A Antropofagia contra o Fascismo

A trajetória de Tom Zé é conhecida, mas ainda assim espantosa. Tendo integrado ativamente o grupo que forjou a Tropicália, uma das vertentes mais importantes da história da música brasileira, em seu trabalho posterior ele foi se afastando progressivamente até cair em um ostracismo que durou mais de uma década, e este até ter sua produção descoberta por David Byrne e ter seu reconhecimento de volta, e amplificado. Tom Zé já declarou mais de uma vez ter descoberto em sua análise um processo de auto-sabotagem que o levou a quase acabar com a própria carreira.

Em 2003, Tom Zé lançou o livro Tropicalista Lenta Luta, (teria o título muito melhor Tropicália jacta est, de que Tom Zé abdicou por modéstia, para que não pensassem que ele reivindicava ter lançado a Tropicália) que, entre tratar de sua infância e reunir textos diversos, traz também uma entrevista dele a Luiz Tatit e Arthur Nestrovsli. E nela Tatit apresenta a Tom Zé uma teoria sobre sua obra recente que merece ser lida e explorada.

Luiz Tatit – Queria levantar com você uma coisa. Mais para levantar uma lebre, mas acho que seria interessante se a gente explicitasse isso. é uma leitura que faço da sua trajetória, com esse texto que você escreveu (“Tropicalista lenta luta”), foi muito mais fácil chegar a uma conclusão. Diz respeito ao Tropicalismo. Vem a ser o seguinte: você vai repetindo aí muitas vezes a ideia do “isso se deve ao meu analfabetismo musical”…

Tom Zé – Certo.

LT – Seu estilo de “plágio”, a estética do “arrastão” (o uso de outros compositores na sua própria música), que você já elaborou e tal. Ao mesmo tempo, naquele texto você fala de uma coisa que me pareceu muito reveladora, que é a questão do contrato implícito, contrato tácito…

TZ- Acordo tácito.

LT – Acordo tácito que haveria entre ouvintes e cantores de  uma determinada época. Você percebeu aquilo, subjacente em todos os lugares e sentia que jamais poderia participar daquele acordo – não daria certo, você mostraria sempre certa insuficiência, às vezes na voz, às vezes na maneira de compor, às vezes…

TZ – …na [falta de] coragem para fazer um negócio tão…

LT – Exatamente. Por outro lado, você começou a produzir nesse intervalo mesmo das coisas que não chegam lá, mas ao mesmo tempo estão. Assim, pelo menos, você conseguia tomar a peito, tomar controle daqueles elementos que não chegava a fazer parte do contrato; ao mesmo tempo, você começou a desvendar um novo contrato possível, um novo acordo…

TZ – Acordo tácito.

LT – O acordo tácito. Então, essa ideia toda começou. Depois você chegou nos anos 90, com o disco Com defeito de fabricação. Quer dizer, as insuficiências do começo, depois parece que resultam nos “defeitos” dos anos 90 – com o maior sucesso. Você teve que ir para fora, até voltar coroado e tal. Acabou de certa forma impingindo os defeitos lá fora. Foram aceitos por lá; depois voltou com os defeitos já como uma espécie de recurso de composição extraordinário. Que então deu origem aos Jogos de armar.

Se são jogos de armar, são peças para se montar; portanto, incompletos. E essa ideia de incompletude é uma ideia de imperfeição, não é? Uma imperfeição o tempo inteiro. A ideia do perfeito é a coisa acabada; o imperfeito é a coisa pela metade, que está chegando lá. E na nossa tradição temos a ideia de que o imperfeito faz parte do nosso cotidiano, não é?

TZ – O imperfeito?

LT – O imperfeito é nosso cotidiano. Já as obras de arte, quando se consegue chegar a um produto interessante, a gente considera aquilo perfeito.

TZ – Certo.

LT – A estética é perfeita. Mas você parece que está extraindo sua estética de algo que é imperfeito, algo que é tipicamente cotidiano, não é?

TZ – É.

LT -E a grande questão é a seguinte: a leitura que eu faço, Tom Zé, o que acho interessante de a gente pensar é que a Tropicália, o Tropicalismo como um todo é algo quase contingente na sua trajetória. Uma contingência de propósitos, naquele momento. Seu projeto sempre foi outro: um projeto ligado a essas coisas, essas insuficiências, esses defeitos. O gesto inicial já está nessa direção, não? E não era esse o projeto do Tropicalismo: pelo contrário, era a canção dos anos 70, a canção popular, a canção pop dos anos 70. Seu projeto nunca foi esse.

TZ – Não.

LT – Naquele momento, houve uma confluência de fatores, claro; o Tropicalismo e você tinham interesse em música nova, tinham pontos em comum. Tinham tido a informação de vanguarda e tudo isso. Mas não tinham os mesmos propósitos, os projetos era diferentes. Então, não creio que seja interessante esse vínculo tão crucial entre Tom Zé e Tropicalismo.

TZ – É verdade.

LT – Seu projeto era outro, tanto que apareceu depois. Teve uma fase de incubação mais longa, mas apareceu depois. O que você acha?

TZ – Acho perfeito; e nunca tinha pensado assim. Até para minha psicanálise vai ajudar muito. É o que ela dizia – agora estou me lembrando que ela dizia coisa parecida: “Não é que lhe tiraram alguma coisa em certa ocasião (quando você se viu ‘exilado’ do Tropicalismo); é que você não tinha pronta a coisa, nem sua capacidade moral de tomar posse da coisa.” E você está me dizendo, por outro viés, que eu não tinha a coisa pronta. Não tinha mesmo. E aquele desvio para tentar fazer algo na bitola da música popular – vamos dizer que a direção era essa; se tivesse continuado naquilo, eu tinha me enterrado.

LT – Também acho. Não era ao seu projeto.

TZ – Não era. (…)

Esta teoria de Tatit tem inúmeros desdobramentos, e seu ponto central está teorizado de certa forma pelo próprio Tom Zé naquela que é a canção-manifesto do álbum Com defeito de fabricação (tanto que em sua descrição ganha o comentário: Espinha dorsal) e um nome que já entrega sua intenções: Esteticar.

 

Com defeito de fabricação, de 1998, é o segundo álbum de Tom Zé após sua ressurreição. No primeiro, The hips of tradition, ele atira para todo lado trazendo um material represado por anos. Neste, começa a esboçar-se a teoria que vai desembocar numa metodologia e num novo estilo, que vem norteando sua produção desde o álbum seguinte, Jogos de armar. Todas as faixas do álbum trazem uma pequena consideração que identifica o arrastão usado na faixa, a influência / plágio usada em sua construção, indo de Tchaikovsky e poesia concreta a Alfred Nobel e a dinamite. Nesta, informa: Arrastão dos baiões da roça. A disparidade de influências e origens evidenciada aqui vai se expressar tanto estética quanto politica e ideologicamente. Ao prenúncio do procedimento de criação por linhas de contraponto que ele passou a usar, soma-se aqui uma afirmação vigorosa do mestiço e da diferença, como que antevendo a ascensão de uma intelectualidade disposta a coibir a variedade e que se dispõe a transformar em moda o anti-humanismo, e contrapondo a ele a noção fundadora do nosso Modernismo de 22 e influenciadora direta da Tropicália: a Antropofagia.

Aqui cabe explicitar não exatamente uma discordância, mas um adendo à tese explanada por Tatit, e que contou com a concordância imediata de Tom Zé, vinda de um auto-reconhecimento de sua trajetória. Se Tatit explica com louvor o motivo por que Tom Zé se distanciou da Tropicália, não se detém no o levou a ela. Fala apenas numa contingência, numa confluência – a palavra mais adequada talvez seja convergência – de fatores e interesses que puseram lado a lado Tom Zé, Caetano e Gil, Bethânia e Gal. Pois a Antropofagia era o fator de união entre eles naquele momento, o que aglutinou seus esforços conjuntos para virarem de ponta cabeça a música brasileira, e que continua conduzindo o pensamento de Tom Zé desde então, para não dizer desde sempre.

Caetano Veloso já contou em várias ocasiões a epifania que permitiu a ele estabelecer na mente os fundamentos do que seria a Tropicália, definida por ele próprio como um neo-antropofagismo. A epifania se deu assistindo à montagem do Grupo Oficina para o Rei da Vela, de Oswald de Andrade. Se a MPB quase recém-nascida estendia a Bossa-Nova a todo o Brasil levando seus procedimentos estéticos ao baião, ao frevo, a Tropicália fazia movimento inverso e mais amplo, trazendo os procedimentos da música pop e contemporânea para cá. Estas forças centrípetas e centrífugas fatalmente entraram em choque. E no entanto, no texto de contracapa do álbum Tropicália, Caetano psicografa marotamente João Gilberto e coloca em sua boca a frase (em NY, conversando com Augusto de Campos): Diga que eu estou aqui, olhando para eles.

Como  diz Tatit, a Tropicália trazia para si as influências, mas com a intenção de colocá-las no formato da canção popular, subversiva dentro de parâmetros da indústria (o que é uma contradição dialética a ser resolvida, e justamente este é o cerne da Tropicália, resolver esta questão. Ainda na contracapa do álbum Tropicália, Caetano também psicografa Rogério Duprat: Como receberão [os baianos] a notícia de que o disco é feito para vender? Compare-se a frase com a de Oswald de Andrade, O povo ainda comerá do biscoito fino que fabrico, do Oswald de Andrade.) Porém, onde a Tropicália dizia mata, Tom Zé queria esfolar. Passando a outro paralelo, assim como o dodecafonismo se propôs a quebrar e reorganizar a escala tonal e o serialismo o sucedeu estendendo seus procedimentos de não-repetição ao ritmo e radicalizando ainda mais sua estética, Tom Zé se propôs a radicalizar a proposta tropicalista levando seu procedimento antropofágico à forma de maneira ainda mais profunda. E este foi o momento de partir.

Porém, voltemos a Esteticar. A letra da canção, na primeira pessoa, é dirigida a um interlocutor imaginário, que é tratado ironicamente de milord a única vez em que é nomeado, indicando a princípio tratar-se de um estrangeiro. Já o restante quase todo da letra trata da auto-identificação do eu-lírico, mas pelo ponto de vista do interlocutor: Pensa que eu sou…isso e aquilo, para afinal mandá-lo lamber, não sabão, mas tradução intersemiótica. Ou seja, Esteticar trata fundamentalmente de identidade, e da recusa em aceitar uma identidade imposta. Imposta por quem?

E aí há uma pista sutil que define melhor o personagem, permitindo-nos concluir que não se trata de um estrangeiro. Pois se é estrangeiro, para que precisaria de uma tradução? Define-se o interlocutor não como o estrangeiro de fato, mas de espírito, que tem como referência exclusiva ou principal, e subserviente, o estrangeiro. Mas há mais, e o restante da descrição deste a quem o baião é dirigido virá da forma como ele próprio enxerga o eu-lírico. Que é inteiramente de desprezo. Mas quem é o eu-lírico? Ora, é o próprio Tom Zé, oferecendo a própria pele como defensora dos valores que exaltará.

Pois a lista de palavras autodefinidoras é grande, mas três chamam a atenção de cara: caboclo, mulato, mameluco. Mestiço. Misturado. Ajuntadas a estas, uma enorme série de adjetivos pejorativos, boa parte deles aglutináveis no Jeca Tatu, personagem criado por Monteiro Lobato para definir o brasileiro do interior, abandonado pelo poder público, indigente cultural e social. Embora Lobato tenha destacado que o Jeca não é assim, ele está assim, sua figura lastimável – de caboclo – tornou-se preconceituosamente a um símbolo negativo de brasilidade. Assim, a mestiçagem é associada na canção – como é realmente – à indolência, à ignorância, à insignificância.

E aqui começa a se definir a real contraposição realizada por Tom Zé. O que inicialmente poderia parecer uma oposição entre brasileiro e estrangeiro se mostra na verdade entre misturado e… puro? Ou talvez pretensamente puro, assim como pretensamente estrangeiro. Ou mais definidamente, quem nega a mistura, quem nega a diferença ou atribui a ela a fonte do mal. Podemos esperar um pouco mais para nomeá-lo, mas há ainda outra pista: a tradução intersemiótica indica sarcasticamente uma intelectualidade vazia, porém que se opõe arrogantemente ao cabeça-oca, pateta, mongo, a imagem do populacho, da reles e rala ralé. Uma auto-nomeada elite, certamente não democrática e sim demofóbica, autoritária portanto, e baseada em teorias irreais ou distorcidas para exercer seu poder. Aficionada de valores estrangeiros, pode ainda assim se declarar ou ter a aparência de patriota, mas mal disfarçando seu desprezo pelo que não se enquadra no seu conceito particular de nação, não misturada, pura. Acho que agora há elementos suficientes. Trata-se do fascista, ou melhor, do fascismo.

Forte? Pois reveja as características, todas elas dedutíveis das poucas mas precisas indicações dadas por Tom Zé, sejam diretas ou por oposição ao personagem narrador. Mas a defesa do imperfeito, do insuficiente, do Com defeito de fabricação como virtude, como possibilidade de invenção e de um novo acordo com o ouvinte, e o ato de trazer esta atitude da vida comum para dentro do fazer artístico vai na exata contra-mão do pensamento que pretende levar uma pretensa perfeição artística para o dia-a-dia e enquadrar a realidade num ideal particular de beleza. Caetano Veloso, a respeito do surgimento do Tropicalismo, certa vez afirmou que a diferenciação com a linha mestra da MPB que se afirmava era porque eles buscavam o belo, enquanto os tropicalistas se interessavam de alguma maneira também pelo feio. Inversamente, o nazismo ascendente na Alemanha primeiro tratou de delimitar rigidamente a estética demonizando a arte contemporânea, para mais tarde aplicar estes critérios na população, eliminando deficientes, judeus e todos que não se enquadrassem no padrão étnico ariano – os mestiços.

De certa forma nego aqui a conclusão de Tatit, ao afirmar um forte ponto em comum entre o projeto de Tom Zé e a Tropicália. Mas não, em vez disso, entendendo o que os separou, enxergo algo mais aprofundado, um tronco comum entre ambos e que ainda os une hoje em suas diferenças. A Antropofagia, a capacidade de trazer a influência esterna, na filosofia de Tom Zé transmutou-se na Estética do Arrastão, no elogio da pluralidade e a capacidade de fazer ouvir diferentes vozes dentro do mesmo discurso, ou abrigar discursos diversos em seu trabalho. É possível mesmo, como chega a esboçar Tatit em outro ponto da entrevista, associar esta visão com o processo composicional que Tom Zé passou a utilizar a partir daí. A técnica do contraponto (não o de Bach, mas o de Stravinski, ele destaca), em que diferentes vozes, diferentes linhas melódicas instrumentais independentes se sobrepõem formando um emaranhado que serve de suporte para a melodia cantada/letra recitada, faz por sua vez um contraponto à noção de pluralidade e convivência de vozes e diferenças, tanto quanto a mistura de estilos e informações resultam em algo maior que a soma das partes em cada canção. A Estética do Arrastão é também a estética do mestiço, cuja maior força vem da própria impureza.

A letra de Esteticar tem ainda dois detalhesdignos de nota. Um deles é a apresentação da expressão estética do plágio, sucedânea da do arrastão e centro do refrão, por um jogo de armar silábico: Ca esteti ca estetu / Ca estética do plágio-iê, antecipando o processo de decomposição do álbum seguinte, Jogos de armar. Nele, a noção de pluralidade de vozes seria levada ao extremo pela possibilidade de desmontar e remontar as estruturas musicais, que são apresentadas separadamente em um CD extra. O próprio ouvinte passa a ter a possibilidade de interferir no discurso de Tom Zé e criar a partir dele, incorporando-se ao processo criativo, que não termina no CD gravado e vendido. O refrão de Esteticar alinha-se a este pensamento na estruturação da linguagem, como num ensaio para ampliá-lo à estruturação da própria linguagem musical. Assim também o pensamento de Tom Zé vai se refletindo em diferentes níveis linguísticos e estéticos, em cada um deles apresentando consequências diversas e alinhadas entre si.

Finalmente, duas frases de Tom Zé entremeando os versos colocam cores finais na sua tomada de posição. Help Tinhorão! Help Suassuna! O apelo aos dois maiores defensores da soberania cultural brasileira tem um teor dúbio, quase indecifrável: será sério ou irônico? Pois Tom Zé consegue um drible fabuloso, sendo simultaneamente sério e irônico, ao apelar para eles tanto em estrito senso quando manifestar suas insuficiências. Sim, Suassuna era um homem de esquerda. Tinhorão idem, marxista ortodoxo e convicto. Prato cheio para um desavisado ou mal intencionado concluir que o fascismo é de esquerda. Sorte nossa que podemos nos aprofundar um pouco mais na questão.

Suassuna e Tinhorão dividem a mesma concepção de cultura brasileira, uma concepção que passa de fruto de uma mistura de influências e povos diversos para um purismo que a desqualifica totalmente. Tinhorão é profundo conhecedor de nossas raízes populares, da formação do samba e tradições regionais, e da produção cancioneira pré-Bossa-Nova. A partir daí, ele considera que a influência externa – americana em particular – corrompeu irremediavelmente nossa música. Porém, releva ou mesmo louva a mescla do lundu com a polca e a música de Chopin, que influenciaram decisivamente o nascimento do choro. Já Suassuna, criador do Movimento Armorial, que vai muito além da música, criou uma orquestra para tocar com instrumentos europeus (não só, mas muitos também derivados destes como a rabeca) as harmonias tonais da música nordestina, mas torceu o nariz quando o Mangue Beat trouxe suas guitarras  para o maracatu.

Uma vez assisti um debate entre José Miguel Wisnik e Tinhorão, em um congresso sobre música popular. Claro que os dois nomes foram convidados exatamente por terem posturas publicamente opostas quanto a nossa produção atual. Em dado momento, com a elegância que lhe é peculiar, Wisnik não hesitou em apontar a incongruência do nacionalismo de Tinhorão e a característica autoritária de seu discurso. Ele e Suassuna trazem o mesmo fundamentalismo que admite e admira a mestiçagem cultural formadora de nossa identidade, mas considera esta identidade formada em determinado ponto, a partir do qual tora interferência torna-se deletéria. Há nisto uma falta de confiança implícita na capacidade de absorver novas influências. Claro que há aqui também uma crítica a indústria cultural, e sua influência avassaladora. Mas também subestima-se a imposição cultural do colonizador em nossa formação, à custa de muito sofrimento, e a capacidade não apenas de resistência, mas principalmente de absorção e transformação destas influências em algo novo e essencialmente brasileiro. Em suma, Tinhorão e Suassuna não incluem em suas equações a Antropofagia. Daí a duplicidade dialética do pedido de socorro. Tom Zé quer deles a exaltação desta identidade mulata, mas segue confiando nela e dispensa o autoritarismo posterior. O uso de uma palavra em inglês para formular este pedido torna-o especialmente sarcástico, ao trazer à baila a influência posterior sem mencioná-la.

Espantei-me outro dia desses ao saber que Olavo de Carvalho, o mentor espiritual da onda fascista atualmente quebrando nas nossas praias, era um admirador de Suassuna. Fui buscar sua real opinião.

O segredo da brasilidade autêntica do teatro de Ariano Suassuna não está nos temas, comuns a tantas obras epidermicamente nacionalistas, nem na imitação da linguagem popular, obrigação dogmática que se tornou cacoete: está em que a fórmula estrutural de suas peças não se inspirou em Sartre ou Brecht, e sim nos autos medievais lusitanos. Suassuna não é brasileiro porque come coco, mas porque digere a fruta local no estômago da tradição lusa. A forma é tudo.

O trecho, aparentemente lúcido e exaltador da brasilidade, é mesmo perfeitamente alinhado com a visão de Suassuna: a influência portuguesa arcaica é admissível e benéfica para formatar e domar os temas nacionais, ao contrário da influência de autores modernos (e ainda por cima comunistas). Suassuna é bom para Olavo na medida em que é um autor português medieval. Esta é sua medida de nacionalismo. Trata-se do antípoda da Antropofagia: que os saberes brasileiros sejam controlados pelo saber colonizador mais antigo, a desvalorização total . Que os índios sejam evangelizados, e os mulatos embranquecidos. Neste parágrafo quase aleatório de Olavo, está a essência holográfica do pensamento fascista espalhado em toda sua obra. E é contra este pensamento que Tom Zé se insurge em sua canção e sua obra, afirmando peremptoriamente seu inverso.

A ação de Olavo de Carvalho fomentando o fascismo no Brasil se deu principalmente pela brecha da crítica cultural. Ele percebeu que a a estética pode ser dominante sobre a política, mesmo sobre a economia. Tom Zé sabe disso como todo grande artista, e sabe o quanto a obra de arte tem o poder de refletir e amplificar uma visão de mundo. Penso dispenso a mula da sua ótica, ele canta para alguém que, em que pese o anacronismo de duas décadas, poderia perfeitamente ser Olavo de Carvalho – pois a arte frequentemente prevê em si os paradigmas futuros. Uma canção como Esteticar traz afirmações extremamente necessárias ao país atualmente, afirmações de diversidade e inclusão, da identidade cultural brasileira, mas principalmente de seu valor intrínseco, sua capacidade de entendimento à margem ou para além do saber que o queira domar. Uma cultura capaz de rechaçar a ameaça totalizante deglutindo-a e devolvendo-a desmoralizada. A Estética do Arrastão, inclusiva e plural, é a versão tomzeana e pós-tropicalista da Antropofagia. E, como disse Oswald: Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Que ela seja mais forte que o fascismo. Que nós sejamos.

 

Meus agradecimentos ao Thiago Amud.

Uma odisseia no som

[Ironia modo on] Elvis não morreu, e o homem nunca foi à Lua. Mas esqueça aqueles argumentos bobos como “a bandeira americana estava tremulando” (estava suspensa por uma vareta) ou “não devia haver penumbra” (ora, a luz do sol reflete na superfície). A prova definitiva é uma fotografia do set de film… ops, da NASA em que, agachado ao fundo e meio escondido pelo astronauta Neil Armstrong, está, inconfundível, o cineasta canadense Stanley Kubrick.

ap11-S69-33923HREstá vendo ele ali? Não?!?!? É claro que é ele, quem mais? E por que ele estaria ali? Ora, porque ele foi o diretor da encenação que foi a chegada do homem à lua. Repare a tela azul ao fundo. Esta e muitas outras evidências provam definitivamente que Kubrick foi o responsável pelas falsas imagens do pouso da Apolo 11 em 20 de julho de 1969. [Ironia modo off]

De toda esta teoria de conspiração de proporções literalmente astronômicas e levada ao paroxismo no documentário falso e hilário Dark side of the moon, do francês William Karel, fica uma pergunta que, embora de fácil resposta, serve também para dar a partida no assunto real deste texto: Por que Stanley Kubrick foi justamente o escolhido (pelos paranoicos) para ser o diretor desta alegada farsa? Ora, porque Kubrick dirigira no ano anterior o filme de ficção científica mais importante da história, e que disputa com alguns poucos o lugar de melhor filme jamais feito: 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Um filme emblemático tanto em termos de perfeição formal – de que Kubrick, perfeccionista notório, era mestre – mas também em sua mensagem inconclusa e misteriosa sobre o início/fim da Humanidade. 2001, uma experiência visual antes de ser racional, mudou a maneira de imaginar o futuro e suscita ainda hoje investigações esotéricas interessantíssimas. Mas damos mais um passo para nos aproximarmos do tema real deste texto, tratando de sua trilha sonora.

A original é de Alex North, colaborador de Kubrick em Spartacus. Porém, ela acabou sendo descartada. Em vez disso, Kubrick recorreu a temas de música de concerto de diversas épocas. É clássica a dança das naves espaciais ao som do Danúbio Azul, de Johann Strauss ou o homem macaco lançando seu osso, que se transforma em nave espacial, sob os acordes de Assim falou Zaratustra, de Richard Strauss. Estes são temas bem conhecidos. Porém estes…

Atmosphères – György Ligeti

Lux Aeterna – György Ligeti

As duas peças de Ligeti incluídas por Kubrick na trilha sonora de 2001 não têm temas cantabiles e facilmente reconhecidos. Na verdade não têm ritmo definido, nem tom… São pura textura, puro efeito sonoro, pura falta de referência, em um caso orquestral, no outro com a voz humana. Estamos em pleno espaço sideral. (Mais da obra interessantíssima de Ligeti aqui).

Um ano depois de 2001, o homem chega à Lua (ou, segundo alguns, não chega). E no fim deste mesmo ano, os Mutantes lançam seu segundo álbum, e nele a canção 2001. Diversas outras canções já haviam sido feitas tendo como mote a chegada do homem à Lua. Ângela Maria cantara, na marcha de carnaval A Lua é dos Namorados:

Lua, ó Lua, querem te passar pra trás
Lua, ó Lua, querem te roubar a paz
Lua que no céu flutua
Lua que nos dá luar
Lua, ó Lua, não deixa ninguém te pisar.

E Gilberto Gil já cantara em Lunik 9, nome de uma das naves não tripuladas do programa espacial soviético que pretendia chegar à Lua:

Poetas, seresteiros, namorados, correi!
É chegada a hora de escrever e cantar
Talvez as derradeiras noites de luar

Porém, se estas duas canções tomam um ponto de vista anterior à alunissagem (na verdade Lunik 9 a descreve quase cinematograficamente), em 2001 Tom Zé já está longe, no futuro. A conquista da Lua não é o seu mote, e sim um fato consumado. Aliás, para ser mais franco, nem foi exatamente Tom Zé que associou a música ao filme. Vejamos:

Tom Zé havia composto a canção Astronauta libertado e adorado a letra, embora achasse que a música não fosse lá essas coisas. Isso em plenos anos 1960. Aliás, 1968. Decidiu pedir ajuda a Caetano Veloso para refazer a música, mas não conseguiram nada que agradasse a ambos. Quando o tabaréu de Irará já havia desencanado da música, Guilherme Araújo, produtor dos baianos chegou e jogou sobre a mesa uma fita cassete. Tom Zé leu o rótulo: 2001. Era a versão de Rita Lee para a composição, e pegando carona no sucesso do filme de Stanley Kubrick: 2001, uma odisseia no espaço.

2001, a canção, é bem diferente de 2001, o filme. Mas tem ao menos duas coisas em comum com ele: a capacidade de unir passado e futuro e a recusa de apresentar uma conclusão. Mais até que a letra futurista de Tom Zé, o arranjo de Rogério Duprat é a grande estrela desta gravação (Gilberto Gil também a gravou, numa arranjo mais, digamos, homogêneo, e com um décimo do impacto). O futurismo da letra soa como uma atualização do futurismo modernista de 1922, como que estendendo a celebração da indústria e tecnologia de São Paulo à Via Láctea. Porém, com uma diferença, que na verdade acaba subvertendo o que acebei de dizer. É o fato de esta modernidade exaltada não ser externa, mas internalizada. 2001 é cantada inteiramente na primeira pessoa. E toda ela trata, não da chegada do homem à lua ou ao futuro, mas a sua própria transformação pessoal, como que invadido pelo futuro.

A cor do sol me compõe
O mar azul me dissolve
A equação me propõe
Computador me resolve

ou

Meu sangue é de gasolina
Correndo não tenho mágoa
Meu peito é de sal de fruta
Fervendo num copo d’água

Ou seja, pode-se dizer que o futuro se realiza no próprio eu lírico do protagonista da canção, e não no espaço sideral; não na distância, mas dentro aqui. Ora, isto inverte – ou melhor, subverte – a noção anterior, de passar de São Paulo para o Universo inteiro na temática, pois é o Universo que me invade e transforma até o limite da desumanização, quiçá da evolução da espécie. Mas este elogio do progresso ainda que (ou ainda mais) trazido para dentro da humanidade e não alcançado por ela, lido isolada (e ingênua) mente, a letra de 2001 poderia ser uma ode triunfalista à evolução da espécie – e me atrevo a dizer, esta leitura a situaria perigosamente próxima do fascismo.

Mas então chega o arranjo do Duprat e vira tudo do avesso. E esta virada do avesso (aliás, mais de uma, como veremos) é que 2001 se torna a canção espetacular que é. E a fonte inicial desta virada é a decisão de cantar metade dela com uma dupla caipira e a outra metade com um grupo de rock. O grupo de rock seriam os próprios Mutantes, claro. A dupla caipira, a um ouvido menos atento (o meu, por muito tempo) pode parecer formada por Rita Lee e Tom Zé, de forma caricata. Mas não. Foi convocada uma dupla real. A metade sertaneja de 2001 é interpretada pela dupla Zé do Rancho e Mariazinha – acredite se quiser, pais de Chitãozinho e Xororó e avós de Sandy e Junior.

Esta escolha tem consequências inesperadas. Porque o que a dupla caipira canta não é música caipira, e sim uma paródia dela. Mas ao mesmo tempo a interpretação da dupla é genuína e lhe empresta sua credibilidade. Isto coloca a metade caipira da canção num incômodo lugar entre o original e o pastiche, cantando uma letra futurista. Se Rita e Tom Zé (por mais que este seja de Irará, interior da Bahia), ou mesmo Arnaldo Batista, resolvessem cantar esta parte, ela soaria unicamente como avacalhação do caipira, o que significaria que os intérpretes tomavam posição na dicotomia que 2001 propõe, a favor do rock (já que o estilo do rock é mais natural aos Mutantes). Mas não é isso que acontece. Mesmo os erres retroflexos e o X de galáxia soando como CH, mesmo estes podem soar como exagero humorístico ou sinal de autenticidade, num jogo de decifração que não se resolve.

Por outro lado, também não se pode dizer que a outra metade da canção, dos Mutantes, seja absolutamente crível, ou ao menos séria. Pois embora os Mutantes fossem efetivamente um grupo de rock, a característica irônica de suas interpretações, a começar pela voz meio derramada de Arnaldo, por si só coloca sempre uma pulga atrás da orelha do ouvinte – será que eles estão falando sério mesmo? Também a porção rock de 2001 transita a meio caminho entre o pastiche e o real, e parece por si só estar ridicularizando a outra metade, caipira, que por sua vez também parece fazer pouco dela. As duas metades da canção são igualmente autênticas e avacalham-se mutuamente, ambas têm a mesma credibilidade cambiante, andam no fio da navalha na escuta do ouvinte. É sobre esta suspensão, mantida até a apoteose final, que se sustenta a poética da música, é ela quem impede que sua letra caia numa mera exaltação da modernidade – como também numa mera crítica. Nada é exato, tudo é duvidoso, mesmo as afirmações peremptórias.

E com isso, é impossível afirmar com segurança se a gravação de 2001 se constitui como uma ironia ou uma celebração. O tremendo contraste entre o mundo rural e o espacial soa inverossímil, claro, mas nem por isso insinsero – e é isto o mais surpreendente. Porque – e esta é a primeiríssima inversão – não é o caipira que vai ao espaço, é o espaço que vai ao caipira. Até a reviravolta que desembocará no grand finale, Zé do Rancho e Mariazinha são responsáveis pelo refrão, enquanto as estrofes intermediárias ficam a cargo dos Mutantes. A alternância entre eles, mantidos na mesma canção em lugares separados, quase como dois eus líricos diversos, ou um mesmo dividido em dois, cria uma atmosfera de surpresa e incredulidade, que será amplificada no interlúdio. E aí voltamos a Ligeti.

A chegada do interlúdio sem melodia, harmonia, ritmo, nenhum elemento musical reconhecível, tem o efeito similar à falta de gravidade no arranjo de 2001. Tudo sai do lugar, tudo flutua. Os próprios intérpretes estão flutuando no espaço, e com eles os significados já provisórios e incertos da canção até aí. Se houve uma leitura de crítica ou exaltação, ambas agora estão suspensas. O mais interessante é que, embora remeta imediatamente às peças que foram usadas no filme 2001, este interlúdio, ele sim, não passa de uma paródia descarada delas. Na verdade, a referência deles pode ser tanto estas peças quanto Revolution 9, a colagem de John Lennon que é a penúltima faixa do Álbum Branco (dos Beatles influência confessa e fortíssima dos Mutantes), com seus sons díspares reprocessados, uma espécie de anti-canção (falo dela aqui). Fazendo neste interlúdio a fusão, ou sobreposição, da música pop e da vanguarda erudita, ao mesmo tempo que riem de ambos e de si mesmos (pois os sons de assombração feitos por Arnaldo são sem dúvida humorísticos, e até um theremim se faz ouvir no meio da balbúrdia), os Mutantes preparam a fusão/sobreposição final de 2001, que vai definir a canção.

Mas antes dela, a inversão. Pois na volta do interlúdio, quem surge cantando a última estrofe da canção é a dupla sertaneja e não o grupo de rock. Na reentrada do refrão, aí sim o grupo de rock, substituindo a dupla caipira. A troca de lugar reforça a incerteza de qualquer afirmação feita anteriormente, já que os seus emissores são intercambiáveis. O que quer que se tenha concluído, é também o seu contrário: Eu não vim para explicar, vim para confundir. E em seguida, o golpe final. Com um rasgueado triunfal da viola, os arranjos sertanejo e roqueiro são sobrepostos.

Note-se que não existe um terceiro arranjo que organize de algum modo as duas versões da música que se alternaram até aqui. Os dois acontecem integralmente ao mesmo tempo (obviamente, Rogério Duprat, autor do arranjo como um todo, os desenha de modo a poderem ser sobrepostos, e altera ligeiramente aqui e ali. Mas o que o ouvinte escuta efetivamente é tudo acontecendo junto, exatamente o que ele queria). Até mesmo os arranjos vocais típicos, em terças que se acompanham na moda de viola e reforçando as sétimas dos acordes no rock, acontecem simultaneamente. O efeito é poderoso. E significa…

Significa que a porca torce o rabo. Significa em pleno 1968 da corrida espacial, a disparidade terra / espaço, de um planeta com milhões de pessoas vivendo em algum século passado e mandando representantes à Lua, ao mesmo tempo. Significa o homem pré-histórico descobrindo o osso como uma arma, e antecipando as naves espaciais quando inventa um instrumento. Significa um país preparando-se para o Milagre Econômico e integrando-se por satélite com grande parte de sua população vivendo na miséria. Significa a ambição humana de se superar e sua incapacidade de ser simplesmente humana. Está tudo ali, sem bula e sem manual como a vida é e a arte deve ser. Se 2001, o filme, pinta em cores vivas o início e o fim da Humanidade sem esclarecer nada, com seu final enigmático e polissêmico, 2001, a canção, faz o mesmo contraste em forma de pastiche, levando tudo a sério e sem levar nada a sério, aponta inúmeras direções ao mesmo tempo e diz a que veio sem dizer se o homem chegou à Lua ou se o espaço chegou ao homem, recusando-se terminantemente a chegar a uma conclusão, porque ela sabe que não é chegada, é ponto de partida. Sem esclarecer nada. E curtindo com a nossa cara.

P.S. Rafael da Cól, pesquisador da UNESP, escreveu também um artigo sobre 2001 no blog do GEP – Grupo de Estudos Discursivos, em que ele aborda ainda pontos que deixei coadjuvantes aqui, como os desenhos melódicos e a análise fonética dos sotaques sertanejo e “roqueiro”. Pode ser lido aqui.

2001 (Tom Zé-Rita Lee) pelos Mutantes

2001 com Gilberto Gil

Dois Tons e uma Coca-cola

Em 1986 o Tom participou de uma propaganda da Coca-cola. O Tom em questão era o Jobim, e ele na verdade fez um pouco mais do que participar. Ele cedeu por seis meses os direitos de uso do tema de Águas de Março, e com ele a Coca-cola estruturou toda a sua campanha mundial naquele ano.

Compilação dos anúncios da campanha brasileira – letra adaptada por Nelson Wellington da agência McCann Erickson (Tom participa do anúncio de Natal)

Um dos anúncios da campanha americana:

O mundo caiu sobre a cabeça de Tom Jobim. Entre muitos outros, Jards Macalé o descascou publicamente. Foi chamado de traidor, por vender (alugar, vá lá) um pedaço do patrimônio brasileiro a uma multinacional que é por si um símbolo do capitalismo norteamericano etc. Entrevistado pela Veja em março de 1988, desabafou:

Veja: Muita gente o criticou por ter cedido Águas de Março para os anúncios da Coca-Cola. Você fica magoado com isso?

Tom Jobim: Há quase dois anos que eu não bebo. Só posso beber café, água e refrigerantes. A Coca-Cola se aproximou de mim para fazer um anúncio, eu achei ótimo, achei que não fazia mal a ninguém, pois vejo todo mundo tomando Coca-Cola. Aí esses meus amigos – entre aspas, Jards Macalé, Antônio Houaiss e Luiz Carlos Vinhas – começaram a dizer que eu tinha vendido o Brasil à Coca-Cola. Essas pessoas resolvem que fazer anúncios para a Coca-Cola é pecado. Eu posso anunciar cachaça, Brahma Chopp, mas não posso cometer o pecado mortal que é anunciar Coca-Cola. Eu não vendi nada para a Coca-Cola. Eu apenas licenciei o mote de Águas de Março. Todo o Brasil pode cantar tranqüilamente esta música. O primeiro contrato foi por seis meses e por aquele anúncio em que eu aparecia, aqui no Brasil, recebi 280.000 cruzados.

Corta para 2013. Tom volta a participar de um comercial da Coca-cola, como locutor. Só que agora o Tom é Zé, e o anúncio é para associar a Coca-cola à Copa do Mundo no Brasil.

 

E o mundo voltou a desabar. Dias depois, Tom Zé, diante das reações, postou em seu blog:

Pois é, pessoal, estou preocupado.

Eu dou importância à opinião de vocês. Essa alegria sempre me acompanhou.

Quando o anúncio saiu na tv, imaginei que até as opiniões contrárias eram uma espécie de comemoração por eu aparecer com status de locutor de uma propaganda grande. Mas agora, quando perco o sono por causa do assunto… não, agora eu estou preocupado!

O apoio de vocês sempre foi uma base de sustento. Será que uma alegria nascida do privilégio de até hoje, aos 76, ter vivido dessa profissão de músico e cantor, me fez pensar que eu poderia afrontar essa sustentação?

É curioso que quando fui consultado sobre o anúncio nem pensei nessa probabilidade. No ano passado meu disco fora patrocinado pela Natura e como eu nunca tinha recebido patrocínio desse tipo – nem de nenhum outro – , cara, eu me senti como um artista levado em conta!

Para profissionais de meu tipo as gravadoras são agora inalcançáveis. A Trama, de João Marcello Bôscoli, me deu grande apoio nos anos 90 e até Estudando o Pagode, em 2004. Mas em Danç-Êh-Sá”, já dividimos as responsabilidades. Em 2008 Estudando a bossa foi muito ajudado pela Biscoito Fino; Agradeço, mas ficou difícil continuar lá. No ano passado o apoio da Natura me deu tanta confianca pessoal que ousei fazer o Tropicália Lixo Lógico.

No lançamento de Danç-Êh-Sá, em 2005, o resultado foi de extremos. A gravadora francesa teve um ódio tão grande do disco que quase perco até a amizade de Henri Laurence, que lá me lançava pela Sony. Nos E.U.A. houve comentários apaixonados na crítica, mas Yale Evelev recusou o disco na Luaka Bop. Logo a seguir a mesma Luaka Bop me respondeu com entusiasmo ao Estudando a bossa de 2008 e depois lançou o super set box de vinis com os 3 Estudando…

E o … Lixo Lógico recuperou também a amizade de Henri Laurence.

Toda essa dança de lançamentos e esse céu-e-inferno com os editores-lançadores é própria desse setor onde não devo nem quero relaxar o arco-tenso-da-ousadia. Mas nos dias atuais vivemos a era da internet e a venda de disco passou a ter um peso insignificante. Já o papel desses lançamentos, em termos de divulgação, é muito eficiente.

* * *

Voltemos ao presente. Atualmente sinto paixão pela retomada do projeto dos instrumentos experimentais de 1972. Com a eficiente colaboração do engenheiro Marcelo Blanck, começamos a desenvolver alguma tecnologia, mas com recursos parcos, insuficientes. Os resultados estão nos animando muito. Aí entrou o anúncio da Coca-Cola que, mesmo sem ela saber, patrocinaria boa parte da pesquisa.

Será que o uso dos recursos obtidos com o anúncio muda a avaliação de vocês?

Madrugada de sexta, 8 de março, 6h22. tom zé

Não obstante, a polêmica continuou, e que bom que continuou. Entre comentários no próprio blog e artigos sobre o assunto, destaco este, do Eduardo Nunomura, que não só resume o assunto anterior e alguns comentários pertinentes como o do músico mineiro Makely Ka, como também dá uma opinião pessoal equilibrada e aberta ao debate, em vez de fechar a questão em termos de vendido ou hipócrita.

Pois não há mesmo resposta fácil ou posição absoluta nesta questão. Mas há alguns apontamentos possíveis, como é possível, avaliando semelhanças e diferenças nestas duas relações Tom X Coca, perceber um bocado de nuances da relação da nossa cultura com os meios de se viabilizar e com o monstro de milhares de cabeças e tentáculos que se convencionou chamar o mercado. E o primeiro ponto, a meu ver, está na diferença de postura destes dois artistas em relação à sua obra, e nas características desta obra em relação com o tal do monstro, frutos também das diferenças históricas dos movimentos onde eles foram pontas de lança, eterno debate da música brasileira: Bossa-nova e Tropicália. Por mais reducionista que seja dizer isso, é fato de que a bossa, anterior a movimentos como a pop art e num Brasil que somente então se abria para a economia mundial (para o bem e para o mal), tem parca consciência de si como um produto e de sua interação com o mundo para além da questão estritamente artística. Enquanto o tropicalismo já nasce se propondo a relacionar-se com tudo o que aparecer, em certos casos tendo a música como um aspecto somente de um todo maior. Neste sentido, toda a atuação pública de um artista se torna relevante, e toda interação de sua obra com o mundo altera seu significado. Algo que a bossa-nova nem sonhara.

Assim, Águas de Março esteve por seis meses vinculada estreitamente à Coca-cola. E o que aconteceu? Bem, a Coca-cola continua sendo a Coca-cola, e Águas de março continua sendo a maravilhosa canção que é, mesmo tendo tido sua letra alterada e tendo sido cantada em arranjos para lá de duvidosos, e mesmo tendo sido associada a uma bebida que não tem nada de ecológico nem de brasileiro, e sabidamente faz mal à saúde (à época já se sabia, apenas falava-se menos do assunto). E quanto a Tom Zé?

Pausa necessária para tratar de publicidade e de propaganda testemunhal, que é aquela em que uma pessoa conhecida atesta a qualidade de um produto. Em geral, recomenda-se escolher alguém que tenha não apenas credibilidade pessoal, mas também alguém cuja adesão ao produto seja crível, mandamento lógico que vem sendo crescentemente deixado de lado em favor da celebridade da vez, seja ela qual for. Pois – e aí está o ponto – a propaganda testemunhal é um caminho de mão dupla, pois a associação de imagens não é unilateral. Que o diga Zeca Pagodinho, que depois de fazer propaganda de uma marca de cerveja diferente da que bebia, viu sua vida transformada num inferno, tendo de beber às escondidas, até finalmente capitular e voltar à cerveja de que gosta.

Portanto, trata-se de uma mão dupla, e não há ingênuos nesta história. Enquanto o produto se utiliza do artista para endossá-lo, o artista vincula seu nome a uma marca que pode-lhe ser benéfica ou prejudicial. Porém, voltemos à diferença desenhada entre Tom e Tom. Para o Jobim, a condenação foi devida à associação de Águas de Março com o Brasil, que ele certamente não gostaria de perder. Para ele, ter Águas de Março numa propaganda mundial poderia ser motivo de orgulho pela valorização que mostrava ter a canção e a música brasileira, despertando interesse de uma multinacional. Para outros, foi simplesmente alugar um orgulho nacional a uma empresa multinacional. Jobim, em 1986, vivia no mundo pré-tropicália. Por mais que tenha se aborrecido com as críticas, o fato é que ninguém dá mais importância a sua participação hoje. A indústria da propaganda e o mercado são uma máquina de moer carne. A característica da cultura pop é o esquecimento rápido. Pensando bem, o pensamento do Jobim talvez não estivesse tão anacrônico. Ele sabia que, com críticas ou não, poucos anos depois o caso seria deixado de lado, e que Águas de Março era bem maior do que a Coca-cola, embora naquele momento parecesse o contrário.

Mas há mais uma possibilidade aqui. Se a música do Jobim, ao fim e ao cabo, passa incólume pela Coca-cola e se o endosso recebido por esta é temporário apenas, como toda propaganda, sobra uma pequena possibilidade: a de que a participação testemunhal, em vez de endosso, se converta em crítica, ou senão em algo mais complexo como a crônica dos tempos. Um verso como o de Caetano Veloso em Alegria, alegria: O Sol nas bancas de revista / me enche de alegria e preguiça será uma propaganda ou uma crítica ao jornal de esquerda O Sol? Ora, nem uma coisa nem outra. Caetano usa O Sol para falar de outra coisa. A obra de arte tropicalista lida com os aspectos notícia e propaganda como um elemento a mais de significado na criação artística, tendo inclusive consciência de sua fugacidade. Só que, numa canção, estamos num terreno que é controlado pelo artista, e se ele cita um produto o faz dentro de suas condições e parâmetros. E quando é ele o citado na obra da propaganda? Em que medida ele pode manter o controle da sua imagem?

Aí é que está: a curto prazo, não pode. Pois a máquina avassaladora do monstro do mercado é mais forte, muito mais forte – a curto prazo, como sabia o Jobim. Ainda assim, voltamos à questão da credibilidade pessoal e do anúncio, ou seja, da associação entre produto e testemunha. Pessoalmente, Tom Zé tem muita credibilidade, mas não para todos, simplesmente porque ele não é uma celebridade, não está na grande mídia, em suma, é muito menos famoso do que pode parecer. Grande parte da população brasileira nem se deu conta de quem estava narrando o comercial. O Zé tem credibilidade para uma parcela da população que em boa parte é crítica, se não à Copa no Brasil, às providências que estão sendo tomadas para ela. O redator do anúncio sabia bem, tanto que já inicia o texto com a frase ambígua: muita gente se pergunta como vai ser a Copa. Mas seria ingenuidade achar que a Coca-cola pretendia convencer estas pessoas apenas pela presença do Tom Zé. O que se queria era provocar a discussão que está acontecendo, com prós e contras, entre os tão superestimados formadores de opinião – e aí ela já é um sucesso absoluto.

Por outro lado, é mesmo duro de ouvir Tom Zé dizendo que o Brasil é o país de todo mundo, o futebol é o esporte de todo mundo e a Coca-cola é a bebida de todo mundo. Porque é este o momento em que a associação finalmente se dá, depois de cinquenta segundos de preparação – para a propaganda, uma eternidade. No restante do filme, o que se vê é mais um esforço violento de uma empresa estrangeira em se maquiar de brasileira. O que guarda uma estranha relação com os arranjos pop/rock a que submeteram Águas de Março há mais de 25 anos. Consegue? Sim, até o próximo anúncio, a próxima campanha. Para manter uma afirmação tão insustentável, só mesmo repetindo-a incessantemente. Mas fala uma última pergunta: se Tom Zé empresta sua brasilidade e sua originalidade à Coca-cola por um momento, o que ela empresta a ele, além do dinheiro que financiará sua música por algum tempo?

Tenho para mim que, sem que se tenha percebido com nitidez, foi isso o que revoltou e mobilizou tanta gente, tanto para o Jobim quanto para o Zé. A sensação de que eles estavam no fundo sendo roubados, emprestando o inestimável de suas obras, um sua música maravilhosa, o outro a si mesmo, pois no caso de Tom Zé e segundo a visão tropicalista, sua vida e sua obra se confundem numa coisa só, para receberem de volta apenas… dinheiro. Se tanto Jobim quanto Zé deram alguma importância ao reconhecimento que os levou a serem convidados para uma propaganda grande (não pela Coca-cola, mas pelo fato de o convite da Coca-cola comprovar o valor que o mundo lhes dá a ponto de querem alugar para si um pouco deste valor), outros consideram que nenhum valor pago seria suficiente para compensar este empréstimo de credibilidade, que o aluguel seria sempre caro demais, mesmo para a Coca-cola. Daí os gritos de vendidos, ou no mínimo achar que fizeram mau negócio. E, neste sentido, fizeram mesmo, pois, embora seja nítido que eles fazem o jogo da Coca-cola, a Coca-cola dá bem menos a impressão de fazer o jogo deles. Mas eles sabiam desde o princípio que não perderiam o que alugaram. No fundo, jogam outro jogo, que dura bem mais, e que a Coca-cola não tem condições de jogar com eles – vai ter que escolher outros, sempre outros, como sempre fez.

Mas e aí, os Tons estavam certos ou errados? Não tenho a menor ideia, nem pretendi descobrir neste texto. O que quis foi entender um pouco melhor a teia quase inextrincável de relações entre o fenômeno de nosso tempo de empresas internacionais pintarem faces humanas e brasileiras, as questões envolvendo a credibilidade pessoal e o envolvimento de um artista e/ou sua obra com o monstro de milhares de cabeças e tentáculos que se convencionou chamar o mercado, e as consequências artísticas disso. Nem Jobim nem Zé passaram incólumes pela Coca-cola. Mas Jobim e Zé não precisam dela nada além de dinheiro, enquanto ela vai continuar precisando de pessoas como eles eternamente para continuar afirmando convictamente que é o que não é capaz de ser. Sigo a sugestão de Makely Ka: que Tom Zé se aproveite de sua condição tropicalista e traga o jogo para seu campo, fazendo uma canção sobre ter feito um comercial para a Coca-cola. Seria um belo final.

Jingle e (é) canção

O maestro Rogério Duprat perguntava na contracapa do álbum Tropicália, em 1968, aos jovens baianos que botavam a cara a tapa:

Terão coragem de fuçar o chão do real? Como receberão a notícia de que o disco é feito para vender? Com que olhar verão um jovem paulista nascido na época de Celly Campelo e que desconhece Aracy, Caymmi e Cia? Terão coragem para reconhecer que este jovem tem muita coisa para lhes ensinar…- Sabem vocês o risco que correm? Sabem que podem ganhar muito dinheiro com isso? Terão coragem de ganhar muito dinheiro?

Bem, na verdade, este texto não é do Duprat, mas de Caetano Veloso, que o “psicografou” num texto com formato de cena teatral (com falas atribuídas até ao João Gilberto) que funciona como um quase-manifesto. Duprat, que participa do álbum como protagonista – está na foto da trupe na capa – não desdisse sua fala.

Minha formação é de publicidade, não sei se já comentei isso. No entanto, poucos anos depois de formado, passei a trabalhar com música e teatro, fui parar em arte-educação, e hoje trabalho em algo totalmente alheio a propaganda. Motivos há vários, até psicanalíticos, mas é fato que sempre tive dificuldade com a idéia de acreditar em um ou mais produtos por semana a ponto de trabalhar para apregoá-lo. Entre o cinismo de dizer “pagando bem, que mal tem?” e a construção dialética complicadíssima de estar cumprindo um papel na sociedade e endossar o produto não implicar em aprovação integral da empresa etc., fiquei no meio do caminho, e fui cantar noutra freguesia, literalmente.

(Aliás, lembro de uma piada que circulava na faculdade, aliás: jornalistas acusavam publicitários de serem vendidos ao sistema. Ao que estes retrucavam: Vocês também são vendidos. Nós apenas somos bem mais caros!)

Porém, ao contrário de mim, há quem tenha sido músico talentoso e de sucesso e publicitário ídem. O melhor exemplo que me ocorre é do já saudoso Zé Rodrix, brilhante tanto no trio com Sá e Guarabira, na participação com o hilário grupo Joelho de Porco e em sua carreira solo, quanto como autor de jingles ainda no ar como Quem disse que não dá? Na Fininvest dá. e De mulher pra muher, Marisa. E no lindo jingle para a Chevrolet, de 1987:

(Aliás este jingle também andou no ar em 2010 numa versão com Frejat e Edgard Scandurra, para o lançamento de outro carro)

Não há dúvida que há jingles que, independente de sua função de vender, são boas canções. Mas a discussão da arte na publicidade é velha. Muito adolescente entra na faculdade achando que vai fazer arte, só para descobrir que a essência do negócio é marketing, e que o que há de arte é mera instrumentalização, é técnica. Há quem consiga escapar disso? Bem, partindo do princípio de que há quem tenha o interesse em fazê-lo, há, sim, como há também as agências famosas por ganharem muitos prêmios sem aumentarem as vendas dos produtos… Zé Rodrix parece ter resolvido a questão dentro de si, a ponto de ele próprio  dar voz ao jingle acima. A música e a publicidade ganharam com isso.

Mas há também o reverso da moeda que é do que fala Caetano/Duprat na contracapa do Tropicália. Assim como a técnica musical é usada na publicidade, pode a técnica publicitária ser usada na canção? Sem dúvida. Como sem dúvida o seu uso não é garantia de qualidade, mesmo que venha a ser sucesso comercial.

(Outro parêntesis para um filme do Silvester Stalone (!). O cara é um policial congelado para o futuro (!!), e quando descongelado para combater uma onda de criminalidade, vira parceiro da Sandra Bullock (!!!) Numa hora estão os dois na radiopatrulha e ela diz: “Vamos ouvir música?” Liga o rádio e só tocam jingles de produtos. Ele pergunta cadê as músicas, e ela diz que aquelas são as músicas. Ele fica desalentado com o futuro, enquanto ela cantarola feliz os jingles particularmente debilóides que tocam. Fecha parêntesis.)

Seria possível fazer até uma análise do uso de funções linguísticas (conativa, fática e metalinguística principalmente), típicas da publicidade, na canção, e do uso de frases cada vez mais curtas e repetitivas na música dita comercial, exacerbando o que já é característica da canção popular – afinal, nada melhor que um refrão que “pega”. Mas a mim interessa mais o quanto estes usos podem resultar em algo artisticamente compensador. Então, aos exemplos:

Algo Mais – Mutantes

Esta canção foi composta como um jingle para a Shell. Nelson Motta escreve no encarte à edição em CD do álbum:

É preciso ter coragem de ouvir claro e saber com certeza que aquele som é novo, inventivo e livre. Mas ainda há muita gente que tem arrepios ao ouvir a palavra jingle e se horroriza com a idéia de ganhar dinheiro com música, embora ganhe muito dinheiro com música. (…) O jingle dos Mutantes, que prefiro chamar simplesmente de “música” é infinitamente melhor que a maioria das canções que andam pelas praças e paradas. Por que não gravá-lo em disco? Eles gravaram, sem orgulho ou vergonha, como uma música qualquer. A intenção com que foi feita, pouco importa, o que vale é o som final. Além de cumprirem os objetivos de promoção de vendas, de imagem pública da Shell e de divulgação de uma marca, eles estão colaborando para a música brasileira contemporânea, com grandeza e competência.

Jingle do Disco – Tom Zé e David Byrne

Tom Zé, no álbum de seu retorno após a redescoberta por David Byrne, radicaliza a fusão, e grava um jingle do próprio álbum que grava. Segundo o próprio, a inspiração foi a notória habilidade de Thomas Edison para vender suas idéias. A música tem muito de auto-ironia, se lembrarmos que Tom Zé amargou um ostracismo de anos sem conseguir vender as suas próprias e geniais idéias, e mais ainda em sua gravação bilíngue (a versão em inglês é de Julio Fischer) cantada junto com Byrne.

Se a Algo Mais apregoa mais um estilo de vida que um produto em si (estratégia comum em publicidade, o que facilitou a sua transposição para o universo da canção), a de Tom Zé é muito mais direta e faz o caminho inverso –  Zé Rodrix fez um jingle que se torna canção, e Tom Zé uma canção que vira jingle. E não mente: sua promessa maior é tornar o ouvinte mais feliz e inteligente. Se felicidade é promessa comum a quase toda propaganda, inteligência é, de certa forma, novidade. Quem dera todo jingle prometesse isto e toda canção cumprisse. Eis uma boa definição do mundo ideal.

Help, Tinhorão! Help, Suassuna!

Lendo o artigo abaixo, de Henry Burnett, lembrei do José Ramos Tinhorão, como também do Ariano Suassuna, que é citado na versão completa do artigo, aqui. Lembrei porque suas posturas abertamente nacionalistas e um bocado pessimistas, a despeito da fantástica produção de ambos, me parecem muito alinhadas tanto com os pensamentos de Theodor Adorno e de Mário de Andrade – ou melhor dizendo, são a possível confluência destas duas linhas.

E, no entanto, sempre me parece que algo escapa à análise deles quando se trata da produção da música popular. E talvez seja exatamente o fato de eles, Tinhorão e Suassuna, de certa maneira, aplicarem à música popular o diagnóstico de Adorno e Mário, que não era exatamente voltado para a música popular – e quando era, a subestimava.

A análise crítica que Tinhorão faz da música brasileira é confessadamente marxista, assim como a teoria da Indústria Cultural de Adorno é baseada na dialética de Hegel, que influenciou Marx decisivamente. Em ambas, chega-se à conclusão desalentadora de que, embora seja preciso resistir, não é possível resistir. A supererstrutura econômica sempre é mais forte, e sempre passa como um trator sobre as peculiaridades regionais, nivelando tudo por baixo e matando a cultura genuinamente popular. Coincidentemente, enquanto Adorno condena o jazz como um fruto da padronização técnica da música, Tinhorão condena a Bossa-nova exatamente pela sua influência exógena, o jazz.

Assim também Ariano Suassuna considerou que o movimento Manguebeat estaria para o maracatu (e o rock) como a Bossa-nova estaria para o samba (e o jazz): seria uma deturpação da cultura popular original por uma outra cultura, industrial e estrangeira. Em ambos os casos, existe a preocupação com uma determinada identidade nacional que estaria sendo solapada pela mistura. Mesmo sabendo perfeitamente que a cultura popular – a chamada folclórica – está sempre em transformação, eles não aprovam a grande maioria das transformações que ocorrem.

Adorno e Mário tem uma coisa em comum, quanto ao período em que viveram: assistiram, de formas diferentes, ao nascimento de uma música popular absolutamente diferente da música “séria” de Adorno e dos compositores eruditos brasileiros que Mário influenciou, e diferente também da música folclórica que Mário pesquisou a fundo e de forma pioneira em suas viagens pelo Brasil. Mário defendeu veementemente que compositores eruditos brasileiros usassem temas populares (folclóricos) em suas composições, a fim de que, em um estágio mais adiante, esta forma de escrever “brasileira” se incorporasse a seu estilo. Porém, em 22, Villa-Lobos apresentava peças debussyanas na Semana da Arte Moderna em São Paulo, os Onze Batutas de Pixinguinha excursionavam pela Europa… A música popular estava, na prática, vários passos à frente do pensamento modernista. Mas Mário não soube reconhecer isto.

Tinhorão, em uma entrevista ao programa de TV Roda Viva em abril de 2000 (disponível aqui), conta:

…eu fiz um acordo no Jornal do Brasil. Quando eu aceitei aquela idéia de escrever lá, em 1975, eu fiquei escrevendo no Jornal do Brasil de 1975 a 1980 sobre… Já morando aqui em São Paulo, eu tinha vindo para ser sub-editor da Veja, e eu mandava a coluna para o Rio. Mas eu disse o seguinte: “eu só quero escrever sobre música brasileira.” Aí, fizemos um acordo, eu fiz um acordo com o Tárik de Souza [jornalista e crítico musical]. Ele escrevia, por exemplo, sobre Rita Lee, Mutantes, Roberto Carlos e tal [risos], sobre o que quisesse de música estrangeira, e eu… Por isso é que depois de cinco anos eles me mandaram embora, porque eu só escrevia exatamente sobre sujeitos que não vendem. Eu escrevia sobre Zé Coco do Riachão [(1912-1998), músico do norte de Minas Gerais conhecido pelas rabecas que fabricava], o comparei a uma figura da Renascença [séculos XIV-XVI], porque o Zé Coco do Riachão tocava viola, dançava, compunha para viola e fabricava a viola. Então, ele era, assim, um “da Vinci caboclo”.

Tinhorão deixa claro que sua questão não é contra o instrumento ou tecnologia estrangeira, mas sim o “sotaque” que a acompanha. Assim como a rabeca é um instrumento derivado do violino europeu, a guitarra baiana de Armandinho é considerada por ele um exemplo da capacidade de absorção da tecnologia sem a contaminação estética.

Esta discussão da contaminação estética me lembra a divisão de Humberto Eco em Apocalíptcos e Integrados, sujeita a simplificações aviltantes, diga-se de passagem. Longe de querer pela enésima vez tentar refutar o pensamento de Tinhorão e Suassuna. O que se quer aqui é procurar alternativas às questões que eles apresentam. O que me parece, como já afirmei, é que a capacidade de a música popular brasileira subverter as influências estéticas externas é subestimada por eles.

E sem dúvida esta capacidade tem a ver com o movimento musical que se filiou mais fortemente ao modernismo de Mário de Andrade: a Tropicália. Foi então que influências do rock e do pop, que até então eram copiadas pela Jovem Guarda, começaram a ser digeridas em uma produção com características brasileiras. Era um desdobramento da antropofagia de Mário. E dos integrantes da Tropicália, ninguém mais que Tom Zé se manteve no espírito desta antropofagia.

Esteticar – de Tom Zé, Vicente Barreto e Carlos Rennó

O álbum Com defeito de fabricação, de onde veio esta canção, traz um texto de Tom Zé sobre a estética do plágio, ou do arrastão, conceito que norteia o álbum e do qual Esteticar é, nas palavras do autor, a Espinha dorsal. Um trecho:

A estética de Com defeito de Fabricação re-utiliza a sinfonia cotidiana do lixo civilizado, orquestrada por instrumentos convencionais ou não (…) unidos a um alfabeto sonoro de emoções contidas nas canções e símbolos musicais que marcaram cada passo da nossa vida afetiva. A forma é dançável, rítmica, quase sempre A-B-A, com coros, refrões e dentro dos parâmetros da música popular. O aproveitamento desse alfabeto se dá em pequenas células, citações e plágios deslavados.

O rítmo de Esteticar é um “mulato” baião quebrado. A palavra mulato vem a calhar para definir o hibridismo da música popular. Tom Zé reage à subestimação do protagonismo da cultura popular, em duas estrofes que são um primor de sintaxe, para logo depois desertar desaforadamente da cultura erudita: “penso e dispenso a mula da sua ótica / Ora, vá me lamber tradução intersemiótica!” Tom Zé responde à denúncia da descaracterização da música nacional recaracterizando-a, sem negar nenhuma influência, mas, pelo contrário, aproveitando de tudo para fazer algo autenticamente nacional, de forma aparentemente simples, mas carregada de referências. O título Esteticar é perfeito ao dar voz ativa ao artista representante de sua cultura no molde de sua arte.

Isto não significa que Tom Zé absolva toda obra de arte como reprocessamento de influências, e pronto. Em outros momentos ele critica, e ferozmente, a que é feita meramente pela utilização do molde mercadológico. Mas, assim como Mário de Andrade recomendava o uso da fórmula popular pelos compositores como um estágio consciente de formação da própria linguagem, talvez a cópia da fórmula estrangeira possa ser considerada um primeiro estágio de assimilação, como a Jovem Guarda contribuiu para a Tropicália, ao copiar arranjos em até expressões do rock inglês e americano. Haveria então um processo histórico em que a cultura do país digeriria as intervenções externas, para reaparecer mais adiante, transformada, reformulada, mas não necessariamente descaracterizada.

Enfim, esta discussão vai longe. O que me fica é a sensação de que, talvez pela ortodoxia de uma visão marxista, talvez por um conceito de nacionalismo que vai-se tornando obsoleto, Adorno e Mário – e Tinhorão e Suassuna – deixam escapar entre os dedos as possibilidades de entendimento teórico do que a música popular faz cotidianamente, seja conscientemente como Tom Zé, ou não, como bandas Calipso e outras, reprocessando o lixo e o luxo cultural em produtos novos, não resistindo à influência estrangeira, mas devolvendo-a reciclada. Os pedidos de socorro de Tom Zé em Esteticar não estão na letra do encarte. Talvez possam ser lidos sem as vírgulas, ou talvez sejam um chamado para estes dois pesquisadores e criadores se juntem a ele. Mas não me parecem irônicos.

Uma Breve História no Timbre – a ida

A primeira vez que ouvi Cidadão Instigado, não gostei. Pronto, falei. Achei estranho, impliquei, ainda mais que já tinha ouvido bastante falar dele, inclusive as qualificações de gênio aplicadas ao Fernando Catatau.

Depois me dei conta que a coisa não era exatamente com ele, mas vinha de antes. O estranhamento e a implicância eram na verdade com toda uma produção musical desta última década. De tudo que eu ouvia, eu gostava do som, dos arranjos, até das vozes, mas não gostava das canções. Achava tudo meio mal ajambrado, como se tivesse sido feito na base do improviso, sem cuidado, sem revisão. Mais de uma vez comentei com minha mulher que essa galera era muito legal, só faltava um compositor de verdade (claro que era uma generalização. Frases de efeito são assim, ora).

Cidadão Instigado – Escolher pra que, do álbum Uhuuu!

Recuando um pouco

Em 2004, Chico Buarque deu uma entrevista para  Fernando de Barros e Silva, em que afirmou:

Há quem sustente isso: assim como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido. […] Quando você vê um fenômeno como o rap, talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou.

Parece pouco, ainda mais porque ele diz depois: “Tenho muitas dúvidas a respeito. Às vezes acordo com a tendência de acreditar nisso, outras não.” Mas era o Chico Buarque, e era algo que já era ventilado por discussões teóricas anteriores, como ele mesmo diz.  Barros e Silva escreveu um ótimo artigo a partir destas declarações e do álbum Carioca do Chico; Luiz Tatit, também compositor, escreveu o livro O Século da Canção (não a partir da entrevista, mas botando lenha na fogueira); Tom Zé debateu o livro capítulo por capítulo em seu blog, e fez o sensacional álbum Danç-êh-sá, como uma resposta ao Chico – que não tem uma canção formal sequer, mas peças estruturadíssimas. E o pau começou a comer na casa de Noca.

Para que não se pense que esta é uma conversa somente nacional, lembrei que em 1992 Prince lançou um álbum com um símbolo como título (o mais próximo que dá para chegar com o teclado é O(+> ). Na contra-capa, vinha a listagem de músicas com o título: The jams. Michael Jackson, no ano anterior, já abrira seu álbum Dangerous com a faixa Jam, aliás uma canção redondinha, como muitas do álbum de Prince.

E daí? daí que o Michaelis diz que jam é

1 esmagamento. 2 aperto, acotovelamento, aglomeração de gente. 3 congestionamento (de tráfego). 4 emperramento, desarranjo. 5 situação difícil ou perigosa. 6 estorvo, obstrução.

Isso sem contar a expressão jam session, oriunda do jazz, e que significa uma sessão de improvisação. Nada mais distante da carpintaria (alguns preferem ourivessaria) da criação de uma canção. Há alguma coisa no Reino da Dinamarca, talvez podre, talvez não. O nome deste blog não deixa de ser uma opinião implícita sobre o assunto, e até agora, achava que não tinha nada a acrescentar. Mas me vieram umas idéias.

Cara-Cuá – Revolta Nagô-Oió 1830 – Tom Zé, do álbum Danç-Êh-Sá (Dança dos Herdeiros do Sacrifício)

Recuando muito mais

A música ocidental, como se sabe, veio da voz. Os primeiros registros escritos de que se tem notícia são dos Cantos Gregorianos, a uma só voz, acompanhados, se assim se pode dizer, apenas pelos harmônicos das abóbadas góticas.

Então tiveram a idéia de botar uma segunda voz seguindo aqueles harmônicos. Sobre o Tenor (aquele que tem a melodia) colocaram um duplum, depois um triplum, sempre mais agudos. Para contrabalançar, colocaram um baixo. Em contraste com o baixo, um alto. Em contraste com o alto, um contralto. Enfim, esta barafunda se organizou com as quatro vozes principais que temos hoje: baixo, tenor, contralto, soprano. E toda composição era para formações próximas disso. Quartetos de cordas, famílias de sopros, todos trataram de seguir aproximadamente os registros vocais e assim as peças podiam ser tocadas vocalmente ou por qualquer grupo de instrumentos, importava pouco. O próprio Bach, ao fazer a série A Arte da Fuga, não especificou os instrumentos, e portanto a série genial de contrapontos pode ser tocada por qualquer um, ou grupos de. A questão do timbre não fazia parte da brincadeira, não era importante.

Isto foi mudando aos poucos, até na época romântica surgirem arranjadores exímios como Richard Strauss, que começavam uma frase musical com dois ou três instrumentos e e terminavam com outros, que os iam substituindo aos poucos, modelando o timbre juntamente com a melodia. Neste ponto, ambos estavam quase em pé de igualdade, mas a melodia ainda comandava, pois era a partir dela que se fazia a escolha da instrumentação.

Porém, no século XX, o jogo virou. Compositores como John Cage tomaram o timbre como ponto de partida da composição. Sua série para piano preparado, por exemplo, em que se coloca tábuas, panos e parafusos entre as cordas do instrumento para interferir na sonoridade, foi pensada originalmente quando ele precisava substituir um ensemble de percussão. As composições desta série não foram pensadas com o sentido harmônico tradicional, mas a partir da incorporação do ruído como unidade sonora. Esta experiência se alastrou e generalizou pela música mundial (não apenas a partir de Cage, que cito como exemplo). Mais cedo ou mais tarde, chegaria na música popular.

Sonata V para Piano Preparado – John Cage, com Inara Ferreira

(to be continued aqui)

Funk, Freud, feitiço, as Foguentas e as fogueiras da Santa Inquisição

Conforme prometi, trago para o blog o segundo artigo que escrevi para a revista virtual Arte Institucional nº5. Ei-lo.

Outro dia desses estava descendo a rua para ir à padaria, quando ouvi uma música saindo de uma casa onde acontecia uma festa. A música dizia:

Se o mágico faz mágica a feiticeira faz feitiço
Que que isso,
Que que isso,
Ô feiticeira o que tem pra me dizer ?
– Vou fazer teu boneco desaparecer
Mas na mágica que eu faço olha o meu boneco cresce
Mas na mágica que eu faço olha o meu boneco cresce
– O feitiço que eu faço boneco desaparece
Que que isso feiticeira é magia ou é vodu?
– Vai fica enfeitiçado quando eu empinar o bumbum

Não preciso dizer que se tratava de um digno representante do assim chamado funk carioca. Minha primeira reação foi simplesmente achar graça. Porém, a cada vez que a ouvia novamente – pois é claro que eu parei para ouvir – mais eu gostava da música, e mais me lembrava do Tom Zé.

Tom Zé é um gênio da raça. Dito isto, voltemos ao assunto. Nos últimos tempos, ele voltou a atenção para o que chamou de “metarrefrão microtonal e polissemiótico” do funk “Atoladinha”, de Mc Bola de Fogo e as Foguentas. Sua participação no talkshow do Jô Soares reverberou no meio musical pela análise da melodia ascendente por quartos de tom, mas levantou mesmo a platéia pelo elogio da afirmação feminina pela sexualidade, ao identificar neste refrão uma reação feminina à castração judaico-cristã que proíbe a mulher de gozar.

Então chegamos ao funk que ouvi no caminho da padaria. Na sequencia do título deste artigo a próxima parada é Freud, com o mote dado por Tom Zé. A teoria psicanalítica clássica afirma que “a descoberta das diferenças anatômicas entre os sexos (presença ou ausência de pênis) motiva a inveja do pênis nas meninas e a angústia de castração nos meninos, pois o complexo de castração centraliza-se na fantasia de que o pênis da menina foi cortado”. O período do desenvolvimento em que isto se dá é chamado de fase fálica, aproximadamente entre os 2 e os 5 anos.

Voltemos ao funk em questão. A simbologia fálica é óbvia, mas há algo importante a ser acrescentado: o fato de a mulher estar no comando, ao fazer o “boneco desaparecer”. Ora, naverdade ela se apropria do pênis. Agora é ela que tem o poder.

Tudo isto poderia servir de argumento (e eventualmente é mesmo usado como) aos críticos do funk. Afinal, a análise está partindo de uma fase sexual da primeira infância… Acontece que a fase fálica é muito próxima, em termos psíquicos, da fase genital, atingida na puberdade. “O desejo de ter um pênis e a aparente descoberta de que lhe falta ‘algo’ constituem um momento crítico no desenvolvimento feminino. Segundo Freud: ‘A descoberta de que é castrada representa um marco decisivo no crescimento da menina’”.

É quando chegamos em nossa próxima parada: o feitiço. Se a primeira coisa que este funk me lembrou foi Tom Zé, a segunda foram as bruxas da Idade Média. Explico: entre as inúmeras crenças nos poderes das feiticeiras na época, estava a de que elas tinham a vagina dentada! Ou seja, teriam a capacidade de decepar o pênis dos homens no ato sexual.

Além disso, as bruxas eram comumente associadas a Lilith, que na mitologia católica medieval era considerada a primeira mulher de Adão. Ela teria sido criada junto com ele (ou seja, em pé de igualdade), no sexto dia da Criação divina, mas teria se recusado a se submeter a Adão permitindo que ele ficasse por cima no ato sexual. Então, Lilith teria deixado Adão e o Paraíso e se unido a Lúcifer, e Deus então teria criado Eva da costela de Adão. As feiticeiras seriam filhas não de Eva, mas de Lilith.

Por último, notemos uma sutileza insuspeita na letra: a diferenciação entre a mágica e o feitiço. O funk “Que que isso” é apresentado pelo Mc Mágico e por Suzi Feiticeira. A mágica realizada pelo homem é caracterizada como um truque. Já o feitiço dela é real. A mágica dele tem efeito apenas sobre ele mesmo. O feitiço dela tem efeito sobre ele.

Na entrevista ao Jô Soares, Tom Zé fornece uma estatística quase incrível: 68% das estudantes da USP, meca da civilização, nunca teriam tido um orgasmo. A reação de Jô dá a deixa para a relação sexo/religião: “Nem na USP! Na PUC, então, nem pensar!” A proibição do gozo feminino e a fixação de seu papel submisso tiveram na Santa Inquisição (última parada do título do artigo) um ponto culminante. Uma mulher se recusando a este papel foi passível de pena de morte. Tom Zé denuncia esta proibição até os dias atuais, tabu quebrado pela funkeira Tati Quebra-Barraco, e por Mc Bola de Fogo e as Foguentas em “Atoladinha”. “Que que isso” decifra e traça sinteticamente o roteiro da mulher se apropriando da própria sexualidade, amadurecendo simbolicamente da fase fálica/infantil para a genital/adulta, conquistando sua igualdade com o homem negada desde o Velho Testamento, se apropriando do pênis e chegando junto. Juntinho.

(Meus agradecimentos a Paula Ceci, pela revisão dos conceitos psicanalíticos, e Vani Ribeiro, pelo link do Tom Zé no Jô.)

As citações de Psicanálise foram retiradas de Psiquiatria Geral.

Tom Zé no Jô:

http://www.youtube.com/watch?v=hubD31XaHqU
Atoladinha (erradamente creditada a Tati Quebra Barraco e Mc Sandrinho):
http://www.youtube.com/watch?v=Nk6r9EmePxs
Que que isso: