Este texto é sobre Pra onde que eu tava indo, quarto disco solo autoral de Maurício Pereira. Mas o penúltimo verso de Música serve pra isso, canção que dá nome ao segundo álbum dos Mulheres Negras, impõe-se como a frase guia do artigo. Pouco importa se já usei esta mesma frase como título do artigo que escrevi sobre esta canção específica. Esta declaração de princípios se estende não apenas por este álbum, mas por toda a música de Maurício Pereira: Que uma banalidade gere uma canção gigante. Em cada canção dele, está de algum modo o embate entre o simples e o complexo e suas diversas resoluções. Maurício é um homem comum, com tudo de trivial que tem o homem comum, e tudo de extraordinário que tem cada homem comum, e sua música é o espelho disto. Eu acho que sou o típico compositor brasileiro, viralata e refinado, não é assim que é? Principalmente letrista e melodista.
Como ele próprio aponta, o grande condutor das canções de Maurício é a letra. Isto não é exatamente novidade na canção brasileira, mas dá uma boa medida de diferenciação do processo de composição pós-bossa-nova, calcado na harmonia. Frequentemente suas letras são desenvolvidas a partir de uma rima, aparentemente sem tratar de um assunto específico, que vai se desdobrando de modo quase aleatório. Só neste álbum duas são baseadas na mesmíssima rima, a do verbo na condicional: Criancice e Nós três mais Maria Eunice. A impressão de nonsense absoluto e divertido da primeira escuta vai se desfazendo aos poucos, ao perceber, por exemplo, como Criancice se torna repentinamente uma canção de amor, um pouco ao modo de E se, parceria de Francis Hime e Chico Buarque. Um falso nonsense, como falsas magras têm mais carne que aparentam.
Ou uma espécie de voo de mosca, aparentemente desgovernado, mas com destino certo. Um flanar, tanto na linguagem quanto nas ruas de São Paulo. Maurício é um flaneur, personagem hoje em extinção. Se em canções como Trovoa ou no Modão de Pinheiros (É por isso que as pessoas mudam de bairro), de seus álbuns anteriores, os versos percorrem a cidade, seja lirica, seja comicamente, nas letras deste álbum eles também flanam, mas não tanto pela cidade (que continua sendo o seu cenário implícito), mas pelas rimas, ideias, linguagem, e o significado vai se construindo pelo percurso, como a direção se define não pelo destino final, mas pelos bairros por onde se passa, e tornando-se maior que as partes do percurso.
A voz de Maurício também contribui tanto para o aspecto viralata quanto para o refinado: se as letras de Maurício são um voo de mosca, sua voz, desempostada, metálica, é uma espécie de voo de besouro, que não se espera que consiga ir tão longe. Tão comum que é usada em locução de publicidade, justamente por permitir a identificação com o público em geral. A relação da voz de Maurício com o que ele canta merece uma atenção especial. Seu tom absolutamente coloquial, mesmo nas canções mais confessionais, inaugura um lirismo-rés-do-chão, permite uma aproximação com o ouvinte que é identificação, mas também simultaneamente a cumplicidade de uma piscada de olho de não me leve tão a sério. A possibilidade de explorar comicamente seu timbre foi explorada nos Mulheres Negras, mas em sua música solo permanece apenas como a sombra de uma dúvida: Maurício não se leva a sério demais, o que lhe permite irreverências, associações díspares. Mas sua voz, exatamente pelo timbre do homem comum, também tem algo de profundamente verdadeiro, e as letras que canta, aparentemente absurdas e frequentemente descrições de elucubrações que vagueiam ao léu, pegam carona em sua credibilidade e casam-se à perfeição com o aspecto de confissão íntima – e permanecem irreverentes, díspares, simultaneamente.
Como a faixa título, retrato instantâneo do que passa em sua cabeça por um segundo no aeroporto, descrição de uma pane mental, a exemplo do que fizera em outra faixa título, Mergulhar na surpresa. Pra onde que eu tava indo é um flanar não por um lugar, não pela linguagem, mas por possibilidades de vida. Justamente por ser um flanar, se permite alternativas impraticáveis como ser presidente ou astronauta, pois é exatamente na imaginação viajante que elas se realizam. Exatamente na linha fina entre o confessional (e eu carregando sonhos) e o delirante (vou tentar cuspe à distância), para enfim pousar suavemente (já sei, eu vou pra São Paulo) numa declaração de amor – ainda assim irônica – à cidade. Um equilibrismo que é também do arranjo com pegada roqueira para o que, na essência, é mesmo uma moda de viola, não por acaso parceria com o violeiro Chico Lobo.
Ou podemos falar de Fugitivos, ótima exatamente para tratar da dificuldade em classificar a música do Maurício, sua recusa em ficar numa prateleira só. Ou mais exatamente, a recusa das coisas em se deixarem classificar por autoridades de qualquer tipo, e a recusa a estas autoridades. A letra tem um tom próximo do infantil, com sua menção ao Senhor Capitão da cantiga Bão balalão e o coro de crianças no final – e é mesmo uma canção feita para os 15 anos do Projeto Guri. E talvez seja justamente sobre a capacidade da criança, como do artista, de ter uma visão de mundo sem catalogações. Senhor Capitão quer dar uma ordem pras coisas / Mas as coisas nunca tão a fim. As autoridades cômicas que vão sendo citadas acabam sempre fugindo furtivamente, desmoralizadas tanto pela recusa das coisas na letra quanto pela forma da própria canção, pela falsa falta de sentido.
Mauricio declara em entrevistas sua vontade de fazer o simples. Gostaria de fazer músicas como Roberto Carlos, Zezé Di Camargo. E cada vez menos estou conseguindo isso, afirma na excelente entrevista que deu ao site Gafieiras, (de onde tirei e estendi o conceito de flaneur que lhe aplico), logo antes do lançamento de Pra Marte, o álbum anterior. Porra, o meu ídolo é o homem da rua! Por outro lado, Arte sem sagrado é punheta! E tanto quanto o repertório de sua autoria, a escolha minuciosa das canções alheias incluídas no álbum sejam o maior indicativo disto. Talvez em especial Medrosa, de história reveladora. Sua letra é de autoria de Stella do Patrocínio, interna do Hospital Psiquiátrico Colônia Juliano Moreira, musicada , entre várias outras, por Lincoln Antônio para um espetáculo inteiramente baseado na fala de Stella.
Maurício, portanto, traz para si e assume o discurso de uma louca. Só que não há nada de louco neste discurso, muito ao contrário. O que há é uma admissão corajosa de humanidade: Eu sou muito medrosa, cínica, covarde, sonsa, injusta, eu não sei fazer justiça (…) Tenho que enfrentar a violência e a grosseria, e ir à luta pelo pão de cada dia. Ou diria Guimarães Rosa, na voz de Riobaldo: O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Ao cantar a música de uma louca, Maurício vai ao extremo do homem comum, porque faz esta canção na primeira pessoa ser dele, toma-a para si humildemente – e efetivamente, a canção se integra tão harmoniosamente ao restante do repertório que um desavisado vai crê-la de autoria do próprio Maurício. Assim como a canção infantil que não é infantil, uma canção de louca que não tem nada de louca, e o conceito de homem comum não para de se expandir, ou se aproximar.
E a aproximação se torna enorme (de perto ninguém é normal) no discurso de Jorge Mautner, em Aeroplanos, pelo uso descarado de clichês, passando do limite do brega e do kitsch: Você / faz tantos planos / fica voando / em aeroplanos / da imaginação // porque não faz seu campo de pouso / no aeroporto do meu coração? Mas principalmente nas canções de abertura e encerramento do álbum, Notícia, de Nelson Cavaquinho, e Ciao, amore, ciao, de Luigi Tenco. São duas canções de extrema emotividade, dois dramas de fim de relacionamento. O primeiro, com a habitual melancolia de Nelson, e o segundo, de história terrível – foi a última canção de Luigi, que suicidou-se na noite seguinte a apresentar a canção pela primeira vez, no Festival de San Remo, e até hoje perdura o mistério do motivo. Maurício não nega a dramaticidade, mas a aproxima, a torna até certo ponto intimista no primeiro caso, e na segunda não hesita em mergulhar no refrão melodramático abrindo várias vozes, num coro de balançar mãos na platéia. Identificação total.
Sempre penso que há dois lados: não acho que é legal esse papel do artista endeusado num monte Olimpo, não está certo! Mas a música, toda a forma de arte, a obra de arte tem que expressar essa divindade, o sagrado, e não obrigatoriamente o artista. O artista tem que ser meio cavalo, que nem quando vai no terreiro, você faz o serviço e tchau. Até porque tem uma cisma de que uma sociedade podre é que precisa de artista. Porque se a sociedade for linda, legal, resolvida que nem o Paraíso antes da cobra, você não precisa do artista para ver a arte. O artista é uma muleta, e a arte que você paga para ter, você paga para ter uma visão do mundo, da beleza ou das questões, da inquietude. Deduz que essa arte é poluição. É como se eu dissesse: quando o mundo for perfeito não vai mais precisar de artista e tudo será obra de arte. Quando saio a pé da minha casa, para dar uma volta ali na Vila Ipojuca, um cocô de cachorro, um velhinho fazendo a barba, as pessoas atravessando a rua, isso é arte!! Mas quando o mundo for assim não será mais preciso a minha profissão; vou poder ter o meu boteco em Pindorama e tudo mais.
A divindade de um cocô de cachorro, um velhinho fazendo a barba, as pessoas atravessando a rua, é o que Maurício busca retratar, diz ele na já citada entrevista. Mas, ao buscar o simples, o faz pelo caminho mais complicado, como se fosse necessário antes ser complexo, para só então aprender a ser simples, não no caminho de ida, mas no de volta, com o reconhecimento de que Deus fez tudo num sopro só / como quem faz um único verso, últimos versos de Mautner em Aeroplanos. Maurício transita entre o Roberto Carlos que ele aspira ser e o James Joyce que, de forma tremendamente sofisticada, acompanha a vida comum de um Leopold Bloom por 24 horas e o compara a Ulisses, protagonista da maior epopéia. O ponto de partida de Maurício é o mesmo de sua chegada: falar de coisas cotidianas sem a pretensão de transcender – o que acaba tendo exatamente este efeito; falar do mais coloquial e da forma mais coloquial, daquilo que é também o mais alegre ou o mais triste – Não adianta tentar segurar o choro; o nonsense e a rima, o banal, o comum, o que poderia acontecer com todo mundo, e acontece.