Como, conceitualmente, mudar o mundo

O ótimo documentário Só o céu como testemunha registra detalhadamente o processo de criação do álbum Imagine, de John Lennon, em 1971. E traz também luzes sobre a participação de Yolo Ono neste processo, e principalmente como sua influência se fez sentir no álbum não apenas como tema de canções como Oh Yoko e Jealous Guy, mas como influência artística participante e direta; e também como a canção título do álbum e o single lançado pouco tempo depois, Happy Xmas (War is over), são de certa forma a realização de um projeto dela, tanto quanto dele,e imensamente ambicioso: a consolidação de um projeto de paz mundial a partir de uma obra conceitual que convidasse as pessoas a participar.

Lennon conheceu Yoko em uma exposição dela, por meio de uma obra interativa bastante simples: uma escada que precisava ser escalada para que, com o auxílio de uma lupa, pudesse-se ler no teto uma única palavra: yes. A positividade da obra como recompensa de um esforço pessoal do expectador tornado participante conquistaram John. Este era o espírito do trabalho artístico de Yoko, o que não exclui um posicionamento político. Porém, Lennon tinha também uma forte atuação política, mas estava como que farto dela, e principalmente das cobranças incessantes ao seu redor e das decepções que tiveram com pessoas como o Maharishi, que prometiam soluções e abusavam da confiança de incautos.

Um exemplo perfeito desta visão de Lennon está em Revolution, canção dele gravada no Álbum Branco: toda a letra é empenhada em desfazer ilusões políticas de um interlocutor e a não se comprometer com elas: Você diz que vai mudar a constituição, que é a instituição, mas é melhor você abrir a sua cabeça. Revolution não aponta nenhuma saída, apenas tira sarro de quem tem crenças simplistas. John estava neste espírito, até conhecer Yoko, e então sua poética mudou radicalmente, tornando-se direta e cortante de uma maneira avassaladora. Antes, fazia questão de confundir, em letras como a de I am the Wlarus, Strawberry Fields Forever ou Glass Onion, que cita as anteriores para confundir ainda mais; agora, ele abandona metáforas e fala diretamente o que quer dizer, da maneira mais crua possível: Gimme some truth. Ou:

Love is real, real is love
Love is feeling, feeling love
Love is wanting to be loved
(Love)

ou

Mother, you had me
But I never had you
I wanted you
But you didn’t want me
(Mother)

Esta radicalidade poética vai se cruzar com a de Yoko, que lançara antes de conhecer Lennon o livro Grapefruit, um marco da arte conceitual. Trata-se basicamente de um livro de instruções para pinturas, esculturas, e obras de arte mentais: Imagine um peixe dourado nadando através do céu. Deixe-o nadar de leste a oeste. Ou Imagine as nuvens pingando. Cave um buraco no seu jardim e ponha-as lá. Mesmo quando não se iniciavam com a ordem para imaginar, cada página do livro era um exercício de imaginação. Ele foi relançado em 1970, agora com um pequeno prefácio de Lennon: Olá! Meu nome é John Lennon. Gostaria que vocês conhecessem Yoko Ono.

Anos depois, em uma de suas últimas entrevistas, Lennon reconheceu que deveria ter dado a Yoko a parceria de Imagine, e só não o fez por puro machismo, pois o conceito da letra e parte dela vieram diretamente de Grapefruit. Porém, Imagine faz, de certa forma, o caminho contrário das obras de Yoko: sua letra não constrói uma paisagem, mas a desmonta. Toda ela é destinada a tirar coisas do mundo, as coisas criadas pelo homem que, no julgamento de Lennon, o estragam: Paraíso, Inferno, países, religiões, propriedade, fora com tudo isso, e vamos ver o que sobra. Lennon não está pintando, está limpando a tela. Este movimento de negação tem um ponto em comum com o período anterior, que simbolizei com Revolution, mas está inserido na nova poética mais direta, e tem uma diferença fundamental: desta vez Lennon quer se comprometer com o resultado. Ele não está abrindo mão de lutar por algo, está tirando do caminho aquilo pelo qual não vale a pena lutar, para ver mais claro.

E o que sobra, retirado todo o entulho criado pela Humanidade? Sobra a própria humanidade. Imagine chega até aí os versos finais, sem desenvolver o assunto. Ela traça o caminho de reconhecimento do caminho. Porém, faltava ainda pintar então o que restou, a própria Humanidade como forma de reconstrução deste mundo. E John e Yoko o fazem não no próprio álbum Imagine, mas no single que lançaram no fim daquele ano.

O elemento principal de Happy Xmas (War is over) é a inclusão. O fraco e o forte, o rico e o pobre, o velho e o jovem, o preto, o branco, o amarelo e o vermelho. É a reconstrução da Humanidade a partir de nada além que a própria humanidade. E o desejo de Feliz Natal repetido e repetido é a passagem do exercício imaginativo de eliminar as criações nefastas e os obstáculos entre as pessoas ao exercício seguinte, o ato de ir ao encontro delas. Happy Xmas completa a criação conceitual de Imagine estabelecendo a Humanidade como tabula rasa da criação, e atuando politicamente de forma direta, na confluência exata da arte de John e Yoko, a imaginação comprometida com a mudança da realidade, e a mudança do mundo a partir das pessoas.

Imagine e Happy Xmas tornaram-se clássicos até o ponto de cansarem os ouvidos de muitos – a segunda particularmente no Brasil após receber uma sofrível versão em português. Mesmo críticas musicais são possíveis, como ao famigerado muro de som do produtor Phil Spector que frequentemente, ao dobrar e redobrar as gravações dos instrumentos, tira seu impacto ao invés de aumentá-los. Mas Imagine continua sendo uma canção de tremendo impacto na serenidade com que é cantada, e continua sendo difícil segurar as lágrimas quando, após o fade dos instrumentos, o coro continua cantando War is over now. Sinal de que ambas continuam necessárias, sugerindo-nos o longo caminho para reumanizar a nossa humanidade, para passar de duas canções à realidade. Talvez elas tenham se tornado tão batidas para alguns por culpa nossa, que não deveríamos ter que ouvi-las de novo e de novo sem termos tomado as atitudes sugeridas por elas. Sinal então de que John não deixou de ter razão no que disse antes: We better free our mind instead.

 

(Paula Ceci, obrigado por clicar no documentário na noite de domingo.)

A anti-canção Revolution 9

Ouvindo o Álbum Branco, meu preferido dos Beatles. Sei que entro em terreno perigoso aqui, cada um tem seu preferido, as análises divergem, mas assumo o risco de fazer a minha. Fiquei muito tempo entre este e o Sargent Pepers. Hoje, tenho a impressão de que o Sargent Peppers é, digamos, barroco, e o Álbum Branco é clássico. Ou que o Sargent Peppers está para Memórias Póstumas de Brás Cubas como o Álbum Branco está para Dom Casmurro. Ou seja, o primeiro é um rompimento, uma – vá lá – quebra de paradigma, cheio de detalhes que apontam cada um em uma direção. Cada descoberta sonora dos rapazes parece gritar por atenção, sendo quase mais importantes que as músicas que as abrigam.

Já o Álbum Branco me soa o momento em que todas estas novidades se incorporam de verdade ao processo criativo. Não há mais a impressão de “atirar para todos os lados”, ainda que continuem as descobertas. O álbum me parece mais homogêneo musicalmente – de se espantar, já que é duplo -, as peças me parecem estar mais no lugar, a serviço das canções que os garotos eram mestres em fazer, ainda que a avaliação posterior de Lennon seja de que o disco é “John e uma banda de fundo, Paul e uma banda de fundo” etc. Se a cara do Sargent Peppers é ter todas as caras, a do Álbum Branco é não ter cara, como fica explícito em suas capas: uma povoada por uma multidão e com um nome fictício, a outra sem nada, nem mesmo o nome da banda (só mais tarde passou a ter o “The Beatles” em relevo no LP).

(Parêntesis para histórinha: uma vez, numa aula de canto, assisti a alguns alunos que preparavam repertório do compositor inglês John Dowland… do século XVI. Fiquei espantadíssimo ao perceber que trechos inteiros das peças para canto e alaúde tinham uma sonoridade muito próxima dos Beatles. Dei-me conta então de como as canções deles tem a capacidade de ressoar muito, muito fundo, fazendo o amálgama do ritmo “negro” do rock com três séculos de tradição da canção.)

Come Again, de John Dowland, com Sting e Edin Karamazov

For No One, Beatles.

(Imagine os arranjos destas duas canções trocados entre si. Depois, sigamos.)

Mas então, o que faz Revolution 9 quase no fim deste álbum? A primeira audição desta colagem musical dá a impressão de defeito no disco, ou de uma brincadeira de mau gosto. Mesmo sabendo que a faixa não é algo absolutamente inédito e que usa técnicas da música experimental concreta da época (Stockhausen, por exemplo), a música parece um corpo estranho no disco, como um borrão no canto de um quadro de Rembrandt. O que faz a coisa mais distante possível de uma canção no meio de um punhado de canções?

Ora, exatamente isto. John Lennon (seu autor, junto com Yoko Ono. A autoria Lennon/McCartney se deve ao antigo trato dos dois) a colocou ali, contra a vontade de Paul, possivelmente para ser o contraponto do álbum. No entanto, Revolution 9 faz referência em seu título à música que o abre, Revolution 1, e, mesmo se terem nada em comum tematicamente, partiu de um take não aproveitados dela sua construção. Tem também pedaços distorcidos ou tocados de trás para frente de várias outras canções do álbum, misturados e quase indistinguíveis, além de conversas do produtor do grupo George Martin, de Yoko, de George Harisson. Ou seja, é uma não-canção que se alimenta das canções do disco, como um sonho de alguém que vivenciasse sua produção.

Lennon, em 1974, gravou #9 Dream, em que canta o seguinte:

On a river of sound
Thru the mirror go round, round
I thought I could feel
Music touching my soul, something warm, sudden cold
The spirit dance was unfolding

Há controvérsias sobre se #9 Dream teria mesmo relação com Revolution 9 (Lennon, nascido num dia 9, gostava mesmo do número), mas a idéia de “um rio sonoro girando no espelho”  e a atmosfera de sonho explícita em ambas as músicas – de maneiras diferentes, é claro – as aproxima bastante.

Os Beatles foram os criadores de canções por excelência. Até mesmo nos momentos mais experimentais, a arquitetura de suas composições é invejável, a ponto de continuarem até hoje  influenciando bandas (vide Oasis e companhia). Revolution 9 representa uma reação violenta contra as amarras que esta forma lhes impôs ao longo do tempo (talvez também uma reação tardia ao ‘bom-mocismo’), provavelmente a reação mais profunda de todas que tiveram, pois nesta eles subvertem completamente o formato que os consagrou. Usando as canções que criaram, criam a coisa mais distante possível das canções que os eternizaram, como que zombando de si mesmos. Colocada estrategicamente como penúltima faixa do álbum, ela é ao mesmo tempo um clímax e um anti-climax, o ponto de radicalismo extremo e a reversão (ou superação) de todas as expectativas. Por este ponto de vista, ela está exatamente no lugar em que deveria estar.

E esta sensação se confirma para mim na faixa seguinte, a última do álbum. Good Night é, mais que uma canção, um legítimo acalanto composto por Lennon para o filho Julian, então com 5 anos, embalado nas cordas mais suaves que se possa imaginar. Depois do tremendo mergulho no caos, os rapazes foram piedosos com o ouvinte, consolando-o pelo mundo sem sentido que já constatavam na primeira faixa, Revolution 1, em que dizem “Inclua-me fora disso” para partidários de uma ‘Nova Ordem’. Acordando do pesadelo de Revolution 9, não há nada como ouvir Ringo Starr (logo ele!) sussurando: “Good nigth everybody, everywhere”. Em qualquer tempo, acrescento eu, quarenta anos depois.

Revolution 9

Good Nigth