Os ancestrais vieram sambar

João Bosco e Martinho da Vila são amigos, mas se encontram pouco pela dificuldade das respectivas agendas. Mas um dia, no início da década de 1980, os dois tocavam na mesma noite da cidade de São Paulo, em casas diferentes e marcaram de se encontrar depois dos shows. Tomaram uns gorós – João é bom de copo, mas conta que Martinho é ainda melhor – e partiram os dois, sozinhos, conversando pela madrugada paulistana. Já quase ao amanhecer, chegaram a um largo – talvez o da Sé, mas aí minha memória falha, e depararam com uma baiana arrumando seu tabuleiro para começar a labuta.

A partir daí os relatos de ambos começam a divergir. Segundo João, a baiana batucava na panela batendo com uma colher, num ritmo sutil, e repetia um refrão: oh, iê, oh, iá, que que vem fazer aqui, Manuel? – Vim sambá. João ficou ali embasbacado ouvindo, siderado. Depois separaram-se e foram para casa. Mas três dias depois, o refrão da baiana continuava ecoando sem parar na cabeça de João, que então ligou para Martinho.

– Sabe a baiana lá do largo?
– Que baiana?

Pois é, segundo João, Martinho não lembrava de nada, talvez devido à carraspana, e ficou a dúvida entre eles: se era Martinho que não lembrava ou João que havia inventado tudo, se a baiana existira mesmo ou não. Consultado hoje, Marinho nega, e inclusive acresce que, enquanto João estava ali parado, ele se acercou da baiana e dividiu com ela não um de comer, mas uma garrafa de cana que ela malocava embaixo do tabuleiro. De qualquer forma, João disse a Martinho pelo telefone que o refrão só ia parar de tocar na sua mente quando virasse canção, e tinha que ser parceria entre os dois. Martinho foi à sua casa, e do refrão da baiana que existia e não existia nasceu Odilè, Odilá.

Odilê, Odilá é um canto ancestral. Diria mais, é a personificação da ancestralidade. No fim das contas, toda a letra composta por Martinho e João é quase apenas um pretexto para poder repetir o refrão que ouviram naquela madrugada. No entanto, a letra traz também algumas pistas, tanto objetivamente do que ocorreu naquela noite, quanto subjetivamente, traçando, em três a quatro minutos uma linha do tempo vertiginosa da trajetória do negro desde a origem africana, sua diáspora, sua dura reconstrução, até a praça em que os dois amigos o encontraram encarnado na baiana: estão lá a travessia do oceano, o gueto do Harlem, o sincretismo das religiões africanas com o catolicismo, a romaria e, finalmente, o samba.

Mas antes de tudo, Odilé, Odilá é seu refrão. Este é uma espécie de não-invocação ou melhor, uma saudação, e também uma declaração de intenção. Versos cantados por quem recepciona, (Ô de lá!, saúda ele, assim como Zeca Pagodinho o faz em seu Samba pras moças) e duas palavras em resposta, anunciando: Vim sambar. a voz de resposta, não identificada, (Manuel para a baiana, aqui perdendo seu nome ganha em amplitude) pode ser qualquer um, em qualquer lugar, em qualquer tempo. E a característica imemorial deste refrão dá a este interlocutor invisível a possibilidade de vir do passado remoto, Conforme a letra de Martinho e João se desenrola, o diálogo prosaico vai ganhando em profundidade: quem veio sambar? Quem veio da Bahia sambar? Quem veio da África sambar? A cada escuta, seu caráter de canto original, ressoando algo de idade não mensurável, vai ficando mais patente, sem que se precise saber a história de sua criação – ou talvez porque esta história o tenha impregnado pelos tempos., o tempo o tenha impregnado.

João Bosco gravou Odilê, Odilá, como a última faixa de seu álbum de 1986, Cabeça de Nego, apenas com seu violão e a percussão de Djalma Correia.

Já Martinho a gravou em 1985, no álbum Criações E Recriações.

São duas versões muito diferentes entre si. A de João econômica, reduzida ao essencial, ao mais elementar, mas com muito suingue; a de Martinho com mais instrumentos, incluindo a pele na pele de atabaques e palmas, kalimbas, mas também um clarinete e um piano. Paradoxalmente, a gravação de Martinho soa mais próxima de alguma tradição que a de João, em especial por ter a levada do samba mais evidente. Estas escolhas do tratamento a ser dado ao refrão inspirador são definidas pelo DNA artístico de cada um deles e suas histórias. Odilê, Odilá se encontra no entroncamento de duas tradições, a do samba e a da MPB, duas formas de pensar e atuar na música e na cultura que se encontraram muitas vezes, mas quase sempre com a manutenção de uma certa reserva de território. Martinho e João têm trajetórias diversas ligadas ao samba: Martinho é um sambista com sua própria sofisticação, e se permite incluir a instrumentação variada sobre uma base rítmica bem evidente; João, depois de décadas fazendo sambas, se interessa pela estilização de seus elementos. Um sambista com o pé na MPB, um mpbista com o pé no samba, e na confluência de ambos, Odilê, Odilá ganha um caráter ambíguo que é um de seus trunfos.

Mas isto nos leva a um assunto difícil, porém necessário, que é o da apropriação cultural. Pois o fato a ser enfrentado é que João e Martinho tomaram para si e assinaram um refrão popular. A baiana quituteira só está registrada na história contada por eles, assim como os múltiplos autores anônimos por quem estes versos passaram. Por que João e Martinho assumem para si a autoria do refrão para o qual fazem segundas?

A resposta talvez seja diversa para cada um deles, conforme a ligeira diferença de tradição de cada um. No caso do samba, é sempre necessário lembrar a fala de Sinhô, de que música é como passarinho, é de quem pegar primeiro. Assim como os primeiros sambas eram construídos a partir de refrões de domínio público, sem autor, simplesmente com a composição das segundas – e mesmo estas feitas, como ainda hoje muitas vezes, no improviso em volta de uma mesa. Carlos Sandroni, no seu já clássico livro Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, trata de como se deu esta passagem dos autores que se confundiam com os criadores anônimos mas passaram a assinar e os autores já imbuídos da questão autoral (e do dinheiro que envolvia) como Noel Rosa, que inclusive incentivou colegas a tomarem esta atitude – comporem as segundas de um refrão e o registrarem para si.

No caso da MPB, o assunto fica ainda um pouco mais complicado. A MPB apoia-se no procedimento bossa-novístico com relação ao samba, reapresentando-o dentro de uma estrutura sofisticada (pelos padrões da composição européia, leia-se), seja harmonicamente ou em termos de arranjo, e estendendo o alcance deste procedimento às diversas manifestações musicais brasileiras. Porém, o paradigma para este procedimento será oriundo em grande parte também da composição clássica, pelo precedente aberto no Brasil por Villa-Lobos (ou escancarado e teorizado, já que a prática já ocorria antes) e Guerra-Peixe, mas seguindo padrões paralelos ao do contemporâneo Bartók, e antes por Chopin, Tchaikovsky, tendo sido firmados desde o período romântico no aproveitamento de temas de domínio público em obras de concerto.

Ainda assim, estas raízes históricas, por mais que expliquem, não justificam o procedimento de apropriação, assim como teorias científicas ultrapassadas não justificam o racismo de hoje. João e Martinho seguem tradições que simultânea e dubiamente valorizam os temas populares ao levarem-nos a públicos diversos e mais amplos, e desvalorizam-nos ao escamotearem sua autoria, mantendo-a duplamente incógnita, tanto por historicamente não terem nome quanto pelo recolhimento do tema não assinalado em seu registro, apenas por ter sido feito informalmente. Se houvesse um registro formal do tema em um livro de Mário de Andrade ou Câmara Cascudo, isto certamente teria sido explicitado na contracapa dos álbuns, como se apenas a intervenção da cultura acadêmica pudesse legitimar a popular. A visão sobre esta relação entre os registros culturais tem mudado rapidamente da década de 1980 para cá, e isto é sem dúvida uma boa notícia, para que futuras baianas quituteiras tenham seus nomes lembrados pelos saberes que passam adiante e alimentam a cultura estabelecida.

E por isso mesmo, voltemos atenção à canção e seus elementos. A harmonia tem o refrão em tom maior, modal (sétima abaixada, mixolídio do baião e do blues) e segundas na relativa menor, e esta, embora com uma harmonia igualmente simples, com uma construção formal mais estruturada – a frase tema da segunda é cantada duas vezes iniciada na quinta do acorde e duas vezes na sétima, passando agora ao tom maior da sétima abaixada com a melodia uma terça acima, uma solução simples e elegante no desenvolvimento do tema. O contraste entre o refrão sintético e seu desenvolvimento tanto harmônico quanto temático nas segundas gera uma certa tensão estética, fruto da diferença de tratamento entre elas. Neste sentido, Odilê, Odilá é ela própria um fruto da história que ela conta, tendo em si um fragmento da ancestralidade e um complemento moderno a seu redor – como se um artefato medieval ou pré-histórico fosse completado artisticamente segundo técnicas contemporâneas. A história negra é contada não só no conteúdo, mas também em sua forma.

Mas mais que a harmonia e ainda mais que a letra, a mensagem principal de Odilê, Odillá está incrustada em seu elemento mais íntimo: a síncopa. A nota forte no tempo fraco é a condutora da canção, e a compreensão de João Bosco sobre esta síncopa é determinante na criação da levada de violão tão característica que se incorpora a ela. O motivo rítmico usado por ele em sua gravação (e também na de Martinho), nada mais é que a divisão mais típica da música negra das Américas, o chamado tresillo, também descrito por Sandroni em Feitiço Decente (um texto específico dele sobre o tresillo pode ser lido aqui). A divisão do compasso em três partes desiguais (em um compasso de dois tempos: dois seguidos de 3/4 de tempo e um de meio, ou melhor, duas colcheias pontuadas e uma colcheia) é o ponto em comum entre ritmos cubanos como a habanera e a síncopa característica do samba moderno, sendo como que um antepassado de ambos.

Pois o que o violão de João Bosco faz é tão somente uma espécie de primeira inversão rítmica desta divisão, antecipando-a: meio tempo (antes da cabeça do compasso), 3/4 de tempo, 3/4 de tempo. Sua frase se inicia na última nota do tresillo e termina na segunda com um stacatto, para recomeçar de novo e de novo. Um truque simples que apresenta a divisão originária de forma transfigurada. Martinho, em sua gravação, usa mais timidamente a inversão feita por João, mas em vez disso escancara a divisão do tresillo nas palmas que acompanham o refrão, trocando a sutileza pela abertura do terreiro para a dança. Mas o violão de João é um ovo de Colombo que, como o bumbo invertido nas baterias de escola de samba, leva em seu minimalismo a essência do samba, a inversão da inversão, o contratempo. Síncopa, a vitória do mais fraco.

A viagem no tempo e no espaço de Odilê, Odilá vem da África até a praça de São Paulo, de eras do passado até a noite em que em que a quituteira que bate colher conta sua história por meio de um refrão. Mas esta viagem também se dá em outra instância, outra dimensão, na anti-invocação da ancestralidade ali, na praça: ô de lá! Na primeira estrofe da letra, Martinho canta: Vem junto com a gente viajar na energia-som. Já João convida: Vem junto com o bumbo. É a primeira e muito sutil pista, quase um ato falho, da personificação de Martinho e João com sua própria canção – e principalmente com a canção que não é deles, mas muito anterior a eles. E é na última estrofe que esta metamorfose se completa e revela:

Preta velha bate pé, bate colher levanta pó
Dá marafo pro Odilê e solta logo seu gogó
Odilá de madrugada nem sem viola tá só
Pois tá com axé da velha nega preta sua vó

Como um sincretismo muito particular, Martinho e João convertem Odilê e Odilá em seus codinomes, ou melhor dizendo, convertem a si próprios em Odilê e Odilá. Martinho Odilê fila um gole do marafo (cachaça) que a baiana leva para se esquentar na madrugada paulistana; Odilá João invoca seus próprios ancestrais diante dela, em identificação. João e Martinho se tornam a própria canção e assumem seu nome ao mergulharem na ancestralidade. E revela-se também a quem a preta velha, cuja própria existência nesta dimensão chegou a ser posta em dúvida, saudava com seu canto, quem é que se acercava: eram eles mesmos, João e Martinho, os saudados, e neles suas ancestralidades reconhecidas por ela, como um preto velho num terreiro reconhece e saúda também a ancestralidade de seu interlocutor. Os amigos João e Martinho, fizeram sua própria viagem naquela noite de conversa sem rumo pela metrópole, e ao chegarem àquela praça já não eram apenas eles, mas todos os que foram e são por eles e por meio deles, e que criaram e construíram o samba, esta forma de resistência e rendição que mudou e sobreviveu e os guiou em um novo mundo. Aqueles que sabem, há séculos, a resposta à pergunta da baiana: Que vem fazer aqui meu irmão? – Vim sambar.

 

Meus agradecimentos ao jornalista Leonardo Lichote, que extraiu de João e Martinho às histórias que foram o ponto de partida a este artigo.

A saga do menino do corpo fechado – Parte 2

João Bosco explica neste vídeo o acorde em que se baseou para a composição de O ronco da Cuíca:

Um acorde aberto consiste num acorde em que, afora o baixo, as outras notas se distribuem em intervalos grandes, maiores que uma oitava. Habitualmente, um acorde de acompanhamento como os usados na Bossa Nova e na harmonia funcional tradicional tem todas as suas notas em intervalos de terça, quarta ou quinta, no máximo. Porém, se o acorde é aberto, a nota que estaria a uma pequena distância é tocada uma oitava acima, e o resultado de sonoridade é muito diferente. Um acorde fechado com dissonâncias tende a ser muito tenso, enquanto que se uma ou mais notas constituintes forem abertas, os intervalos diluem esta tensão. A importância de este acorde de ré menor que João descreve ser aberto é que ele vai servir de base para toda a canção O ronco da cuíca, e é isto também que permite que ele seja usado como base para praticamente todo o pout-pourri Genesis – O ronco da cuíca – Tiro de misericórdia – Escadas da Penha, do álbum 100ª apresentação, de 1983.

O acorde em questão tem um baixo em ré, que vai se deslocar depois pela sétima, dó, e pela quinta, lá. Uma oitava acima, a nota lá, quinta do acorde, e um sol, que pelas regras normais de harmonia funcional deveria ter a função de 11ª, mas que aqui, ainda na região grave, desestabiliza o acorde. Em seguida, sobe-se uma oitava para a terça do acorde, fá, e logo em seguida tem-se um mi, a nona do acorde, que está em seu lugar tradicional, porém batendo com a terça, que deveria estar oitava abaixo… Em suma, a reorganização das notas internas de um acorde menor com nona e décima primeira (mas sem a sétima) acaba formando um acorde disfuncional (no sentido de fora da harmonia funcional, mas também no estrito), em que quatro notas seguidas descendentes, lá, sol, fá, mi, se fazem ouvir, mas com uma espécie de buraco entre as duas primeiras e as duas últimas, o que, digamos, abre espaço para o desenho melódico se alojar, como o João aponta. Este acorde, apontando para múltiplas direções ao mesmo tempo, é dedilhado e explorado ritmicamente de forma quase didática por João na abertura da música, e será o basso continuo sobre o qual a saga do menino do corpo fechado será contada.

Que se inicia com uma Genesis inteiramente transformada em relação à gravação em estúdio de João (trato destas gravações na primeira parte deste texto.) A harmonia original é deixada de lado, e João conta a história do nascimento do menino como um preto velho a contaria. A interpretação contida investe a narrativa de um bocado de mistério, pari passu com a participação dos orixás e à predição de Oxum. A exaltação na repetição do verso Promete, Oxum falou cada vez mais aguda abre caminho para O ronco da cuíca, que será cantada com o mesmo acompanhamento, além de adicionar um suspense que só será desvendado mais tarde.

O ronco da cuíca interrompe a narrativa, para situá-la de forma objetiva: a sequência de associações de ideias da letra funciona como uma ambientação da vida do menino, uma descrição precisa de seu mundo, passando do aspecto externo para o interno, da interferência externa para a fome e a raiva, gerando uma empatia direta com o ouvinte. O que era um menino algo distanciado pela narração mítica de Genesis agora está plenamente identificado. Em determinado momento, João literalmente interrompe bruscamente o violão para cantar uma estrofe à capela, salientando a divisão rítmica da canção. Então fica clara outra função do acorde aberto: ao tocá-lo ora sem a primeira corda, na nota mi aguda, ora com ela, o violão de João Bosco faz às vezes de cuíca, seguindo seus padrões melódico e rítmico. Isto dá à interrupção mais um elemento a mais de dramaticidade.

Em seguida, João, reforça ainda mais esta identificação da platéia ao chamá-la para cantar junto o refrão, trazendo-a para dentro da interpretação. Se João será daqui a pouco um bardo contando o capítulo seguinte de um poema épico, a platéia assume o papel do coro da tragédia grega, mas ainda de forma inconsciente. Sobre o coro, João faz uma vocalização a partir da primeira estrofe da canção seguinte, Tiro de misericórdia. O vocalise, puramente rítmico, tem a aparência de uma língua africana, o que acrescenta a ele um mistério, como um babalorixá deitando um feitiço que não se compreende. Estamos novamente nos preparando para penetrar no lugar do sagrado, onde se desenrolará boa parte da terceira parte da história.

O dedilhado retomado para Tiro de misericórdia nos leva de volta a Genesis, de onde a narrativa será retomada. A infância do menino é contada em tons realistas em seu início, para em seguida fazer uma transição perfeita para o que nos espera, traçando seu retrato de forma impressionista:

Ídolo de poeira, marafo e farelo,
Um Deus de bermuda e pé-de-chinelo,
Imperador dos morros, reizinho nagô,
O corpo fechado por babalaôs.

Então, a partir desta menção ao sobrenatural, novamente a ação para, mas agora para a introdução dos combatentes de uma batalha em dois mundos. Se o menino é extremamente poderoso em algo que parece ser um mundo paralelo, aqueles que num outro plano parecem lhe dar seu poder são apresentados, um a um, novamente da forma mais didática possível. João, que na gravação em estúdio praticamente grita os chamamentos aos orixás, aqui fala pausadamente. Não se trata tanto de uma invocação como antes, mas sim da narrativa de uma tradição oral típica africana, em que o narrador fala com tanta propriedade como se ele próprio tivesse estado presente e testemunhado tudo. E esteve, na forma de seus antepassados, que foram os que lhe passaram a história, palavra por palavra, cada palavra dotada de um encantamento e de propriedades particulares, como cada símbolo de cada orixá traz consigo uma força particular. O desfile de deuses, suas respectivas armas e poderes tem um efeito impressionante, dito na voz mansa de João. Cria-se a expectativa de um embate tremendo entre o menino de corpo fechado por todos estes protetores e uma força ainda desconhecida.

O padrão do violão a seguir é ainda uma variante do acorde inicial, porém carregado nos graves e com um indisfarçável tempero funk. Nele o fio narrativo é retomado anunciando a batalha iminente. A partir daí o menino é tratado pelo nome de mártires da liberdade, como destaquei na primeira parte. Seus assassinos não chegam sequer a ser nomeados. São as falanges do mal / arcanjos velhos, coveiros do carnaval. A escolha de uma categoria angélica para os designar, enquanto os exus, vistos pelas religiões européias como demoníacos, são defensores do menino, é sintomática de uma hipocrisia secular, um massacre antigo que é cultural e também literal.

A narração da morte do menino é feita em alta velocidade. O menino morreu, ninguém chora por ele. O verso seguinte, último da canção, já trata da aposta do jogo do bicho no dia seguinte, e serve de gancho para a última canção seguinte. Mas antes, João faz, com diversas adaptações rítmicas e melódicas, um vocalise muito semelhante ao da introdução da gravação de estúdio de Genesis. E faz um breque no violão, como já fizera nO ronco da cuíca, para preparar a entrada das Escadas da Penha, agora, finalmente, no samba rasgado.

Esta é uma história diferente. À primeira vista, não faz sentido colocá-la no epílogo desta canção quatro-feita-uma. Num comentário ao primeiro post, foi dito que De frente pro crime, outra parceria Bosco / Blanc, seria muito mais direta, e concordo. Mas é justamente por falar de outro crime, outra história, que esta se torna mais cruel. Pois o menino já foi esquecido. Escadas da Penha poderia ser a notícia do jornal do dia seguinte, sobre um crime passional, em vez do assassinato do menino pela polícia. Ela encerra a epopeia com como que um expurgar de tensão no samba desabalado na mão rapidíssima de João Bosco. E, assim como o Ronco da cuíca descrevia o universo simbólico em que o menino cresce, Escadas da Penha descreve aquele em que ele morre. Como uma câmera que vai se distanciando aos poucos enquanto o entorno vai sendo enquadrado e lentamente perdendo o foco.

João se converte nesta tetralogia em bardo da Idade Média, em que cantar e declamar uma história não eram coisas muito diferentes. Mas a tradição que segue também – ou principalmente – é africana, dos narradores das tradições orais. A narrativa tem em si um poder mágico – dizer é fazer. João é o narrador de uma história que sempre se repete desde tempos imemoriais, com a intervenção de seres sem tempo. Como se a história tivesse acontecido antes dos tempos, e se repetisse hoje um simulacro encantado – o menino morreu e continua interminavelmente, perpetuamente a morrer, como Prometeu acorrentado, como Ganga Zumba, Patrice Lumumba, Federico Garcia Lorca, Jesus, e sempre renasce novamente.

A saga do menino do corpo fechado – Parte 1

Em 1983, no álbum 100ª Apresentação, apenas com voz e violão, João Bosco lançou mão de quatro de suas parcerias com Aldir Blanc e cantou-as como uma só, formando um pout-pourri, e transformando-as em algo bem maior que a soma das partes, que por sinal já eram grandes canções. A sequência de Genesis, Ronco da cuíca, Tiro de misericórdia e Escadas da Penha passa de quatro retratos isolados de uma realidade à saga particular de uma pessoa, retratada do nascimento à morte, e que se torna emblemática desta realidade ao narrá-la em detalhes com uma incrível expressividade, alçando-a a níveis épicos.

Quero dividir este artigo em duas partes. Na primeira, tratando canção a canção, singularmente, em suas versões primeiras feitas em estúdio, cada uma das partes deste conjunto, e na segunda abordando o conjunto em si, ainda maior que a soma delas. Eis a primeira:

Genesis (parto) – do álbum Tiro de misericórdia, de 1977

A gravação de Genesis em estúdio tem caráter festivo, bem diferente da que terá no álbum 100ª Apresentação. A harmonia em tom maior e a melodia correspondente seguem clichês tradicionais de samba, indo ao quarto e depois ao quinto grau. Há pelo menos duas referências bíblicas, além do próprio título: à formação do presépio, aqui formado por uma vaca e um burro, e acrescido de um louco que incorpora Seu Sete, referência possível ao Caboclo das Sete Encruzilhadas, espírito fundador da Umbanda, ou mais provavelmente ao Exu do mesmo nome.

A outra citação bíblica também diz respeito ao nascimento de Jesus, com a substituição: barro ao invés de incenso e mirra. O nascimento de um menino é narrado com elementos que evidenciam de formas diversas sua importância: chovia torrencialmente, como se a natureza assinalasse com sua fúria o nascimento de um filho seu, vindo do barro. Além do Seu Sete, dois personagens interferem diretamente na ação: Exu toma para si os acontecimentos e adota a criança ao falar: Ninguém se mete! E Oxum assume ares proféticos ao vaticinar: Este promete. A profecia neste momento se mostra otimista. Assiste-se o nascer de uma força da natureza apadrinhada por ela própria e seus representantes míticos.

O cruzamento entre o catolicismo tradicional e religiões afro-brasileiras é uma das bases da construção não apenas desta canção, mas praticamente de todo o pout-pourri. Nesta, o instrumental da introdução (que se repetirá entre as estrofes e ao final) em ritmo ternário com atabaques e um canto silábico típico da sintaxe de João Bosco, entre um ponto em Yorubá e a simples vocalização rítmica (algo a ser desenvolvido adiante), faz o contraponto com o samba rasgado que o sucede. Ao fim, os dois se sobrepõem, numa espécie de confraternização pelo nascimento.

Ronco da cuíca – do álbum Galos de briga, de 1974

No próprio vídeo acima, um usuário dá a informação:

A primeira gravação desta música foi feita pela cantora Simone, em 1975. Deveria ter entrado no álbum “Gotas d’água”, mas a censura do regime militar vetou. Depois, “O ronco da cuíca” foi liberada e o próprio João Bosco fez este seu registro, ao mesmo tempo em que a gravação da Simone saiu em compacto.

O ronco da cuíca, na gravação de estúdio de João Bosco, se inicia de forma análoga a Genesis: com uma batucada de fundo que cresce em fade in, (efeito algo raro, sendo muito mais comum o fade out no final), que será substituída pelo arranjo que acompanhará a canção propriamente dita. Nos dois casos, trata-se como que de uma batucada primordial, antecedente no tempo. No caso de Genesis, como um som que viesse de tempos imemoriais, o que sugeriria que a história do menino que nasce abençoado pelos orixás se perderia no tempo, ou que repetiria uma história muito antiga (impressão reforçada pelas citações bíblicas). Neste caso, não se trata de um batuque de candomblé, mas de samba já numa formação, digamos, urbana. Aqui a impressão desloca-se um pouco, mas mantém a noção de se perder no tempo. A fome é imemorial, uma história que se repete desde sempre. A cuíca sempre roncou.

O tom dO ronco da cuíca é menor, o que ajuda a tirar do sambão que ela é o caráter comemorativo que não lhe cabe. Construída sobre quatro notas apenas e um único acorde, tem uma letra também com pouquíssimos elementos, de modo a explicitar seu caráter primal. As diferentes combinações entre poucas palavras – fome, raiva, interromper, os home – provoca o desenvolvimento de uma ideia que vai na direção da revolta – a raiva é a fome de interromper, de forma quase construtivista, que chega a me lembrar o método de alfabetização revolucionário de Paulo Freire. A cuíca vai assumindo diferentes significações da primeira estrofe, em que a celebração simbolizada por ela é proibida, o que ocasiona o espocar da revolta, passando pela identificação semântica com o ronco do estômago faminto, até tornar-se um sucedâneo do grito de uma multidão na última estrofe, onde a mesma frase ascendente do verso é coisa dos home vai sendo repetida subindo de tom em tom, como numa exaltação gradativa até o grito de guerra: vai ter que roncar!

Tiro de Misericórdia – do álbum do mesmo nome, de 1977

Tiro de misericórdia se inicia com um acorde menor dedilhado que implica em certa tensão desde o início, dando suporte a uma melodia construída a partir das mesmas quatro notas dO ronco da cuíca. As primeiras estrofes da longa letra narram a infância do menino, pintando em cores fortes o cenário de sua vida. Quase sem transição, ele é retratado como um pequeno deus, um imperador, e é dada e informação de seu corpo fechado. O contraste entre as ideias de um menino invulnerável com enorme poder, um deus criança, abençoado pelos sacerdotes que fazem a mediação com o sagrado, mas ainda assim apenas uma criança, é o mote que vai conduzir a canção.

A segunda parte irrompe bruscamente por sobre a primeira, com uma invocação recitada (outro ponto a ser explorado adiante) de todo o panteão dos Orixás, uma conclamação de guerra que tem um poder mágico, como a feita por um babalorixá (o Babalaô é especificamente o responsável pelo Ifá, o oráculo dos búzios), ao fazer a descrição de cada um deles desfilando suas particularidades, seu poder, um pedido de proteção que dialoga com tradições profundas da África Negra, mas que traz também para dentro da narrativa a intervenção dos Orixás da mesma forma que Homero os faz interferir na Guerra de Tróia, na Ilíada.

A seguir, o confronto. É quando a realidade avassaladora se mostra infinitamente mais forte que todas as tradições e forças naturais e sobrenaturais. O sacrifício é sublinhado por uma sequência de citações bíblicas que fazem paralelo com o Calvário, a partir da nomeação do local do assassinato como o Horto maldito, até a identificação entre ambos, menino e Jesus, passando por ao menos outros três personagens históricos assassinados, em épocas diversas, em suas lutas libertárias bem diferentes, e no entanto identificáveis entre si:

– Irmãos, irmãs, irmãozinhos,
por que me abandonaram? (Jesus diz na cruz: Pai, porque me abandonaste?)
Por que nos abandonamos
em cada cruz?

– Irmãos, irmãs, irmãozinhos,
nem tudo está consumado. (as últimas palavras de Jesus: Está consumado)
A minha morte é só uma:
Ganga, Lumumba, Lorca, Jesus…

Os versos finais tratam apenas da realidade nua e crua. Não há mais nada de mítico, o menino morreu, e com ele tudo morre, ainda que para ressuscitar mais adiante. A frase melódica inicial retorna repetida obsessivamente até o fim, brutal, em andamento acelerado: vida que segue. O eu lírico da canção se desloca para um personagem neutro, que vai usar a história do menino para jogar no bicho, tirando da tragédia algum tipo de proveito pessoal. A violência dá lugar à impessoalidade e a anestesia que permitem que ela se perpetue. João / Aldir realizam a proeza paradoxal da grande criação artística, ao criarem uma nova tradição oral, ao seguirem seus cânones na composição de uma narrativa inédita.

Escadas da Penha (por dentro do crime), do álbum Caça à raposa, de 1975

Finalmente, Escadas da Penha. Uma narrativa cinematográfica, novamente em tom menor, de plano e contraplano: uma história simples, a tragédia passional do homem que descobre sua nega amante do amigo, é desdobrada em pontos de vista alternados. A primeira estrofe é centrada na figura do traído: ao descobrir a traição, se desespera, vai em busca da mulher, a mata e vai em busca do ex-amigo. Depois, a visão é invertida, a narrativa vaga permite mais de uma interpretação: o amigo de ala citado aqui é o traidor ou o traído, do ponto de vista inverso? O amigo de ala mata por sua vez o amigo que foi tentar matá-lo? Assim como no início, restam o desespero e o remorso.

Porém, ainda mais importante que o desvendar do enredo é a construção sintática da narrativa, com elementos construtivistas, assim como O ronco da cuíca. O simples deslocamento dos verbos de cada verso para o verso seguinte, ao cantar a estrofe de trás para a frente, faz com que o significado dos versos mude radicalmente. O enredo sobe e em seguida desce as escadas da Igreja da Penha, retornando ao ponto inicial. E há o interlúdio da estrofe intermediária, que muda repentinamente o andamento. Surge um batuque ternário análogo ao jongo da introdução de Genesis, e sobre ele são despejados em sucessão hipnótica elementos que são o cenário cotidiano dos personagens da história, que giram na cabeça do(s) assassino(s), que são as evidências de um inquérito, que induzem ao transe e à, na linguagem policial, privação de sentidos… Uma melodia quase reta quase sem pausas que escorrega sobre uma sucessão de acordes de dominante descendentes, sem chão.

O subtítulo de Escadas da Penha cita outra canção de João / Aldir, De frente pro crime, como uma espécie de desenvolvimento investigativo… de que? Não simplesmente de um crime ou do crime em geral, mas de uma estrutura que é psicológica, cultural, civilizatória, um universo que é descrito primorosamente no interlúdio de Escadas da Penha e em inúmeras outras canções da dupla. Cada uma destas quatro explora também este universo sob aspectos ligeiramente ou muito diversos. A junção delas para contar uma história determinada, que sintetiza e ultrapassa as explorações particulares, é o tema do próximo post, que completará este. Até já.

Sinhá, sinhazinha

Há algum tempo, fui a uma festa de casamento de amigos de posição social bem superior à minha. Festa para cerca de 700 convidados, com talheres de prata e uma costureira de plantão no banheiro feminino para socorrer vestidos avariados. Com tanto Möet & Chandon que a empresa que produz a champanhe, feliz com a compra, retribuiu aos noivos garantindo sua noite de núpcias num hotel de luxo, na mesma suíte que abrigou o presidente Obama em sua passagem pelo Rio de Janeiro.

Uma grande, bonita e merecida festa, para um casal de excelentes pessoas que nunca fizeram do dinheiro que têm barreira no relacionamento com quem quer que seja, que são voluntários de ações sociais, com os pés no chão de quem nunca viu problema em ir fazer as compras da família em supermercados populares, e também capazes das pequenas ações, como tomar para si a tarefa de lavar a louça da janta para que a empregada que mora longe não chegue tarde em casa.

O traje masculino era, obviamente, terno e gravata, o que me levou, desavisado na minha informalidade congênita, a ser praticamente o único em mangas de camisa. Se chamei a atenção pela minha tremenda gafe, não sei, pois todos foram elegantes o suficiente para não me olharem torto. Mas o que me chamou a atenção foi o fato de ter demorado muito, no meio de tanta gente, a encontrar um convidado negro, ou mulato que fosse. Não que não houvesse, apenas eram raríssimos. Com exceção, é claro, dos garçons, seguranças e demais empregados do bufê, por sinal prestativos e eficientes.

Até aí, nada de muito diferente de qualquer casamento da classe alta num país muito desigual como o nosso, incluindo aí a consciência social dos noivos, que nossos ricos não são necessariamente vilões de novela. Mas após este intróito de crônica social, voltamos ao tema deste blog. Na festa, apresentou-se uma banda sintomaticamente chamada Kizomba, formada por músicos brancos, negros, mulatos. O vocalista era negro, com ótimo traquejo de palco e boa voz. No repertório, que passava por vários tipos de música dançante, duas coisas merecem registro: quase no fim da apresentação, a noiva segurou o vocalista pelos braços e bradou para ele, entusiasmada: toca funk, toca funk! (não, ela não estava bêbada nem desvairada), atendida prontamente pela banda. E pouco depois disso, ao retomar o repertório, tocaram esta música, que o público dançou animadamente:

Olhos Coloridos – de Macau, com Sandra de Sá (do segundo álbum, de 1982)

Não havia sombra de ironia na voz ou nas feições do cantor, nem na platéia majoritariamente branca, que se esbaldava. Isso porque não havia ali sombra de racismo, assim como individualmente os noivos nem de longe são pessoas preconceituosas. E no entanto, entre as 700 pessoas que escolheram entre as mais queridas para celebrarem com eles o momento mais feliz de suas vias, quase nenhum era negro ou mulato. O racismo não é deles, mas molda seu círculo de relações independente de suas vontades, simplesmente seu meio social não tem negros, por razões alheias a eles. Neste contexto, ouvir o cantor da banda Kizomba repetir para uma platéia eufórica os versos A verdade é que você / tem sangue crioulo / tem cabelo duro / sarará crioulo soava estranho. Estranhamente verdadeiro.

Tudo isso me vem à mente relacionado com o artigo MPB e violência, de Francisco Bosco, onde ele parte da agressão cometida pelo ator global Marcelo Faria contra um segurança da casa de shows onde acontecia uma apresentação do cantor Rogê. Impedido de acessar a área Vip, para a qual não tinha ingresso, o ator deu uma garrafada na cabeça do segurança. Processado, conseguiu um acordo que encerrou o assunto na justiça. O segurança declarou que não tinha dinheiro para manter um processo longo e precisava trabalhar. Francisco Bosco parte daí para tratar do enorme contraste brasileiro de uma conciliação de raças e classes na cultura, lado a lado com uma brutal separação entre elas na realidade, no mesmo lugar, na mesma festa. Recomendo vivamente a leitura do texto no link acima.

E no fim do texto, Francisco Bosco refere-se à última canção do último álbum de Chico Buarque, parceria com João Bosco:

Sinhá – com Chico Buarque e João Bosco

Que por sua vez me levou a fazer associação com esta outra canção de Chico, do álbum do filme Para viver um grande amor:

Sinhazinha (Despertar) – Chico Buarque, com Zezé Motta

Nestas duas canções (Sinhazinha tem também uma segunda parte, com o subtítulo Despedida, que é cantada por Olivia Byngton e não será tratada aqui), Chico aborda esta dicotomia tremenda de que fala Francisco Bosco por duas vias que, na verdade, são a mesma, a histórica. Sinhá traz o confuso discurso do oprimido cheio de subentendidos, como a castração e a cristianização forçadas, uma usada como álibi para a outra. Canção que, por sua vez, me lembrou outro vídeo:

A reportagem – se é que merece este nome – do telejornal Brasil Urgente da Bahia, da Rede Bandeirantes de Televisão, em que a jornalista Mirella Cunha humilha um suspeito de estupro que, sem conhecer termos técnicos e tentando se inocentar, confunde exame de corpo de delito com exame de próstata, é uma atualização quase ponto por ponto da situação de Sinhá, em que o escravo nega ter espiado o banho da dona no rio. Em ambos os casos, todos sabem que não importa a culpa, o castigo virá. Apenas ocorre a substituição do álibi religioso pelo científico, apelando-se para um exame médico que nem se sabe bem o que é, assim como o escravo fala iorubá mas ora para Jesus.

Se em Sinhá a atualização do drama do apartheid social se dá por associação, já em Sinhazinha, ela é direta, automática. Cantada por Zezé Mota, que no filme faz o papel de doméstica, já foi pensada no contexto da intérprete e do filme, uma mucama moderna – Chico nunca a cantou. A sinhazinha em questão, uma moça rica da zona sul carioca, estetiza a democracia racial e o consenso social como um mundo à parte, e ao fazer isso deixa o rei nu, explicita o abismo entre intenção e realidade. Tudo na vida da sinhazinha é inócuo, estéril, pueril, embora devesse ser profundo, tudo é objeto de desejo como o banho da sinhá na outra canção (um homem lá, uma mulher aqui como escravos).

Ambas as canções são sobre a não realização do desejo, sobre a interdição sexual/de consumo, a barração na porta do mundo civilizado. Assim como o escravo não pode olhar a sinhá nua, a mucama apenas assiste ao acesso da dona àquilo que lhe é vedado, como grande parte da população assiste na TV a propagandas de coisas que não pode ter. Assim como o segurança do show do Rogê não assistia ao show, mas sim à platéia assistindo ao show, enquanto o trabalho musical de Rogê, como lembrou Francisco Bosco, se alimenta em grande parte de elementos oriundos da cultura oprimida, da qual o segurança – negro, naturalmente – tornou-se o incômodo representante, como empregado castrador da área Vip, para uma platéia simbolicamente de classe média da zona sul. Sem entrar no mérito da qualidade artística de Rogê, que não está em pauta (assim como a eficácia da homeopatia não é questionada na canção), Zezé Motta poderia cantar em Sinhazinha os versos: tem também show do Rogê.

E particularmente um outro verso de Sinhazinha é mais cruel que todos: é quando Zézé canta que tem búzios pra jogar. É a apropriação / absorção da cultura do oprimido pela do opressor, descaracterizada ao ser misturada quase aleatoriamente com outros universos culturais (homeopata, ioga…), como os gabinetes de curiosidades europeus misturavam objetos sagrados de culturas diversas, expoliados, descontextualizados e descaracterizados. Apropriação que se dá no sentido inverso da cristianização forçada de Sinhá, mas como que complementar a ela.

Apesar da atualização de Sinhazinha, há um óbvio viés histórico em ambas. É o meio pelo qual Chico, cultivador da canção tradicional, se permite trazer para a primeira pessoa o discurso do oprimido sem cair no populismo. Há aqui uma difícil discussão sobre representatividade social na obra de arte, em que corro o risco de cair numa leitura marxista engessada e merece desenvolvimento em outro artigo. Mas é evidente que Chico se sente desconfortável em assumir diretamente e por procuração a posição de negro, pobre, ex-escravo. Se na Ode aos ratos, como já assinalei em outro texto, ele recorre ao repente para chegar ao rap e assim aproximar-se da forma musical usada como protesto pelos que sofrem os efeitos da desigualdade, aqui ele recorre a um estratagema menos radical, permanecendo mais claramente ainda no terreno estético em que forjou seu estilo: a pós-bossa nova carregada da pesquisa de ritmos e manifestações brasileiras. Tanto Sinhá quanto Sinhazinha guardam em suas divisões similarmente sincopadas sobre violões – o de Sinhazinha muito estilizado, o de João Bosco em Sinhá mais balançado – a rítmica que serve de ponte para a temática e para a abordagem. Sem condições de cantar no estilo dos oprimidos de hoje, Chico canta no dos oprimidos de outrora, identificando-os com os atuais, o que acaba se tornando um trunfo, ao carregar seu discurso de profundidade histórica, mas não o tira do lugar de identificado de algum modo com a cultura opressora.

E é justamente esta situação dúbia e tensa que explode na surpreendente última estrofe de Sinhá, em que Chico abandona a primeira pessoa histórica do escravo para, sem transição, assumir um tom confessional que acompanha a modulação do tom da canção:

E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá

É quando a máscara do consenso social e da democracia racial correspondentes a uma música popular (MPB) hegemônica ou unificada caem e ao mesmo tempo se reconfiguram. O drama do enredo da canção resolve-se: o escravo não apenas olhou sinhá, mas tomou posse daquilo que lhe foi e continua sendo negado sistematicamente, o prazer. E Chico, recusando-se aceitar o lugar de representante da classe das sinhazinhas que compram disco novo pra rodar, e também a de Mano Brown e sua postura combativa oposta. Aqui, em vez de consenso, o que há é o convívio atormentado de dois mundos inconciliados em um só corpo, em uma só arte. Não uma celebração, mas a constatação desta dualidade: o escravo negro e o senhor de olhos claros estão em Chico, são Chico, representante simbólico da MPB que por sua vez é representante simbólica do Brasil, forjados a ferro, fogo e sangue sobre uma divisão brutal e secular, mas também em uma fusão igualmente brutal e tabu, em que todos são sarará, todos tem sangue crioulo e também sangue do sinhô, todo um país é, a um só tempo e há muito tempo, oprimido e opressor, herdeiro de uma relação de ódio e amor, desejo e castração, medo e fascínio mútuos e um difícil autorreconhecimento. Chico, corajosamente, traz para si a responsabilidade, para suas costas a carga desta herança renegada, desta prole bastarda, e, na impossibilidade de, por si, mudar a realidade ainda tão cruel, faz dela aquilo que melhor sabe fazer, aquilo que o fez: torna-a canção.

MPB e violência, por Francisco Bosco

Em sua coluna desta semana no jornal O Globo, o compositor e ensaísta, entre outras coisas, Francisco Bosco levou avante de um modo surpreendente para mim a discussão sobre a MPB cujo último lance foi o debate entre Rômulo Fróes e Walter Garcia, de que tratei aqui no blog (e particularmente a confrontação entre as canções Ode aos Ratos, de Chico Buarque e Edu Lobo, e Tô ouvindo alguém me chamar, dos Racionais MCs). Francisco toca num ponto sensível e basilar, o suposto consenso de classes promovido pelo modelo de MPB forjado nos anos 1960 e que agora vai se desvanecendo, para alguns, ou reconfigurando, para outros, mas que, de qualquer forma, precisa ter sua real amplitude avaliada e entendida como parte de um contexto que vai muito além do musical. Eis aí.

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Conforme noticiado pela imprensa, há duas semanas o ator Marcelo Faria agrediu com uma garrafada na testa o segurança de uma casa de shows no Rio de Janeiro porque foi impedido de entrar na área reservada às pessoas que compraram ingressos de mesa, segundo nota oficial emitida pela casa de espetáculos. Uma testemunha depôs a favor do segurança, responsabilizando o ator pela agressão, dizendo ter visto o ator provocar, ofender e finalmente tentar invadir o espaço guardado pelo segurança, que permaneceu tranquilo e no estrito cumprimento de seu dever até ser abalroado pelo agressor. A agressão ocorreu durante o show de um compositor jovem, da Zona Sul do Rio (nota do Túlio: era o cantor Rogê), que teve participação de sambistas como Arlindo Cruz e Wilson das Neves. Pois bem, a tal testemunha sou eu mas não quero tratar aqui do que esse caso tem de particular (o que agora será feito pela Justiça), mas sim do que tem de geral. Ele permite compreender em boa parte por que se fala de uma crise da música popular brasileira e mesmo de um suposto fim da canção.

A canção popular brasileira se consolida nos anos 1930, com a geração de Noel Rosa, Dorival Caymmi, Ary Barroso, entre outros. É o momento em que o samba passa de atividade de vagabundos para símbolo da cultura nacional. É o momento em que Gilberto Freyre publica o clássico Casa-grande & senzala, que mudou inteiramente a interpretação da formação do país. O samba é, tanto da perspectiva formal quanto da social, o resultado de mestiçagens. Formalmente, combina a rítmica de origem africana, baseada na síncope (ou na contrametricidade, para evitarmos o etnocentrismo do termo síncope), à tradição melódica e harmônica da música europeia. Socialmente, foi se formando e consolidando por meio dos encontros entre sujeitos da classe média e das favelas;brancos,mulatos e pretos; intelectuais e iletrados. Noel Rosa é o maior representante inicial dessa mestiçagem formal e social. O poeta da Vila, ex-estudante do colégio São Bento, trocou a faculdade de Medicina pela companhia dos pretos do Estácio e fundiu a rítmica e o tema da malandragem a letras de alta intensidade poética, à altura do modernismo então em voga nas artes.

Décadas mais tarde, o que se chamaria de MPB é uma radicalização dessas mestiçagens. A bossa nova tomaria a tradição do samba como base para a modernização da canção brasileira.A geração dosanos 1960 foi feita de universitários, na maioria brancos (ou brancos simbólicos), que aprofundavam relações a um tempo com o Brasil popular e com o que havia de mais contemporâneo no mundo. O que se chama de MPB é portanto essa música que se tornou símbolo da cultura brasileira e que simboliza justamente uma ideia ou ideologia de conciliação entre as classes e raças.Quando se fala no fim da canção, é também e talvez principalmente a crença nessa ideologia que está em jogo. Por quê?

Voltemos ao show e à agressão do ator. Como eu disse, o show era de um cantor de classe média, branco simbólico, da Zona Sul. O público tinha majoritariamente as mesmas características (eu inclusive). O que acontecia no palco era a celebração, musical e social, da conciliação de classes e raças. Mas o que aconteceu na plateia era o desmentido ou ao menos a brutal relativização desse acontecimento. Pois a agressão não foi um caso isolado. Não foi nem mesmo uma briga de homem contra homem, e sim de rico contra pobre, famoso contra anônimo, privilegiado contra desfavorecido. Não acredito que o agressor tivesse a coragem de fazer o mesmo na Zona Norte, em um contexto onde não se sentisse protegido pelos membros da própria classe. Com efeito, ninguém mais testemunhou contra o ator, embora dezenas de pessoas tenham visto a agressão.

Pois bem, para que aquele acontecimento musical pudesse ter valor de verdade social, a agressão deveria ter sofrido um repúdio total e imediato. Isso mostraria ser autêntica a via civilizatória de uma conquista da civilidade e da igualdade por meios graduais e sem traumas. Tal como se deu, o acontecimento desmentiu a promessa da MPB. Eis o resumo da relação da MPB com a realidade social brasileira:umaparte destaa confirma, mas outra a desmente. É precisamente no intervalo entre a promessa formal e os desmentidos reais que surge a canção poderosa e anticordial dos Racionais.

E é também por isso que, na última canção de seu último disco, Chico Buarque abandona a sua característica terceira pessoa para assumir o lugar do herdeiro sarará/ de um feroz senhor de engenho. Como se já não fosse legítimo ocupar o lugar do outro.

Sinhá – Chico Buarque e João Bosco

Discoteca Brasílica – Nação

Nação, a canção de abertura do álbum de João Bosco Comissão de Frente, de 1982, e também do último álbum de Clara Nunes, no mesmo ano, a quem deu o nome, é uma transubstanciação da Aquarela do Brasil.

transubstanciação: [Do lat. med. transubstantiatione.]
Substantivo feminino.
1. Mudança duma substância em outra.
2. Rel. Palavra adotada na Igreja Católica, sobretudo a partir da filosofia escolástica, para explicar a presença real de Jesus Cristo no sacramento da Eucaristia pela mudança da substância do pão e do vinho na de seu corpo e de seu sangue.

Da Aquarela do Brasil – e da gravação de João Gilberto com Caetano Veloso e Gilberto Gil – falo aqui. De Nação, o historiador José Maurício de Carvalho afirma ser totalmente hermética. José Maurício pesquisou e comparou canções de diversas épocas que focavam o Brasil como tema em seu artigo O Brasil, de Noel a Gabriel. Já a pesquisadora Astréia Soares afirma que Nação se reapropria dos elementos enfileirados na Aquarela – e que de resto são elementos anteriormente constituintes de uma imagem de país. Só que – e aí sou eu que afirmo – Nação coloca estes elementos no liquidificador e os regurgita transfigurados. Assim, o arco-íris de Nação faz paralelo à imagem de uma aquarela; as fontes murmurantes de Ari Barroso agora são labarágua, Sete Quedas em chamas; além da óbvia citação do Hino Nacional com a expressão berço esplêndido.

Mas há outros paralelos a serem feitos, e não só com a Aquarela. Nação é construída sobre uma base imagética de mitologia do Candomblé. A nação Jeje, uma das três correntes preponderantes no candomblé, provinda principalmente dos escravos trazidos da região do Daomé (hoje Benin), é identificada com todo o povo brasileiro. Interessante notar que a palavra Jeje vem do yorubá adjeje que significa estrangeiro, forasteiro. O próprio título da música então já é uma referência múltipla e mesmo contraditória a princípio, ao colocar um povo estrangeiro como protagonista de uma canção que faz referência a inúmeros símbolos nacionais.

A pesquisadora Silvia Maria Jardim Brügger, em um excelente estudo sobre Clara Nunes (aqui), encontra na referência a Oxumaré, o orixá do arco-íris, a chave para desvendar a canção. Ela afirma:

O Brasil-Oxumaré é uma nação da diversidade de cores, mas também da mestiçagem – o que não é uma novidade, pois o tema já se fazia presente em músicas desde a década de 1940, – do movimento, da superação, da dualidade, da fertilidade, da riqueza. O verde e amarelo da bandeira brasileira são as cores de Oxumaré, que é homem, durante metade do ano, e mulher na outra metade. Mas ele não sintetiza os dois sexos. Pelo contrário, os une em sua diferença; assim como ocorre ao arco-íris, que apresenta misturas ou zonas de intercessão entre suas cores, mas não as anula em suas especificidades: as sete cores estão nele presentes.

Fiel a este espírito de mestiçagem, a letra traça também paralelos entre mitologias: assim, Jeje e suas asas de pomba, presas nas costas com mel e dendê, remetem a Ícaro, e o uirapuru que das cinzas chama remete à Fênix. Outra referência dupla é a Caramuru – que, por matar um pássaro com uma arma de fogo, passou a ser respeitado pelos índios que o capturaram e escapou da morte – e Anhanguera – que pôs fogo numa tijela com aguardente para mostrar aos índios que tinha o poder de incendiar a água. Caramuru e Anhanguera, ambos estrangeiros que foram aceitos pelos indígenas conquistando seu respeito ou seu temor, numa relação que é de aceitação e também enfrentamento. Todos estes mitos, sucedendo-se misturados na letra, vão criando menos um significado explícito e sim algo mais próximo de uma sensação; as inúmeras referências religiosas são acompanhadas de um modo de tratar o tema que, não linear, vai criando uma atmosfera sem se preocupar em contar uma história – e no entanto a conta, mas sem que esta seja traduzível em enredo.

A criação desta atmosfera se dá também pela construção da harmonia e dos arranjos, usando clichês harmônicos idênticos aos que servem de base à Aquarela, em especial acordes de quinta aumentada, mas também acordes menores com sétima maior, conseguindo com isto passagens suaves, de semitom a semitom, de um acorde para outro. A razão de ser disto é que Nação é ao mesmo tempo um sambão e uma cantiga suave – como o João fez com a Aquarela, mas agora o processo vem desde a composição. Os acordes de Ouro cobre o espelho esmeralda seguem os de Ô, abre a cortina do passado. A orquestração suave sobre uma batucada típica de escola de samba também dialoga com a da gravação da Aquarela, seguindo os mesmos padrões, como que reforçando a identidade entre elas.

Em seu estudo, Silvia Maria lembra também que Nanã, mãe de Oxumaré, é simbolizada pela lama, que teria dado a Oxalá para que este criasse o homem. Novamente, a simbologia do (re)nascimento surge, agora para fechar o caleidoscópio de personificações: Jeje é a bananeira, é o arco-íris, é Ícaro, é o uirapuru. As imagens não se sucedem, na verdade se amalgamam. Jeje, o estrangeiro, se naturaliza, se transubstancializa de nação religiosa a nação no sentido mais amplo, de povo e país.

Nação se inicia e se encerra com a invocação de Silas de Oliveira, autor de outra Aquarela, a Brasileira, e de Dorival. Com o Rio desaguando na Bahia, traça um roteiro sintético que a canção percorre nos dois sentidos: da brasilidade algo estereotipada (mas já revista por João Gilberto) da Aquarela para a simbologia do candomblé, e desta (e da Bahia de Caymmi) novamente para uma visão de brasilidade, agora muito mais complexa – desaguando no mar mas também remontando às origens. Nação conta, à sua maneira elíptica, hermética, o processo mesmo de formação de uma nação. Algo que é dissecado por historiadores ao longo de volumes e mais volumes, e que só pode ser sintetizado a contento num formato não racional, antieuclideano, mítico, místico (adjetivo: misterioso; que encerra razão oculta ou significado alegórico): numa canção.

Uma do Bôscoli

A capa do Segundo Caderno do Globo, semana passada, foi sobre o lançamento do livro A Bossa do Lobo – Ronaldo Bôscoli, de Denilson Monteiro. O livro trata, naturalmente, muito da personalidade provocadora e maledicente dele, mas também – e não podia deixar de ser – das enormes contribuições dele como compositor – com Carlos Lyra, entre outros – e produtor – ao lado de Luiz Carlos Miele, aliás um personagem à altura dele. Mas o que quero destacar aqui é uma pequena historia em particular que a reportagem do Luiz Fernando Vianna conta, que me espantou por ser tão decisiva no desenvolvimento da música brasileira. Transcrevo o trecho da matéria:

O outro aspecto é o do produtor com grande conhecimento do que fazia. Miele conta que estava presente no dia em que Bôscoli disse a Elis Regina que ela estava ensinando o Brasil a cantar errado, pois músicas como “Upa, neguinho”, “Menino das laranjas” e “Reza” eram tristes, não podiam ser interpretadas com a alegria que Elis esbanjava.

— Elis jogou uns vasos em cima dele, como de costume, disse que ele era um imbecil, mas no dia seguinte me ligou e falou: “Você sabe que o desgraçado está certo?”. Naquele dia, ela começou a se transformar na maior intérprete da música brasileira. Ronaldo precisa ter esse papel também reconhecido — diz Miele.

E basta isso para se ter noção da importância desta consciência que a Elis tomou em relação à interpretação, uma mudança de postura que influenciou decisivamente quase todo intérprete que surgiu nas décadas seguintes. Há cantores que cantam o prazer de cantar ou a beleza da canção, seja qual for ela, e outros que cantam a própria canção. Alguns parecem ter sempre o mesmo subtexto para tudo que escolhem cantar: veja como é bonita esta canção! Outros partem do princípio de que conseguirão chamar a atenção do ouvinte para esta beleza assumindo o texto (não apenas da letra, mas também musical) da canção para si, e desta forma, o realce da beleza da canção continua se dando, só que um nível abaixo na compreensão. A frase veja como é bonita esta canção! continua a soar, mas não de maneira imediata, e sim subliminar, digamos assim.

Esta discussão semiótica pode parecer um tanto irrelevante aos desavisados? Então vejamos na prática – lembrando que são duas canções de feição bem diferente entre si. Como Elis faria uma interpretação triste de Upa, Neguinho? Tenho certeza de que nos surpreenderia. Obrigado ao Bôscoli por lhe ter aberto os olhos.

Upa, neguinho – de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri

Caça à raposa – de João Bosco e Aldir Blanc

E, para que se tenha uma idéia de como Upa, Neguinho pode ficar, a gravação de Caetano Veloso para o álbum Edu Lobo SongBook.

Uma do Aldir

O artigo anterior do blog, de José Miguel Wisnik, sobre os misteriosos meios por que uma canção se torna nossa, de como é possível que uma melodia tem de guardar nela significados que vão além dela mesma e se imiscuem na vida de quem as ouve, multiplicando-os exponencialmente, me lembrou uma história em que isto ocorre numa tal grau que compreende-se o processo, ainda que não racionalmente, mas no mesmo nível em que ele se dá – no centro do que na falta de outro nome chamamos de coração, como Wisnik diz. Quem conta é Aldir Blanc, é eu reconto de memória, de modo que se soma na narrativa os eventuais romanceamentos da repetição na lembrança e o estilo particular, meio rodrigueano, do próprio autor – que a vivenciou realmente.

Conta Aldir que um dia estava num bar zurrapa de um largo da lapa qualquer, quando, na mesa ao lado, começou uma altercação entre dois sujeitos – dois caras bem grandes, sendo um deles um negão com qualquer coisa entre dois e três metros de altura. A desavença foi num crescendo, da discordância passando aos xingamentos e desses às ameaças físicas, e o Aldir na mesa próxima, já muito receoso do momento em que começassem a voar garrafas, mesas e cadeiras, procurando onde poderia se refugiar.

Pois foi então que o inesperado fez uma surpresa: bem no instante em que o Aldir pensou que os dois brutamontes iam partir para as vias de fato, justamente o maior deles, o tal negão, vociferou: “Eu só não vou lhe partir a cara agora mesmo porque está tocando a MINHA música!”

Dito isto, o gigante se recolheu a uma mesa mais afastada, colocou a cabeça entre as mãos e (permitam o estilo) prorrompeu a soluçar como uma criança. Nos pobres auto-falantes do boteco, a voz de Elis Regina interpretava Dois pra lá, dois pra cá, de João Bosco e Aldir Blanc.

Aldir afirma que depois de ter visto isso, deixou de considerar Dois pra lá, dois pra cá como uma música sua – esta e qualquer outra, aliás. Dois pra lá, dois pra cá é daquele negão – e de qualquer um que tenha a capacidade de senti-la tão a fundo. E quem sou eu para discordar?

A Perfeição Equilibrista

Escrevi este artigo para a revista digital Arte Institucional nº5 em janeiro deste ano. Trago-o para cá não apenas para tê-lo arquivado num lugar, digamos, meu, mas para que quem não soube dele na época tenha acesso. Mais adiante trarei os seguintes.

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Passei anos procurando inutilmente a citação de “O Bêbado e a Equilibrista” em “Perfeição”. O encarte do álbum “Descobrimento do Brasil”, da Legião Urbana, é que trazia a informação da citação. Conheço o samba de João Bosco e Aldir Blanc do avesso desde que me conheço por gente, e virei também do avesso a composição de Renato Russo, sem nunca descobrir o menor indício.

Até que um dia, ao ouvir a música da Legião, tive o insigth repentino que valeu por uma epifania: a citação não estava na letra, onde eu a vasculhara em vão, mas na melodia! A linha dos últimos versos de “Perfeição”, os únicos que são cantados e não recitados raivosamente: “Venha, / meu coração está com pressa / quando a esperança está dispersa” retomava, mutatis mutandi, a que embala os versos iniciais da outra: “Caia / A tarde feito um viaduto / e um bêbado trajando luto”.

Sempre me perguntei também o motivo de uma citação com esta. É sabido que Renato sempre gostou de enfiar, às vezes à força, canções dentro da harmonia de outras, especialmente em shows, o que fazia “Ainda é cedo” virar um pout-pourri quase infinito às vezes. Mas outra coisa é colocar a citação na própria estrutura da música, como neste caso. Não se trata de improviso, é caso pensado. Passo a fazer um paralelo entre as duas composições.

Dez anos as separam. “O Bêbado e a Equilibrista” foi gravada primeiro no LP “Linha de passe” de João Bosco em 1979, no formato tradicional para que foi criada, o de samba-enredo. Mas logo depois Elis Regina se apropriou dela, no que o próprio João Bosco classifica como co-autoria, e, com o arranjo sublime do marido César Camargo Mariano, transformou o samba num hino. A canção, com sua referência velada a Herbert de Souza, o Betinho “irmão do Henfil” exilado pela ditadura militar, tornou-se o símbolo da Anistia e da esperança de tempos melhores para o país.

“Perfeição” é de 1989. Quando a primeira música foi lançada, passavam-se 10 anos do auge do movimento punk, com sua palavra de ordem “No future”. Renato e o Aborto Elétrico, seu grupo na época, beberam nesta fonte, numa Brasília de puro desencanto. Em “Perfeição” há ecos claros do punk nas guitarras distorcidas e na ironia avassaladora da letra: “Vamos celebrar a estupidez humana, / a estupidez de todas as nações / O meu país e sua corja de assassinos / covardes, estupradores e ladrões”.

Em 1989, para quem veio de Brasília e conhecia algo do poder, não havia muito o que comemorar. Pouco depois do lançamento do álbum, Fernando Collor de Mello venceu a eleição presidencial. Milton Nascimento, no álbum Yauretê, de 1987, compôs com Fernando Brant a “Carta à República”, espécie de resposta a “Coração de Estudante”, que também se tornara hino, só que da redemocratização: “Sim, é verdade, a vida é mais livre / (…) / mas a mentira voltou. / Ou será mesmo que não nos deixara?” E perguntava: “O que fizeram da nossa fé?” A esperança anunciada por Elis agora era “um sorvete em pleno sol”.

Para onde ir neste cenário? Renato Russo não tinha interesse, apesar de tudo, de passar mensagens de desepero, contra o qual lutava entre crises de depressão e problemas com drogas. “Já tentei muita coisa / de heroína a Jesus”, dissera ele em “L’age d’or”. E compusera uma canção baseada nos princípios budistas, “Quando o sol bater na janela do seu quarto”. Ele sempre tentara rechaçar inutilmente a imagem de líder da juventude, mas grande parte desta liderança provém exatamente das letras que, de certa forma apontam caminhos. E desta vez ele busca o caminho na retomada de uma esperança antiga, que se perdia. Basta confrontar os finais das canções citadas:

“A esperança dança / na corda bamba de sombrinha / e em cada passo dessa linha / pode se machucar. / Azar, / a esperança equilibrista / sabe que o show de todo artista / tem que continuar.”

E Milton Nascimento, na “Carta à República”, parece dar o tom e a deixa para Renato Russo cantar suas críticas terríveis:

“Foi por ter posto a mão no futuro / que no presente preciso ser duro / e eu não posso me acomodar / Quero um país melhor!”

E Renato reune os cacos de um país onde “tudo parece que é ainda construção / e já é ruína” (“Fora de Ordem”, Caetano Veloso), os cacos de esperança da chamada década perdida, e com eles reconstrói improvavelmente a fé no futuro no fim de sua letra demolidora, com a citação melódica que deu início a este artigo assegurando que não há outra saída senão tentar de novo e de novo:

“Venha! / Meu coração está com pressa. / Quando a esperança está dispersa / só a verdade me liberta, / chega de maldade e ilusão. / Venha! / O amor tem sempre a porta aberta / e vem chegando a primavera, / nosso futuro recomeça / Venha que o que vem é Perfeição.”

O Bêbado e a Equilibrista

Carta à República

Perfeição