Sobre um procedimento buarquiano

Arthur Nestrovski, em suas aulas show com Zé Miguel Wisnik, mostra predileção por uma canção do primeiro álbum de Chico Buarque, Sonho de um carnaval, e costuma apontar a maestria da composição de um autor tão jovem, que constrói uma expectativa crescente com uma melodia ascendente – E brinquei e gritei e fui vestido de rei – para logo em seguida pousar suavemente na descendente da esperança frustrada: Quarta-feira sempre desce o pano.

 

 

 

Mas em seguida Nestrovski chama a atenção para algo ainda mais sutil, um detalhe anda mais brilhante, que é o fato de, nas duas primeira palavras, Chico ter feito como que um lead de toda a canção que a resume com uma concisão impressionante: Carnaval, desengano. A sucessão destas duas palavras se dá seguindo a mesma técnica: melodia ascendente trazendo uma  promessa, seguida do desencanto, do desengano, da frustração descendente – e aqui o intervalo de tempo entre as duas palavras é medido com precisão, como uma pedra atirada para o ar e que, no ponto mais alto de sua trajetória, como que paira por um segundo, flutua, preparando o mergulho, e permitindo ao ouvinte fruir daquela esperança que será logo depois despedaçada.

Some-se a isso a elipse. Carnaval / desengano admite um sem numero de elucubrações sobre o que terá acontecido para que um diagnóstico pessimista como este tenha sido emitido. Estes dois versos são um lead emocional de toda a canção, mas não trazem toda a informação, antes aguçam a curiosidade. Entre eles pode haver um mundo.

Portanto, temos aqui uma técnica acabada, que inclui, além do contraste agudo-expectativa / grave-desilusão, um espaço entre os versos que é tanto físico (uma pausa, eventualmente maior até do que seria previsível) e de significação, deixando ao ouvinte completar o sentido do que é dito. Esta foi apenas a primeira vez em que Chico se utilizou deste expediente, que se presta a múltiplos usos e possibilidades. Destacamos aqui, portanto, outras duas delas, de sua produção  mais recente.

 

 

Barafunda, do álbum de 2011, é uma parceria com Ivan Lins, o que significa que Chico construiu o estratagema sobre uma melodia alheia. Os versos Juro que vi aquela bola entrar na gaveta / tiro de meta cumprem exatamente os parâmetros expectativa / decepção. Quase dá para ouvir a torcida gritando uuuuh! na comprida pausa pausa entre os versos, ainda um pouco esticada malandramente pela interpretação de Chico, que também diminui o volume da voz no segundo verso. Como se não bastasse, o desenho  melódico de Ivan, aproveitado por Chico, desenha com precisão a parábola percorrida pela bola, ou seja, o primeiro verso, mais comprido, não é apenas ascendente, mas cumpre uma pequena descendente no fim, como a bola chutada ao se aproximar do gol. A conclusão da jogada não é narrada pelo locutor da lembrança, há um corte, pontuado pela pausa entre os versos, entre a bola se aproximando e o momento seguinte, em que o goleiro já a repõe em jogo. O instante em que a bola vai para fora terá que ser completado pelo ouvinte.

 

E no álbum anterior, de 2006, Chico outra vez recorre à técnica, agora em Subúrbio. Diferentemente da aplicação ligeiramente verborrágica de Barafunda, aqui ele retoma a concisão. Na letra dedicada à Zona Norte do Rio de Janeiro, ele diz: Lá tem Jesus / Está de costas. Novamente a melodia, desta vez assinada por ele, sobe – neste caso, aos céus – sugerindo algo que, pelo senso comum, seria bom, para em seguida puxar o tapete do ouvinte e desapontá-lo numa melodia que, sem chegar a ser descendente, mantém-se num patamar mais grave.

E, assim como das outras vezes, há uma pausa quase no limite do dramático entre os dois versos, que permite que floresça na mente do ouvinte a significação que será derrubada adiante. Neste caso, Chico lança mão de uma polissemia que duplica o ouvinte o efeito de desapontamento, ao mudar de um verso para o outro a acepção imediata do que diz, mas mantendo o significado de fundo. Pois quando fala em Jesus no primeiro verso, a alusão à proliferação de igrejas neopentecostais pelo subúrbio se soma à noção de uma religiosidade em geral, mais difundida na população mais pobre. E no segundo verso, a guinada no sentido: ele se refere ao Cristo Redentor, voltado para o mar, mas novamente a significação inicial volta à mente e agora significando o desamparo da região. Em seis palavras, Chico então evoca em sequência as ideias de proteção divina, igrejas evangélicas, a estátua do Cristo Redentor e novamente proteção divina, uma substituindo e somando-se à outra e esta última, ao retornar, ressignificada pela alusão à estátua feita pelo homem (e portanto quem está de costas não é o Cristo, mas os que o construíram), e cumprindo a noção de desapontamento pela constatação de sua falta.

Em todos os casos, a harmonia tem uma coisa em comum: o segundo verso termina em suspensão. Em Sonho de um carnaval, a primeira palavra está na tônica, para ficar em suspenso a segunda. Nas outras duas, até o primeiro verso está em um acorde inconcluso, sugerindo a conclusão no seguinte – que não vem. Esta é apenas uma das técnicas de composição de Chico, que, mais que estritamente musical, é de linguagem. E estas são apenas algumas das duas composições que a utilizam. Há outras que a aplicam em menor medida ou com menor efeito, como o Samba do grande amor (Tinha cá pra mim que agora sim eu vivia enfim um grande amor / Mentira) ou o Último blues (Quando beija sua boca / e nada acontece). Dissecar estes procedimentos que produzem uma profusão de significados em tão grande concisão não é algo que tire o encanto de ouvir as canções onde se encontram, antes o multiplica. Pois, e sobretudo em tempos atuais de intolerância e incompreensão, a obra de arte serve tanto para sentir quanto para pensar, entender, e entender-se.

Canções de guerra, canções de amor

Não é suficientemente difundida, mas deveria, a história de como a canção Novo Tempo, de Ivan Lins e Vitor Martins, por muito pouco não foi gravada por Michael Jackson no álbum Thriller. Eles foram contatados pela produção, negociaram os termos do contrato, mas quando este foi enviado, não respeitava nada do acertado, tinha termos draconianos. Ele mesmo conta, em entrevistas à revista Época e ao jornal O Globo:

– E a história de que o Quincy (Jones, produtor de Thriller) tinha selecionado uma música sua para o disco Thriller, do Michael Jackson? É verdade?
Ivan – Sim, é verdade mesmo! Assim como Quincy , me deu uma ajuda inestimável (Quincy deu um grande impulso na carreira internacional de Ivan), o advogado dele conseguiu tirar minha música do Thriller (risos). Eles haviam escolhido Novo Tempo, minha e do Vitor Martins. Mas, quando chegou o contrato, não teve acordo. O advogado queria que a gente cedesse todos os direitos. Eu não podia assinar aquilo. A gente sonhava em fazer um grande sucesso internacional, mas não a esse preço. Na verdade, eu e o Vitor, quando recusamos o contrato, não sabíamos que a música já estava incluída no Thriller.

– Você sabe se ela chegou a ser gravada?
Ivan – Há alguns meses, me disseram que existe uma gravação do ensaio do disco. Mas, até agora, essa gravação não apareceu. Não sei se é verdade. Mas também não posso querer tudo, né? Hoje, eu faço piada disso. Se o Michael tivesse gravado Novo tempo, eu estaria morando nas Ilhas Fiji e vocês não teriam o prazer de ouvir minhas músicas (risos).

Enquanto os advogados se digladiavam, o Quincy chegou a me mostrar, por telefone, umas ideias que estavam tendo para nossa música. E o letrista ia ser Rod Temperton, que me ligou um dia para saber o que dizia a letra em português. Falei que era sobre esperança de um mundo melhor, e me lembro muito bem da frase que ele disse: “Oh, Michael is gonna love that!” (O Michael vai adorar!”)

O que é que tornou a obra de Ivan Lins o sucesso internacional que é hoje, querida e gravada por cantoras como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Carmen MacRae, entre outras? Para além da inegável qualidade, da relação harmonia/melodia e da estruturação sólida de suas canções, há algo mais, que talvez possa ser definido como um sotaque específico que, sem perder a referência brasileira, torna-se palatável e mesmo traduzível facilmente. Isto se dá sem dúvida pela influência jazzística que Ivan carrega desde o começo de sua carreira. Mas há algo mais, que envolve mesmo as letras de Vitor Martins. Não se trata tanto das referências à cultura brasileira. Estas são tão encontráveis na obra de Ivan quanto nas de Caetano Veloso ou Chico Buarque. O que as faz diferentes e permite uma abordagem mais fácil por parte do estrangeiro é a forma destas referências. Boa parte das canções de Caetano, por exemplo, exige do ouvinte um mergulho aprofundado no universo que as alimenta, sem o qual perdem bastante em termos de leitura.

Tomemos uma canção como O Estrangeiro, de que já tratei aqui, há tempos. Mesmo que a canção possa ser ouvida sem se ter em mente questões específicas do Brasil, sem dúvida perde-se muito ao não levá-las em consideração. Nas canções de Ivan, obviamente isto também ocorre, mas de modo diferente, e mesmo em menor grau. Numa palavra, e correndo o risco de fazer uma generalização, elas sobrevivem melhor à desreferencialização. Permanecem muito mais íntegras que as de outros compositores, mesmo quando recebem versões. Sua ênfase composicional está na construção da canção, mais do que na construção de diversas camadas de leituras. ou estas leituras atuam de forma muito mais independente umas das outras.

Isto também não significa que Ivan tenha se descolado da realidade brasileira, muito ao contrário, já que ele é um militante político desde o início de sua carreira, e nunca se furtou de tratar do assunto em suas canções. A própria Novo tempo é fundamentalmente um balanço da abertura política em curso no ano de seu lançamento, 1980, logo após a aprovação da Lei da Anistia. No entanto, isto não teria impedido que Michael Jackson a tivesse gravado com a intenção determinada por Ivan no telefonema de Rod Temperton: uma canção sobre a esperança de um mundo melhor. A significação política brasileira não a diminui, mas o caráter universal se superpõe e, dependendo da circunstância, se impõe. Uma canção do mesmo período de Chico Buarque dificilmente teria a possibilidade de ser lida desta forma, o que não a torna nem mais nem menos datada. É de diferenças no ponto de partida da criação artística que estamos tratando.

Os álbuns e as canções de Ivan na segunda metade dos anos 1970, primeiros anos de sua parceria com Vitor, são ao mesmo tempo os momentos de amadurecimento da forma composicional de Ivan, que o levaram a ser descoberto pelo produtor Quincy Jones (através do percussionista brasileiro radicado nos EUA Paulinho da Costa), que apresentou sua música a inúmeros músicos norteamericanos, e uma etapa de participação política muito intensa. Neste período, enquanto seu som se tornava mais internacional, ele fazia um inventário e um balanço particulares do Brasil, revendo o passado e apontando o futuro. Novo tempo é como que a conclusão deste processo, que se inicia muito antes.

Aos Nossos filhos – 1978

O anti-acalanto que encerra o álbum Nos dias de hoje é um acerto de contas com o passado, na forma de uma carta para o futuro. Ivan e Vitor rememoram os anos de chumbo, que então aproximavam-se vagarosamente do fim, e expressam a tênue esperança de dias melhores, ainda que não para eles próprios. Nas canções de Ivan, um elemento interessante de ser analisado é a terminação das frases musicais. Assim como os saltos melódicos amplos, um dos elementos que o torna preferido dos intérpretes, a terminação ascendente é quase uma marca registrada dele, expressando de certa forma um otimismo implícito, quase sempre traduzido em versos correspondentes por Vitor Martins. Em Aos nossos filhos, no entanto, os versos finais da primeira e da segunda estrofes (o ciclo de três estrofes se repete na segunda parte) terminam descendentes, como a expressão de um cansaço, um desânimo após uma luta intensa, ao passo que a terceira estrofe, de melodia repetida na última, termina ascendente, mas por sua vez carregada de tensão, como que num esforço sobre-humano de otimismo, num rasgo de esperança quase forçado.

Aos nossos filhos é o retrato de um tempo sombrio e de sua herança. Mas no álbum seguinte, Ivan e Vitor trariam uma canção que seria como que a demostração do caminho da mudança a ser trilhado.

Começar de Novo – 1979 (em gravação mais recente)

Começar de novo é a demostração cabal da dicotomia política/amorosa de Ivan Lins. Em seu sítio eletrônico, o próprio Ivan conta que ela foi composta com a intenção de ter uma dupla leitura:

A letra, que não traz definição de gênero (não fala nem no feminino nem no masculino), na verdade era uma profunda e muito criativa crítica à ditadura militar, com menções inclusive ao presidente Figueiredo, mas elaborada de maneira que a ambigüidade não prejudica nem a crítica política e nem o sentido amoroso da canção, além de ter conseguido driblar a terrível censura que sofriam os artistas da época.

(A menção a Figueiredo está nas esporas, já que ele era um entusiasta de esportes hípicos, e chegou a declarar que preferia cheiro de cavalo ao de povo.)

O uso deste duplo vínculo político/amoroso não era novidade na MPB que driblava a censura pra se manifestar contra o totalitarismo. Entre muitas outras, Apesar de você, de Chico Buarque, usava este mesmo expediente. A diferença é que a canção de Chico mal disfarçava sua índole, mantendo as duas leituras geminadas, interdependentes – o que não a impede de se perenizar para além do contexto específico para o qual foi feita. Prova disso é justamente a reação da censura, ao finalmente se dar conta do caráter subversivo da canção – os compactos à venda foram recolhidos e a Apesar de você foi peremptoriamente proibida. Começar de novo, por sua vez, tornou-se abertura de uma série de sucesso da Rede Globo, Malu Mulher. Embora esta série tenha sido considerada avançada para a época pelo viés feminista, por retratar uma mulher descasada e com vida profissional, ainda assim, nela a leitura da canção de Ivan Lins é predominantemente da relação a dois, e isto se dá porque as duas leituras possíveis permanecem independentes. Isto permitiu, por exemplo, a versão em inglês de Alan & Marilyn Bergman cantada por Barbra Streisand, com o estranho título de The island (!)

De qualquer forma, Começar de novo representa um passo adiante em relação a Aos nossos filhos. Diferentemente desta, tem todos os versos terminados em curva ascendente. Permanece a tônica da avaliação do passado versus apontamento de possibilidades de futuro, mas desta vez a visão é eminentemente otimista, e as benesses que virão serão aproveitadas não pela geração segunte, mas pelo próprio eu lírico. Retomada pessoal/coletiva que abre caminho para

Novo tempo (o título está errado no vídeo) – 1980

Novo tempo é uma das canções mais otimistas que se pode imaginar, uma trilha sonora da abertura política, com a anistia no ano anterior, e que desembocaria na redemocratização poucos anos depois. O furação parecia ter passado. Ao contrário das baladas precedentes, Novo tempo tem um andamento apropriado para uma caminhada, o que pode trazer a associação com uma manifestação popular, reforçada pelos versos a gente se encontra / cantando na praça (particularmente, me lembra Penny Lane, com o piano bem ritmado dando o tom da atmosfera otimista de ambas – impressão reforçada especialmente quando um trompete faz frases de ligação entre as estrofes, assim como na canção dos Beatles.)

Ivan usa aqui um recurso recorrente em suas melodias: a frase que vai sendo repetida cada vez mais aguda, como em Estamos crescidos / estamos atentos / estamos mais vivos e no refrão (agora frases descendentes, mas sempre com um salto para o agudo na última sílaba, como que não admitindo o menor traço de desânimo) Pra que nossa esperança / seja mais que a vingança / seja sempre um caminho / que se deixa de herança. Porém, desta vez o agudo final não soa como um esforço, mas como uma consequência natural, uma conclusão, uma reafirmação: dias melhores já estão vindo.

Dois termos usados por Vitor Martins em Novo tempo traçam a continuidade com as canções anteriores: Pra nos socorrer, verso repetido várias vezes ao longo da canção, com o verbo aplicado de forma pouco usual, assim como em Começar de novo (no verso Ter me socorrido); e, de forma mais sutil, os versos finais, citados logo acima, todos eles uma resposta a Aos nossos filhos. Apenas dois anos antes Ivan e Vitor pareciam mal enxergar um legado a ser deixado, a ponto de pedirem uma espécie de herança às avessas: Quando colherem os frutos / digam o gosto pra mim. Apesar de tudo, havia sementes plantadas, mas a realidade só justificava o canto acabrunhado de um pedido de perdão. Novo tempo é o panorama oposto: as sementes estão frutificando, não há porque pedir perdão. De certa forma, é a canção dos filhos: apesar dos castigos / estamos crescidos.

E no entanto, Michael Jackson (ou melhor, Rod Temperton, ou a síntese de Ivan para ele) não estava errado. Novo tempo é, sim, uma canção sobre a esperança de um mundo melhor, nada menos. Assim como Aos nossos filhos pode ser a carta de toda geração à seguinte, desde o início dos tempos. As canções de Ivan Lins e Vitor Martins tem esta capacidade de permitirem leituras sobrepostas porém estanques, e o fazem sem perder um pingo de sua densidade. Se o sucesso no exterior se dá em detrimento de uma das possibilidades de entendimento, pior para os gringos, e se Novo tempo não entrou em Thriller unicamente por desentendimentos jurídicos – e falo muito sério agora – pior para o Michael, que perdeu a oportunidade de trazer para seu universo (vide canções posteriores dele como Heal the world) e universalizar uma tremenda canção. Oportunidade que Elis Regina fez questão de não desperdiçar, e cuja inacreditável interpretação de Aos nossos filhos em um especial de TV em 1980 fica como brinde.

De peixes e peixinhos

O que não falta no mercado hoje são filhos de cantores, compositores, instrumentistas, que seguiram a profissão dos pais. Nada mais natural, por um lado. É algo que me lembra as associações de ofícios da Idade Média, em que os artesãos passavam suas profissões adiante por gerações – e o trabalho com arte é sem dúvida um ofício artesanal ainda hoje, mesmo quando pensado para ser consumido por uma massa anônima e desconhecida, o que é uma de suas contradições inerentes.

Por outro lado, é algo que não deixa de me incomodar (em parte, claro, por eu não ser filho de ninguém famoso…), pela quantidade de filhos de músicos que não conseguiram nunca sair de baixo da sombra das obras dos pais – o que também não deve, ou não deveria, ser nada fácil para eles. Porém, noves fora os que abertamente tem carreiras fabricadas, e dos quais me eximo de falar, há casos dos que até tentaram se libertar desta sombra em suas carreiras, mas não conseguiram mostrar qualidades próprias que fossem superiores às semelhanças com seus predecessores, fossem físicas, vocais, ou de estilo.

Lembro bem quando Maria Rita, filha de Elis Regina e do grande pianista e arranjador Cesar Camargo Mariano, surgiu na mídia, apadrinhada por Milton Nascimento. Houve uma comoção no país, não exatamente pelo seu trabalho, ainda incipiente, mas pela semelhança da voz dela com a da mãe. O primeiro álbum, e também o segundo, seguiram trilhas de repertório próximas dos de Elis, e até a escolha de compositores novos, em vez de afastá-la, aproximava, já que a mãe fazia o mesmo – inclusive com o próprio Milton. A coisa chegou a ponto de o cantor Lobão ter dito em entrevista que assistia o maior fenômeno de necrofilia da história do Brasil. Talvez tenha sido por isso que Maria Rita, a partir do terceiro álbum, tenha enveredado por um caminho diferente, cantando sambas: para firmar uma carreira longe da pecha de filha da maior cantora que o país já teve.

Já Diogo Nogueira não parece ter constrangimento com a sua filiação. É filho do grande  sambista João Nogueira, de excepcionais composições. Seu primeiro álbum, de 2001, chamava-se Um sonho através do espelho, em referência ao álbum Espelho às canções Espelho e Além do espelho, de seu pai. Porém, curiosamente, este álbum é ignorado na discografia oficial de seu site.

Sendo assim, considere-se que Diogo foi lançado por um CD/DVD ao vivo – bastante cacife para alguém que não tinha um repertório gravado. Gravou vários sambas do repertório do pai, e composições novas, algumas com sua participação na autoria. E seu “primeiro”  CD de estúdio, então, tem nada menos que uma parceria de Ivan Lins e Chico Buarque, Sou eu, que foi direto para a trilha da novela e para as rádios.

Sou eu – Diogo Nogueira, com uma participação pouco perceptível de Chico Buarque.

Sou eu conta a história do sujeito que leva a moça para o samba, atura que ela jogue charme para todos os lados, com o consolo de que no fim da noite será ele seu acompanhante. É uma situação dúbia, em que não fica claro se o protagonista é um cara de sorte ou um fraco que não é respeitado pela namorada. Sendo cantado na primeira pessoa, é óbvio que o refrão será um meio de tentar transformar a situação embaraçosa em contação de vantagem. Mas há um detalhe na harmonia de Ivan Lins que contribui para solapar este grand finale: os acordes do refrão não se resolvem, escorregam de dominante em dominante e impedem que o “sou eu” repetido na letra se transforme em afirmação peremptória. Fica sempre a impressão de que esta assertiva tão firme na verdade é usada para disfarçar a insegurança de quem não sabe se é namorado ou chofer da moça em questão.

Por isso mesmo, não me agrada particularmente o fim da gravação do Diogo, em que ele coloca cacos na letra e se empolga na tiração de onda. Dizendo coisas como “modéstia à parte” e se intitulando “o rei do pedaço”, ele acaba com esta ambiguidade que é o grande trunfo do samba, recusando o papel do sofrido algo humorístico, que é comum na obra de Chico (em Ela é dançarina e Até o fim, por exemplo), em favor de um papel de malandro que é bem mais pobre. Fica a impressão de que Diogo não entendeu perfeitamente o espírito da coisa.

Mas o que mais me chama a atenção neste samba não é isto. O samba Sou eu é todo baseado em um motivo melódico de seis ou sete notas descendentes, dependendo da frase da letra, que pode ser ouvido em “Pra quem que ela arrasta asa?”, por exemplo, além do refrão. Acontece que esta é a mesma frase melódica, com uma divisão rítmica um pouco diferente, que serve de base para uma conhecida composição de João Nogueira.

Eu heim, Rosa! – João Nogueira, do álbum Parceria, com Paulo Cesar Pinheiro

Esta gravação com o próprio João pode não ser a melhor para perceber a semelhança, pois, já sem a agilidade vocal de outros tempos, ele malandramente aplaina a melodia descendente de “Se manca, segura essa banca de escrupulosa”, só apresentando a frase original ao cantar a primeira estrofe. Mas a gravação de Elis Regina deixa clara a semelhança. Em Eu, hein, Rosa!, o motivo melódico aparece na frase que já citei, mas também, reduzido para cinco notas, em frases como “quando precisar de mim”, ou estendido em “apelar pra ignorância é uma coisa indecorosa”

Eu heim, Rosa! – com Elis Regina, ao vivo

Muito bem, e daí? Será que é proibido fazer sambas baseados em melodias descendentes, apenas porque João Nogueira fez um? Imaginar que Ivan Lins tenha feito uma melodia propositalmente parecida com a de João para Diogo me parece absurdo. A hipótese de que Ivan tenha se influenciado involuntariamente pelo fraseado do pai ao compor para o filho já não me soa tão despropositada.

Mas o essencial nesta semelhança, sem dúvida, não é culpabilizar compositores ou cantores, e sim perceber o quanto esta semelhança pode ser utilizada numa estratégia de marketing, e o quanto esta utilização pode chegar a extremos de detalhe – como uma linha melódica. Quando Maria Rita se lançou cantora, a identificação com o mito que é sua mãe foi explorada cuidadosamente, fosse ou não confortável para ela – e nem sempre parecia confortável, sendo descartada quando a artista amadureceu – ou quando deixou de ser lucrativa. No caso de Diogo Nogueira, esta identificação está sendo feita de forma mais suave, guardadas as proporções entre Elis e João Nogueira, e Diogo parece bem mais à vontade. Talvez ambos consigam firmar carreiras de real significância na música brasileira, no sentido de apontar caminhos, e escapem da comparação com seus pais. Boa sorte para eles. Graças ou apesar de seus empresários.

O voto – e o que vale agora?

Forró do Largo, de Ivan Lins e Vitor Martins, é do álbum Nos Dias de Hoje, de 1978, um momento em que uma tímida abertura começava a ser vislumbrada no país. É quase toda ela um xote despretensioso, narrando pela centésima vez a história do sujeito que do forró vai para o mato com a menina (Só Luiz Gonzaga deve ter uma dez dessas). E daí acorda dia seguinte sem pai nem mãe. Até que chegamos à última estrofe:

Do forró do largo, o que lhe restou
Foi o “tito” d’eleitor, que ninguém quis lhe roubar
E que naquela hora lhe valeu o que vale agora.
(E o que vale agora?)

Sempre achei engraçado esta crítica política enfiada à força no fim da música. Era uma época em que isto soava justificado, assim como a foto fake de Ivan fichado pela polícia que ilustra a capa do álbum. Mas não custa perguntar de que dias de hoje falamos, afinal, quando manifestos pró-candidatos estão sendo divulgados com nomes igualmente enfiados à força (o de Ivan Lins estava no do Serra, sem autorização).

Mas o que me interessa mesmo é a pergunta final que Ivan repete no fim da canção. Em 1978, Figueiredo foi “eleito” presidente indiretamente pelo Congresso, Congresso este eleito nas circunstâncias que se pode ler aqui. A sensação – correta, em sua maior parte – de que o voto não valia nada, pareceu desfazer-se com a redemocratização, para hoje ameaçar voltar em grande parte da população.

Então, sem a pretensão de fazer uma tese acadêmica, acho que cabe fazer novamente a pergunta da letra de Vitor Martins. E pensar no que o voto de cada um pode contribuir para uma construção de país, se o voto é eficaz, se é suficiente, o que mais se pode e precisa fazer, e como novas formas de manifestação – como as redes sociais, que serviram tanto para propagar a histeria sobre o aborto quanto para ridicularizar a farsa da bolinha de papel – são, ou poderão ser, instrumentos de democracia válidos à medida em que estejam acessíveis a todos, tanto quanto o voto. Pois que o voto é algo que deve ser instrumentalizado por acesso à informação não manipulada por interesses corporativos, coisa que, creio eu, tende a se democratizar, assim como a produção e distribuição de música se democratizou com a derrocada da indústria de disco e as possibilidades da Internet. Algo que talvez não dependa tanto de ações políticas e de controles sociais da mídia (ao qual sou favorável dentro da democracia, mas é outra discussão), e sim de um processo histórico de descentralização da informação que enxergo, para bem e para mal,  inevitável, um anti-1984, anti-anti-utopia.

Enfim, era isso. A meditar para este domingo. E todos os próximos.

Forró do Largo – Ivan Lins