Do maxixe à marcha-enredo, e depois

Década de 1920. Ismael Silva e o pessoal do Estácio forjam o novo formato do samba, mudando sutilmente a divisão rítmica do samba amaxixado da turma de Sinhô e da casa da Tia Ciata. (Ouça Jura, de Sinhô, e Se você jurar, de Ismael Silva, para perceber a diferença), e ambos trocam acusações. Ismael diz que o que Sinhô faz é maxixe, não é samba; Sinhô diz que o que Ismael faz não é samba, é marcha.

E não deixavam ambos de ter sua parcela de razão. Ismael mais tarde comentou que um dos motivos para a mudança foi o fato de que os blocos carnavalescos que se estruturavam no carnaval carioca precisavam de um ritmo que os fizesse andar para a frente, enquanto a divisão do maxixe induzia a dançar no mesmo lugar. Esta história é contada em detalhes por Carlos Sandroni no livro Feitiço Decente

Corta para a virada do século XXI. Chovem críticas aos sambas-enredo a cada ano mais acelerados das escolas de samba, enquanto ocorre uma entressafra de bons sambas. O que mais se ouve é que os sambas-enredo se transformaram em marcha. No entanto, a espetacularização crescente do evento, levando cada vez mais em conta as transmissões pela TV, causaram uma diminuição progressiva do tempo para a passagem de cada escola, na contramão do aumento progressivo do número de componentes das grandes agremiações, além dos carros alegóricos cada vez mais gigantescos. Assim, pelos mesmíssimos motivos que levaram a turma do Estácio a mudar o samba, os compositores das escolas adaptam seus sambas às novas necessidades.

Em 2010, a Unidos de Vila Isabel apresentou um enredo em homenagem ao centenário de Noel Rosa. Martinho da Vila, que ao chegar à escola no fim da década de 1960 mudara a maneira de fazer samba-enredo, desta vez apresentou um samba com com apenas um enorme refrão, em vez dos dois que se tornaram obrigatórios. Jà no dia da escolha, a bateria de Mestre Átila teve muita dificuldade em acompanhar, o público assistiu a apresentação do samba sem cantar, mas mesmo assim o samba foi escolhido e celebrado por muitos dos que lamentavam a correria dos sambas atuais. Depois de mudanças e contra-mudanças no samba, tentando adaptá-lo sem desfigurá-lo, no dia do desfile aconteceu um pequeno desastre: a despeito da gravação no CD ter ficado boa, a estrutura de versos, até mesmo o vocabulário da letra do samba de Martinho exigiam no desfile uma baixa velocidade da bateria que se tornara totalmente impossível, e Mestre Átila recebeu as notas mais baixas de sua vida, embora a Vila tenha conseguido ainda um honroso 4º lugar. (veja a história aqui e aqui)

Noel – a presença do Poeta da Vila – de Martinho da Vila

Não vai aqui nenhuma condenação, nem dos sambas corridos, nem dos que os condenam. Apenas a constatação de que os tempos mudaram, e com eles os sambas. É certo que a velocidade exigida para a bateria hoje se reflete em sambas com versos e palavras curtas, e que os dois refrões são necessários para manter a escola em movimento e igualar a harmonia – pois o refrão é o momento em que a escola canta mais alto e o ritmo fica mais marcado, e assim ajusta-se o canto e os instrumentos de modo que a escola não atravesse. Estas são exigências técnicas que se tornaram quase obrigatórias, o que não significa que impeçam o surgimento de novas possibilidades e variações, e muito menos a criação de bons sambas.

E este ano de 2012 parece vir a calhar para demonstrar isto, tanto pela qualidade de boa parte dos sambas deste safra, quanto principalmente pela busca desabrida de caminhos que permitam uma renovação formal nos sambas. Não deixa de ser irônico que, depois de um samba com um refrão só ser saudado como novidade há apenas dois anos, o samba eleito melhor deste ano, e igualmente recebido como inovador, tenha três…

…E o Povo na rua Cantando é Feito uma Reza, um Ritual… – de Luiz Carlos Máximo, Wanderley Monteiro, Naldo e Toninho Nascimento

Sem dúvida, os três refrões do samba da Portela – de resto realmente excelente – e a recepção a eles são um sinal dos tempos. Porém, ainda outro sintoma desta procura de alternativas está, antes dos sambas, nos próprios enredos escolhidos. Senão, vejamos: com resultados de qualidade variável, duas escolas elegeram o Nordeste como enredo (Unidos da Tijuca e Salgueiro); duas foram à Bahia (Portela e Imperatriz); uma foi a Angola (Unidos de Vila Isabel); e uma, mais modestamente, foi ao bairro de Ramos, na Zona Norte do Rio (Mangueira). Em todos os casos, os sambas-enredo e as baterias destas escolas, se deixaram impregnar pelas variações rítmicas das culturas destes lugares, respectivamente o baião e o xote, levadas de capoeira e candomblé, o semba e o partido-alto do Cacique de Ramos – neste último caso, a bateria literalmente parou para o pagode tomar a avenida.

Será este o caminho para o samba-enredo, a troca com outros rítmos? Não me atrevo a responder. Até porque, neste momento, pouco se modificou a estrutura dos sambas devido a estas trocas, as mudanças se limitaram quase somente a frases com “sotaque”, de modo a evocar o enredo também na melodia, e não só na letra, e possibilitar à bateria inovações rítmicas, viradas e paradinhas. Mas me parece que os compositores das escolas, depois de anos de aceleração progressiva e de sambas insossos, vão procurando alternativas criadoras. Então que continuem mudando os tempos, e com eles os sambas. Aguardamos curiosos.

Para onde vai a autoria afinal?

Trago o terceiro artigo que escrevi para a revista virtual Arte Institucional nº5.

João Brasil prometeu – e está cumprindo – fazer um mashup por dia ao longo de 2010. O resultado pode ser conferido em 365 Mashups,onde ele está disponibilizando suas criações. Mas peraí, o que é mashup? Um tipo de penteado?

Mashups consistem na técnica de sobrepor duas músicas criando uma terceira. A origem disto está nos DJs, que fazem a emenda de uma música na outra sincronizando sua batidas. Mas no caso do mashup, não é apenas uma transição, mas o objetivo em si. João Brasil já misturou Beatles com funk carioca, Miles Davis com o rapper Snoop Dog e continua.

A prática do mashup vem por mais uma pedra encima do já cambaleante conceito de autoria na obra de arte. Não é de hoje que ele vem aos poucos se desmilinguindo. A invenção do sampler, aparelho que permite manipular e utilizar sons pré-gravados, permitiu que os músicos fossem ao céu na criação de novos timbres, mas também fez com que James Brown se tornasse o músico mais copiado da história (sem receber os créditos), e carregou toda a base instrumental da canção de Prince When Doves Cry, para Pray, de Mc Hammer; e Shake!para ouvir (é necessário se inscrever gratuitamente) ou para baixar – para A Gente dá Certo, gravada por Sandy & Júnior!

A diferença é que o sampler traz pedaços do arranjo, vozes de instrumentos isoladas. Já o mashup usa a gravação integral, incluindo letra, melodia, harmonia – que faz com que seja mais fácil fazer a junção se uma das músicas for um rap, por exemplo.

Mas a questão de atribuição de autoria já foi muito menos rígida do que imaginamos. Johann Sebastian Bach, pegou “emprestados” diversos temas de outros compositores e o usou nas suas próprias peças, sem que isto fosse considerado plágio. Porém, ao longo do tempo isto mudou, e na entrada do século XX, era impensável mudar o que o compositor tinha escrito (na época contemporânea isto mudou novamente, mas fica para outro dia).

Mas na música popular, a coisa era diferente. Donga, sambista carioca da virada do século XX, dizia que “samba é que nem passarinho, é de quem pegar primeiro”. Isto porque a maioria dos refrões cantados nas rodas era de domínio público, ou seja, folclóricos. Aquele que é tido como o primeiro samba gravado, “Pelo Telefone”, é na verdade uma junção de pelo menos três desses refrões, o que pode ser comprovado tanto por sua estrutura irregular quanto por sua letra sem pé nem cabeça. Quem tirou os sambistas da época da pindaíba foi Noel Rosa, que os incentivava a fazer segundas partes para os refrões populares, registrarem a autoria e ganharem um dinheiro. Ele próprio fez isso em “Fita Amarela”, por exemplo.

Veja a história e a letra de “Pelo Telefone” aqui.

É claro que obras de arte sempre dialogam entre si, é nisto em grande parte que está sua riqueza. Quadros inspiraram canções e vice-versa desde sempre. Porém, é possível traçar um arco subjetivo que vai desde a apropriação que só beneficia quem se apropria, até a que relê e redimensiona a obra original, agregando-lhe novos significados e revitalizando-a.

Djavan apresentou a canção “Violeiros” em seu álbum “Coisa de Acender”. Os primeiros onze versos desta música são os mesmos do poema “Cantadores do Nordeste”, de Manuel Bandeira. Daí por diante, Djavan segue um caminho diferente, traçando uma visão lancinante da relação entre a vida sofrida e a obra exuberante dos repentistas do sertão. Djavan se serve do poema de Bandeira como inspiração inicial e o musica magistralmente, mas nada acrescenta ao poema em si. Na edição original em LP, não constava a parceria, tendo sido hoje a omissão reparada no site oficial do cantor.

O poema Cantadores do Nordeste, de Manuel Bandeira;

A letra de Violeiros, de Djavan, e a gravação de Violeiros.

Dorival Caymmi cantou em “Você já foi à Bahia?”:

Nas sacadas dos sobrados
Da velha São Salvador
Há lembranças de donzelas
Do tempo do Imperador
Tudo, tudo na Bahia
Faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito
Que nenhuma terra tem.

Esta letra vem acompanhada de uma melodia que desce em movimentos circulares e malemolentes, ao mesmo tempo afirmativa e convidativa, rememorando o passado, mas nos aproximando da terra de Caymmi, cantada também em “Samba da minha terra”.

Pois Caetano Veloso, na sua canção “Terra”, canta exatamente a mesma estrofe até o penúltimo verso. Só que, na canção de Caymmi, esta estrofe se segue a uma louvação à Bahia, e, neste caso, ela coroa uma divagação que começa “na cela de uma cadeia” e termina nos confins do espaço sideral. A melodia tem um desenho análogo à de Caymmi, só que invertido, ascendente, levantando o ouvinte do chão. A Terra/Bahia (agora com maiúscula) agora é a base para um sentimento de pertencer ao planeta.

E, lembremos, Caetano não  canta o último verso, diz: “a Bahia tem um jeito…” e entra no refrão, que começa por uma das palavras do último verso de Caymmi, o título de sua música: “Terra”. Isto remete à visão da Terra do espaço, cantada no início da letra. Mesmo assim, o último verso de Caymmi permanece implícito. Da mesma forma, Caetano não inclui Caymmi como autor de “Terra”. Mas o trecho de letra está entre aspas no encarte do álbum. Caetano, ao contrário de Djavan, parte do pressuposto de que o ouvinte conhece a canção original. Ao mesmo tempo, ele homenageia Caymmi como uma influência fundamental em sua obra, e o ultrapassa de certa maneira ao desdobrar a Bahia da primeira música para todo o planeta na segunda.

Você já foi à Bahia?

Terra

A relação entre duas obras pode se dar suavemente ou por contraste. Quando o jornalista Ricardo Calazans (abraço e obrigado, Ricardo) noticiou no blog MPB Player que João Brasil mesclara todas as faixas de “Let it be”, dos Beatles, com a “a fina flor do funk carioca”, choveram críticas ferozes, tanto de fãs dos Beatles quanto de odiadores do funk. O que talvez não se tenha percebido é que a novidade que ele trouxe é antiga, bem antiga. João rouba seu método de Bach e o passa adiante a quem se interessar, gratuitamente; rouba a autoria de suas obras e, ao mesmo tempo, as compartilha generosamente, como todo DJ. Ouvir o que ele faz como duas músicas não acrescenta nada a nenhuma das duas. Ouvir como uma obra nova pode, ou não levar a algum lugar. Goste-se ou não do resultado, João Brasil dispõe-se a correr um risco recusado por Mc Hammer e Sandy & Junior, que tomaram trechos a obra de um gênio como Prince, e pouco acrescentaram a ela. João Brasil prefere dar um pequeno passo à frente. Ou, no caso, 365.