, embora mutantes, ao longo dos anos (quantidade e localização dos refrões, por exemplo, sem falar no andamento), mas tem a característica principal, explícita no nome, de contar uma história ou desenvolver uma ideia, servindo de suporte musical para a versão tropical da obra de arte total sonhada por Richard Wagner: o desfile de uma escola de samba. Chico não se preocupa em seguir as regras estritas de composição de um samba enredo, pois não está concorrendo na escolha de uma escola (ao contrário de Martinho da Vila, por exemplo, que já emplacou vários na sua Vila Isabel); não se arvora em compositor de escola, tendo consciência de que sua obra, na tradição da MPB, consiste numa estilização dos formatos tradicionais, e por isso recorre a harmonizações expandidas, oriundas da Bossa Nova, que dificilmente seriam ouvidas na avenida. Mas o formato do samba-enredo se mostra adequado por outro motivo: o fato de ambas as canções tratarem diretamente do Brasil. A tradição imposta (a pressão para a escolha dos temas começa ainda no Estado Novo, antes de sua incorporação ao regulamento), depois naturalizada, se adéqua à maravilha para tratar de Getulio Vargas, e mais ainda para falar indiretamente sobre o processo de redemocratização ora em curso (Vai Passar é de 1984, entre a campanha das Diretas Já e a eleição indireta de Tancredo Neves).

Há ainda uma outra característica fundamental de Vai Passar, uma característica frustrada: a tentativa de Chico de realizá-la coletivamente – conforme foi mencionado acima. Ora, a composição coletiva é uma marca dos sambas-enredos, chamados até mesmo, ironicamente, de sambas-condomínio. A incapacidade de tantos talentos reunidos em conseguir realizar algo juntos pode ter muitas razões – excesso de cerveja, ou a diferença entre o samba enredo estilizado, e portanto de estrutura mais complexa que a de um samba tradicional. Dito de outro modo, Vai Passar nasceu de um fracasso – da tentativa frustrada de reproduzir em um nível intelectualizado o processo criativo da tradição. O intuito era levar a ideia da obra coletiva e anônima, oriunda de uma força popular quase mítica, a um altíssimo nível de elaboração, para depois devolvê-la ao povo, que, a partir da escuta de uma obra intelectualmente mais densa, seria elevado a outro patamar de entendimento. A música originada do próprio “povo” a ele retornaria sublimada, com um segundo nível de elaboração. Em suma: organizar o movimento, orientar o carnaval. E lembremos de novo: não deu certo.

E não deu certo porque a pretensão de orientar o carnaval se mostrou ineficaz, e também porque a chave do entendimento da formação da MPB via Bossa, que é a estilização de um fazer musical de grande complexidade formal com base firme nas formas populares (que tem por si sós grande complexidade), não se confunde com a emulação do modo de fazer. O fazer socialista do samba-condomínio não se confunde com o fazer socialista, com a noção da obra como ação coletiva (ou sua pretensão) de Chico e outros grandes compositores, alguns mesmo com um pé no fazer mais popular, como João Nogueira. Vai Passar é um samba-enredo e não é um samba-enredo, no sentido de que nunca poderia ir para a avenida acompanhando um desfile. De certa forma, por sua própria natureza e estrutura, a canção inviabilizava a realização de um ato criativo de natureza coletiva. De algum modo estava fadada a ser a obra de um único autor (ou dois, com a participação discreta de Francis).

Ainda assim, Vai Passar exibe a natureza dupla que é a grande força do que se chamou a MPB – uma espetacular elaboração em nível erudito, musical e filosófico, aliada a uma ligação umbilical com as tradições brasileiras mais fundas. E esta segunda característica empresta à canção a característica do enredo de carnaval, que é justamente carnavalizar. Em Vai Passar, ninguém organiza o movimento nem orienta o carnaval. O carnaval é o próprio movimento – e a tentativa de orientação, a obrigatoriedade de um tema brasileiro, é virada do avesso ao se converter em crítica. Esquerda festiva. Antropofagia em estado bruto. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses (de novo Oswald de Andrade). Ou, postos lado a lado, os versos:

Palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
E os pigmeus do bulevar

e

No pulso esquerdo o bang-bang
Em suas veias corre
Muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança um samba de tamborim

Os versos servem também de senha – a organização do movimento não passa pela racionalidade política. Ante a guerrilha armada e as veias abertas da América latina, a torcida pela seleção em 1970 e o samba falam igualmente alto e se impõem como construção simbólica capaz de salvar o país dele mesmo, contra todas as evidências objetivas ou ideológicas. O Sanatório Geral impõe sua própria lógica indecifrável e imprevisível, que se constrói historicamente a cada passo, como ninguém poderia prever as jornadas de junho de 2013 e suas manifestações, que igualmente só chegaram a ter o vulto que tomaram por terem se carnavalizado, e hoje são acusadas por parte da esquerda de se terem tornado inócuas, e assim por diante…

Os “vivas” de Caetano na Tropicália encontram eco em Vai Passar; ou mais propriamente, Vai Passar é a estilização dos “vivas” da Tropicália – eles próprios já uma estilização. Em comum, o reconhecimento de que num desfile de escola de samba tudo cabe, a começar pela nossa própria história deglutida e regurgitada, como foi desde a página infeliz desta mesma história em que os enredos obrigatoriamente deveriam tratar dela. Os “vivas”, tomados por alguns como aceitação indistinta e acrítica da realidade, ou como arautos do pós-modernismo – em que Deus não existe e tudo é permitido -, tornam-se tanto a crítica do moderno quanto eventualmente a crítica da crítica. Eles abrem e apontam, desse modo, caminhos não apenas estéticos, mas políticos pela via da estética – como a obra posterior de alguns de seus líderes deixa entrever em canções como O Estrangeiro, Refavela, Esteticar (Estética do Plágio) de Caetano, Gil, Tom Zé, em que propostas ou visões implícitas de país se viabilizam primordialmente pelo reconhecimento de um Brasil diferente daquele que encontramos na estilização proposta pela corrente fundadora da MPB, a que Chico se filiou, mas que a completa como a outra face da moeda. Moeda de que Tropicália e Vai Passar são duas faces, tirando sua força, em última instância, do mesmo metal que a cunhou e que lhe empresta valor – a percepção de que não é a MPB ou a Tropicália que fazem antropofagia, mas o samba-enredo. E o frevo, o bumba-meu boi, o baile funk, que devolvem generosamente a inspiração para os novos caminhos da MPB, Tropicália ou seja lá que nome vá ter.

Caetano Veloso, na contracapa do álbum Tropicália (que não inclui a canção homônima) psicografa Rogério Duprat para perguntar: Terão mesmo coragem de saber que só desvencilhando-se do conhecimento atual que têm das formas puras do passado é que poderão reencontrá-las em sua verdade mais profunda? Por acaso entendem alguma coisa do que estou dizendo? Baianos, respondam.Enquanto a dialética tropicalista segue frequentemente sendo confundida com uma rendição, uma abdicação, uma desistência, a Tropicália escolheu, entre a resistência e a desistência, a resiliência. Na mesma contracapa, Torquato Neto, igualmente psicografado por Caetano, pergunta: Será que o Câmara Cascudo vai pensar que nós estamos querendo dizer que bumba-meu- boi e iêiêiê são a mesma dança? Há quem pense. Mas o que eles não disseram foi o que o bumba-meu boi, o iêiêiê, o rap, o afrobeat e muito mais ainda podem se tornar – ou seja, em que direção irá a evolução da liberdade até o dia clarear. Há certo método na loucura do Sanatório Geral. Mas nunca é o que você está pensando.

P.S. Este texto pode ser tomado por historiográfico. Pois, ao tratar de duas canções emblemáticas da chamada MPB, corre o risco de chegar a conclusões não aplicáveis a grande parte da nossa produção musical atual. A espécie de consenso de classes que possibilitou esta avis rara que é aliança entre a cultura popular e a alta cultura teria se partido. O sintoma primeiro desta ruptura seria a eclosão dos Racionais MCs, que, oriundos ainda da cultura popular, denunciaram tanto esteticamente quanto no discurso a falência e as contradições desta aliança, ou trocando em miúdos: que o país real não esteve à altura de seu projeto estético. Há hoje inúmeras explorações de caminhos acontecendo à margem da cartilha deste pacto, alimentados por fatores novos como a redistribuição multifacetada da informação pelas redes, entre muitos outros. Entretanto, lado a lado com estes, trabalhos musicais de extrema vitalidade, como os de Maurício Pereira explorando o que ele chama de dialeto paulistano em sua poética; do Metá-Metá conduzindo-se por uma visão de afrossambas muito diversa dos de Baden e Vinícius, com capilaridade em diversos outros trabalhos; ou, para não ficarmos só em São Paulo, como o de Makely Ka em Minas, reinventando os caminhos de Grande Sertão: Veredas no seu Cavalo Motor, mostram que, sem ser mais o caminho obrigatório, o diálogo com as diversas formas de cultura popular em contínua reinvenção ainda podem ser extremamente frutíferos. E que o conceito de cultura popular, hoje vazio para muitos, pode vir a se ressignificar à frente, em outro patamar.

Publicado originalmente na Revista Polivox, em janeiro de 2015.

Tempo, tempo rei

Tempo. Grandeza física que permite medir a duração ou a separação das coisas mutáveis, numa definição que de meramente física já tem em si muito de filosófica, ao incluir intrínseca – e não poderia ser de outro modo – a ideia da mudança. E no entanto, é tão insuficiente, por não ser capaz de abarcar a infinita variedade humana de percorrê-lo (nem falo das mudanças do conceito dentro da própria física, desde Eistein, que considerava o tempo uma ilusão). Pois tão ou mais importante quanto uma definição específica de algo impossível de segurar ou parar é compreender ao menos um pouco nossa relação com ele.

O tempo é um deus. Ou vários. Cronos, criado pelos gregos padroeiros da civilização ocidental (correspondente ao Saturno para os romanos, temível na astrologia por atuar na desestruturação muitas vezes dolorosa da esfera da vida por onde passa), era filho de Urano, o céu, e Geia, a terra, o mais novo dos Titãs. Tomou o poder castrando o pai a pedido da mãe, e tornou-se o todo poderoso em seu lugar. Para impedir os filhos de ameaçarem seu poder, os devorava. Mas Reia, sua irmã e esposa, o engana dando-lhe uma pedra envolta em lençóis no lugar de seu filho Zeus, que, adulto, destrona o pai e o expulsa do Olimpo, adquirindo com isso a imortalidade, ele e seus irmãos, que se tornam, filhos do Tempo, a corte celestial.

Este percurso mitológico é tão carregado de simbolismos que daria para esquecer as canções em pauta e se dedicar só a ele. Mas é bom lembrar que esta visão do tempo, em que está implícita a ideia da finitude, é uma base fundamental do nosso pensamento (sim, os gregos também têm Kairós, que simboliza uma outra visão de tempo, mas que não permaneceu no nosso imaginário com a mesma força). O Cristianismo, via Santo Agostinho, apropria-se da filosofia grega para falar do Juízo Final, o Fim dos Tempos. E a música ocidental (o salto de pensamento pode parecer abrupto, mas lembremos que a música ocidental foi forjada a partir dos cantos litúrgicos, recitações do texto sagrado que se converteram paulatinamente em som musical) carrega em si a mesma ideia, implícita na própria noção de tonalidade: a viagem partindo de uma acorde de tônica, para se aventurar em tons estranhos até a volta para casa do Filho Pródigo (ou de Ulisses), agora transformado e ressignificado, de Adão expulso do Paraíso, da Humanidade que se reencontrará com o Pai por intermédio do Cristo na redenção final. Afinal, qualquer canção, por profana que seja, historicamente repete em sua estrutura este trajeto. Toda canção é um microcosmo do Tempo.

Mas esta não é a única visão possível do Tempo. Ao lado do tempo finito ocidental, a visão oriental do tempo (faço aqui uma generalização / estigmatização óbvia entre Ocidente e Oriente, e desde já reconheço suas incompletudes. Mas prossigo mesmo assim.) o trata de forma muito diversa; A visão reencarnacionista do budismo e do hinduismo incluem a noção de um tempo cíclico e menos definido, em que a ancestralidade se faz presente agora, em que a repetição não é um mal e sim uma forma de atingir o transcendente. E assim como a música ocidental é um espelho de sua concepção de tempo, a música do Oriente, com seus ragas e mantras, baseia-se na repetição, repetição, repetição, com infinitas e micrométricas (ou microtonais) variações. Não se trata de contar uma história com começo, meio e fim. A seu modo, esta música também repete em sua estrutura o tempo – um outro tempo. Também é um seu microcosmo. E ambas as visões se prestam, em primeira ou última instância, a provocar uma transformação no ouvinte – uma pela vivência, outra pela transcendência. Uma pela história, outra deixando de lado a história.

As canções de que trato aqui trazem em si diálogos entre dois tempos, o finito e o cíclico, assim como a dupla significação orixá / tempo propriamente dito perpassa ambas. Pois o Tempo a que elas se referem pode ser Cronos, o ocidental, mas é efetivamente Iroko. Ou Loko. Ou Kindembu. Pois o tempo é vário. Estes são divindades do Candomblé (orixá para os queto, vodum para os gêge e inquice para os bantu, respectivamente), de origens diversas, mas com diversos pontos em comum. Os dois primeiros são associados a (ou habitam) árvores, sendo no Brasil a gameleira. O ciclo de vida de uma árvore, lembremos, é bem diferente dos animais, e, dependendo da espécie, algumas podem viver mais de mil anos (a gameleira pode ultrapassar 200). Os ciclos das estações se espelham nas árvores, assim como ficam marcados nos círculos concêntricos internos ao tronco. Iroko teria sido, numa versão, a única árvore sobrevivente no planeta após uma seca resultante da disputa entre Céu e Terra, e em outra seria a primeira árvore plantada e pela qual todos os restantes Orixás desceram à Terra. Nos dois casos, há uma significação de origem – com pontos correlatos a Cronos. Nos três deuses, uma associação com a ancestralidade.

Mas mais que isso, a noção comum a estes três tempos/deuses consiste afinal, simultaneamenteem, num empoderamento supremo e em uma espécie de anulação do próprio tempo, na medida em que seus ciclos governam a vida desde um passado imemorial e que se repete indefinidamente, se faz presente, não apenas no sentido simbólico, mas efetivamente. Kindembu é a divindade que guia o seu povo nômade (e as migrações percorriam também roteiros preestabelecidos segundo os ciclos naturais) com sua bandeira branca, para que todos, por longe que estejam, possam se unir a ele, já que o mastro da sua bandeira é tão alto que pode ser visto de qualquer lugar. A centralidade espacial, quase uma onipresença, na simbologia do deus tem equivalência com uma centralidade do tempo, um eterno presente que o anula. Não há um Fim dos Tempos, porque a história já está dada e encerrada desde sempre, e permanece e permanecerá. Ao tempo vetorial do Ocidente, o tempo circular.

Oração ao Tempo e Tempo Rei são duas canções que se põem nesta interseção do tempo.

Oração ao Tempo – Caetano Veloso, do álbum Cinema Transcedental

Tempo Rei – Gilberto Gil, do álbum A Raça Humana

Gilberto Gil afirma em seu site, comentando Tempo Rei:

Tempo Rei é a minha versão para uma questão colocada em Oração ao Tempo, onde a frase-chave para mim é: ‘Quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido’ – quer dizer: o tempo desaparecerá, eu desaparecerei; o tempo e aquele que o inventa, o ego, estarão ambos desinventados, portanto. Na música do Caetano parece haver um niilismo essencial, um mergulho no nada absoluto e uma resignação plena, orgulhosa e altiva com a extinção. Na minha tem uma coisa mais cristã; uma, quem sabe, quimera; um vago desejo de permanência e de transformação.

Oração ao tempo e Tempo Rei, não apenas em suas letras, mas nas estruturas, oscilam entre as duas visões de tempo, embora ambas tenham como interlocutora a divindade africana – ou o tempo fenômeno em sua personificação. Oração ao Tempo recorre à repetição ostensiva. Composta por 10 estrofes iguais, em cada uma a palavra tempo é repetida oito vezes na forma de vocativo, como uma invocação ritual. O uso de uma mesma forma sem refrão tematiza o tempo cíclico, ainda mais levando-se em conta que a melodia não tem praticamente ponto de tensão – as notas mais altas são dadas na frase final da estrofe, simplesmente invocativa. Assim também a harmonia, formada por acordes simples, tem poucos momentos de tensão, e em vez de recorrer à estrutura tonal tradicional, usa pouquíssimo o acorde de dominante em favor de acordes de empréstimo modal, fora da tradição ocidental (as estrofes se encerram justamente com uma cadência plagal, IV -I), não apenas reduzindo as tensões, mas também aumentando a sensação de “circularidade”.

No entanto, a letra tem princípio, meio e fim. Trata-se efetivamente de uma oração, uma conversa com o Tempo, seja ele fenômeno ou divindade – ou ambos. Esta forma tem relação com o formato da trova que pede a benção às musas antes de cantar, e ao mesmo tempo, ao propor um trato ao Tempo, aproxima-se das oferendas do Candomblé/Umbanda na relação com o Orixá.

Tempo Rei, em sua forma, toma um caminho quase oposto. Trata-se de uma canção tradicional, com refrão, e com um arranjo pop que chega a soar datado – uma curiosa contradição. No entanto, está também cheia de sutilezas. O primeiro e o último verso da letra iniciam-se com o aviso: não me iludo. (O tempo é uma ilusão, disse Eistein, e de resto o Hinduismo trata o tempo da mesma forma com o conceito de Maya.) Gil canta as estrofes delicadamente e diretamente para o ouvinte, sua voz parece pisar em ovos ao mencionar o perigo iminente da destruição – e no entanto, a canção se inicia dizendo que tudo permanecerá – mas do jeito que tem sido, transcorrendo, transformando). O jogo continuidade/finitude a permeia e é resolvido no refrão, ponto culminante da melodia exatamente na invocação do Tempo como em Caetano, e converte-se assim também em oração; cuja harmonia é simplíssima, a síntese do tonalismo ocidental: dominante – tônica apenas, com a eventual substituição desta por sua relativa menor. Início e fim, início e novamente o fim. Quando Gil esclarece: o fim é transformação. E assim como na Oração, a significação de tempo transita entre a divindade e o fenômeno, porém, independente de identidade, investindo numa personalização que torna a relação com o tempo também pessoal, íntima mesmo. A intimidade de um deus.

Intimidade, de certa forma, impossível. Pois algo que ambas as canções têm em comum é o reconhecimento da transformação como única coisa permanente, já desde os primeiros versos de ambas:

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho

e

Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito
Que tem sido
Transcorrendo, transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos

A noção de que o tempo será reconhecido por ser sempre outro e novo, sendo por isso mesmo o mesmo. Neste sentido, talvez a discordância de Gil que o levou a compor Tempo Rei faça pouco sentido; pois se Caetano realmente afirma que não será nem o tempo terá sido um dia, logo após afirma:

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Num outro nível de vínculo

O que pode encontrar algum grau de correspondência com o pedido de Gil: Transformai as velhas formas do viver. Um outro comentário, este não de Gil, mas também em seu site, esclarece:

O provérbio “água mole em pedra dura etc.” fala da eficácia que as coisas acabam tendo ao durarem no tempo. Na letra, a omissão do final do ditado, “até que fura” (cujo significado é o da ação de interferência no mundo, dentro do plano do tempo “real”, cronológico), e a sua substituição pela expressão “que não restará nem pensamento”, além de servirem para romper a expectativa de enunciação completa de um dito conhecido, servem, segundo Gil, sobretudo ao seu propósito de sugerir a idéia de corte da dimensão do tempo enquanto duração para a dimensão do tempo “enquanto eternidade sorvedora de todas as suas dimensões, para a sua transdimensionalização”; de saída “do tempo-existência para o tempo-essência (o eterno)”; do tempo para o “atempo” – onde, nas palavras do compositor, “já nem pensar é possível”

E com efeito, o verso Água mole, pedra dura / Tanto bate que não restará nem pensamento explica, ou teoriza, sobre a estrutura mântrica da Oração ao tempo, sobre a repetição, a duração, a permanência da forma que a deixa para trás, pois que pela repetição ela, em vez de se amplificar, desaparece para que algo novo surja.

E então chegamos ao cerne comum, ao motor de ambas as canções: o pedido ao tempo. Cortando as invocações de ambas, temos:

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Quando o tempo for propício
De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
E eu espalhe benefícios

e

Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me o que eu ainda não não sei

Transcendência, a palavra não dita que ressoa. O Tempo, pela sua continuidade sempre nova, pelo seu fim que sempre engendra um novo começo, pela repetição desaparecendo para que algo novo surja. Para que das revoluções da impermanência sedimente-se no cantor o que permanece. Para que a Mãe Senhora do Perpétuo socorra, mutação engenhosa de Gil para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, tornando a mater cristã a divindade do eterno, fundindo em um nome, numa dúbia oração pagã, permanência e finitude, oriente e ocidente (N. S. do Perpétuo Socorro tem origem bizantina). Passado, presente e futuro rumo a algum lugar além-tempo, em que se reencontrarão e serão deixados para trás. No fundo, o pedido ao tempo que faça o que sabe fazer: passe. Permaneça, para que nós passemos. Passemos, para que permaneça em nós o que formos, efetivamente, nós. Tenhamos tempo.

A Tropicália vai passar na Polivox

Prezado passante curioso ou frequentador assíduo do Sobre a Canção: Está no ar o segundo artigo do blog (ou seja, meu, Túlio) na Polivox, revista digital de música. A partir da análise de Tropicália, do Caetano Veloso, e Vai Passar, de Chico Buarque e Francis Hime, faço um balanço dos caminhos históricos da esquerda brasileira diante da cultura popular e avento caminhos possíveis para a esquerda, a cultura e, claro, a canção. A Tropicália vai passar? está à disposição. Boa leitura.

Luas, luas, luas, luas

A autorreferência, ou seja, citar a própria obra, é uma das maneiras mais óbvias de se tentar dar coesão interna a esta obra – quando não é uma demonstração inequívoca de narcisismo. Porém, se toda obra de arte é por natureza referencial, parece também natural que um autor refira-se a si mesmo não apenas como uma consolidação do próprio pensamento ou expressão de suas obsessões – o que é comum – mas também como uma maneira de levar adiante pensamentos diversos, porém traçando entre eles uma relação que é principalmente estética, estilística, mas que acaba se desdobrando também em significados, num processo que se retroalimenta.

Lua, lua, lua, lua é uma das faixas do álbum Jóia, de Caetano Veloso, lançado em 1975. Ele é acompanhado apenas pelo órgão de Antônio Adolfo e pela percussão não creditada, mas provavelmente de Perinho Albuquerque. Tem uma estrutura harmônica absolutamente singela: tônica, tônica diminuta (como um substituto da dominante do segundo grau), segundo grau, dominante (o famoso II/V), que volta para a tônica. A frase título, com sua melodia descendente por degraus ascendentes, movimenta-se da tônica para a diminuta, na primeira parte da cadência. E nesta frase se encontra o ponto de partida para a volta que a lua vai dar em algumas canções de Caetano.

Giulietta Masina

No álbum de 1987, Caetano canta uma ode à esposa e musa de Fellini. Nela aparece a primeira citação do verso descendente em degraus. Mas agora cumpre perceber um contexto harmônico diverso: Lua, lua, lua, lua agora surge exatamente no passo segunte da cadência da canção original, na passagem de segundo grau para dominante, o II/V. Como se a lua prosseguisse seu caminho no céu. Porém, há uma diferença: Giulieta Masina é uma canção em tom menor no modo dórico, e o II/V, em vez de ser uma passagem harmônica, agora é a sua sustentação básica. Esta canção tem uma harmonia em suspenso, como que sempre a caminho de se resolver na tônica, e sempre voltando ao aparente segundo grau, que é efetivamente o tom. Esta harmonia em suspenso ao mesmo tempo faz a lua flutuar no ar e evita a conclusão.

Mas esta não é a única citação de Giuliella Masina. Há outras duas: uma incidental, da melodia de Leãozinho na guitarra, já quase no fade out. E outra, que nos interessa mais: sobre a mesma harmonia deslizante do II/V, Caetano entoa um outro verso, de outra canção: existirmos, a que será que se destina?

Cajuína (os primeiros segundos do vídeo são do encerramento de outra canção, O ciúme, postos por engano)

A história de Cajuína, do álbum de 1979 de Caetano, Cinema Transcedental, é conhecida: foi feita para Dr. Heli, o pai do poeta piauiense Torquato Neto, depois do suicídio de Torquato (a história, contada pelo próprio Caetano, está aqui). Em Cajuína (como em Lua, lua…), o verso em questão abre a canção, como uma porta que se abre para que a história seja contada implicitamente, assim como o suicídio de Torquato paira sobre a pergunta. Esta idéia de abertura se traduz harmonicamente no tom menor que inicia uma cadência simples e muito próxima à de Lua, lua, lua, lua: da tônica para o quarto grau (em Lua, lua o quarto grau é substituído pelo acorde relativo menor, com a mesma função), deste para a dominante, e de volta à tônica, numa cadência inicial que se estenderá logo adiante.

Porém, ao ser citada em Giulietta Masina, a pergunta de Caetano, de introdutória, torna-se retórica, numa harmonia que, em termos tonais, não sai do lugar, e soa como posta entre parêntesis – e isso apesar da manutenção tanto da melodia quanto dos acordes que a acompanham, pois o que muda é a sua função. E com esta mudança, a inquirição dura e inconformada de Cajuína prescinde de resposta em Giulietta Masina, como que refletindo a reflexão suscitada no filme – vídeo de uma outra luz.

Em Cajuína, e Giulietta Masina, Caetano é acompanhado por formações instrumentais de grupo (na primeira, pela Outra Banda da Terra: Tomás Improta – teclados; Vinícius Cantuária – bateria; Arnaldo Brandão – baixo; e Bolão – percussões, e mais Dominguinhos e o próprio Caetano ao violão DiGiorgio), num suave contraste com os dois instrumentos de Lua, lua, lua, lua. Em 1991, no álbum Circuladô, ele voltou à formação de duo para mais uma etapa da órbita lunar.

Lindeza

Com Caetano ao violão e Ryuichi Sakamoto nos teclados, Lindeza é como um corolário de Lua, lua, lua, lua, em sua postura contemplativa. Porém, não há exatamente um sentido de conclusão, nem uma relação direta entre as duas canções. Ainda assim, há um sentido na terceira citação do mesmo verso. A primeira coisa a aventar seria que este agora estivesse na conclusão da cadência, que fosse cantado com a harmonia indo da dominante à tônica, terminando a trajetória iniciada em Lua, lua, lua, lua e continuada, sob outro contexto tonal, em Giulieta Masina. Entretanto, não é isto que acontece. Aqui o verso se encontra exatamente no espaço harmônico entre uma e outra: se na primeira canção ele ia da tônica à diminuta e na seguinte ia do segundo grau ao quinto, agora ele faz a passagem da diminuta para o segundo grau que executará o II/V, mas que é por sua vez adiado por outro II/V um tom acima, em empréstimo modal – um adiamento da definição, como uma órbita secundária a desembocar na principal. O desenvolvimento de sentidos do verso não se dá pela sua óbvia conclusão, mas pela descoberta de mais uma possibilidade de alocação harmônica. O que em Lua, lua, lua, lua era o lançamento de um mote a ser glosado e em Giulieta Masina era um comentário lateral adjetivo à personagem/tema/título, em Lindeza é exemplo definitório do tema/título, que por sua vez atribui retroativamente adjetivos às outras duas canções: o tema lindeza refrere-se ao tema lua e ao tema Giulietta. E por tabela a pergunta existencial de Cajuína, citada ao lado do verso Lua, lua…, ressoa também aqui, como um eco distante, já sem a dramaticidade de Cajuína, mas como parte da contemplação.

Mas há um outra leitura em que o verso tema deste artigo aparece com a forma de uma conclusão. Apenas esta não se dá na questão harmônica, mas na estrutural. Pois se em Lua, Lua, lua, lua, o verso é o inicial, em Giulietta Masina ele surge ainda na primeira estrofe, mas já em seu desenvolvimento, antes da parte B. E em Lindeza, ele é cantado na repetição da parte A, depois da B – diferença sutil, mas que já é a preparação para o fim da canção. Assim, ele se apresenta conclusivo, sem que sua harmonia o seja e sem mudar uma nota sequer, apenas por seu posicionamento na composição.

Todo este artigo baseado em sutilezas harmônicas pode parecer árido para não músicos. Paciência. Aquilo que se ouve sem se ouvir, que o sentido dá sentido sem passar pela impressão consciente, pode ter diversos caminhos de racionalização. Mas não há nada melhor do que ouvir o que se racionaliza, para poder sentir junto, e para isso os vídeos. Falta apenas falar de um detalhe: o acorde final de Lindeza, em que Sakamoto explora o extremamente grave e o extremamente agudo do piano, numa lancinância de acorde aproximadamente na dominante – ou seja, sem resolução – e que vai aos píncaros, como uma estrela cintilando, dolorosamente belo. Caetano usa os silêncios para falar de beleza e lua, desde o estanca da primeira canção, acompanhado por uma pausa no instrumental, até o ressoar deste último acorde, útimo som do álbum Circuladô, cintilando mesmo depois de o som desaparecer, internamente, na harmonia das esferas.

A trajetória do verso lua, lua, lua, lua certamente não é pensada e planejada, mas foi surgindo ao acaso das composições de Caetano, que tem com a lua uma questão (dedicou a ela outras canções, como Lua de São Jorge). Estas canções emaranhadas entre si não formam em si mesmas uma unidade, nem havia a intenção disso. Mas elas servem de sustentação, como uma coluna feita por colunas menores que se apoiam umas nas outras, de modo a dar à obra de Caetano uma parte de sua consistência e altitude. A citação a si mesmo, mais ainda que a alheia, precisa ser ressignificação, acrescentamento. Caetano é mestre nisso. Cada lua que ele canta é uma nova lua. Ou cheia.

E feliz 2013 para todos, são os votos do blog.