João de novo e sempre novo

Lá vem ele falar do João de novo. Verdade, e se reclamarem vai ter um blog só para falar de João. A centralidade de João Gilberto na música brasileira não se dissipa facilmente. A forma absurdamente sintética que ele encontrou de conciliar o formato da composição tradicional com as novas tecnologias de gravação e a modernidade brasileira gerou a partir de si tudo o que se convencionou chamar MPB, e se esta hoje se dissipa no ar, esgarçada em seus limites até se tornar indistinta ao absorver outras e outras influências, ainda assim sempre se pode voltar ao João para entender como este processo se iniciou. Mesmo em trabalhos aparentemente díspares das últimas décadas há o DNA de João. Los Hermanos tem João, Metá Metá tem João (aliás, bom assunto para outro texto). Afora isso, nesses tempos em que o Brasil está no redemoinho é que é ainda mais necessário falar de João. Então falemos de João.

Meu descobrimento particular do João se deu ouvindo o álbum Brasil, de 1981, gravado com Caetano Veloso e Gilberto Gil (Bethânia participa da faixa No tabuleiro da baiana). Brasil é um curso avançado de Bossa-nova, de canção e de… Brasil, em que João é o professor, Caetano e Gil os alunos e nós todos também alunos ouvintes. O formato escolhido por João é mesmo muito próximo ao de uma aula. Boa parte das músicas, em especial Aquarela do Brasil, Milagre e Bahia com H, ganham a mesma estrutura: após uma abertura a três vozes uníssonas, os três se alternam repetindo os mesmos trechos, como um professor dando a lição e em seguida os exercícios de fixação. Para os discípulos, uma aula prática única, e para nós uma oportunidade também única de, didaticamente, entender o que João faz com o que escolhe cantar.

E o que ocorre na escuta desta alternância? Ocorre o entendimento de um dos segredos de João, um ensinamento zen: a voz de João pode mais quanto menos se dá importância. Ela se torna o veículo absoluto da canção, desaparece sob a música para que esta surja em todo seu esplendor. Em tempos de vozes exuberantes e programas de calouros repaginados em que a firula e o grito são capazes de desfigurar completamente uma composição, não custa entender porque muitos dos fãs de discípulos confessos de João afirmam não o suportar, com sua cara de escriturário e sua interpretação sem nenhum excesso. Esta é a aula de João, de uma modéstia absoluta: que o intérprete desapareça para que a canção se desvele, e só assim o intérprete estará realmente fazendo o seu trabalho.

E esta lição vem em ondas sucessivas na audição de Brasil. A cada faixa, Caetano e Gil esforçam-se para seguir o preceito do mestre – pouca voz, pouca potência, nenhuma variação ou improvisação melódica (mas sim na divisão rítmica, sempre dialogando intimamente com a batida do violão), apenas a canção em si, com graus diferentes de êxito. Ao ouvir Caetano, Percebe-se que algo sobra ali de sua identidade pessoal. Caetano escolhe ênfases, deixa sua voz personalíssima conduzir a música e não ser conduzida. O resultado é belo, mas não é completamente a canção, é a canção segundo Caetano – o que pode ser interessantíssimo, mas não é a lição, até porque, para que haja a canção segundo Caetano, é preciso antes o entendimento da canção.

Gil vem em seguida, e a diferença com Caetano é nítida. O próprio Caetano não se cansa de destacar a imensa musicalidade de Gil, superior à sua própria. Gil aproxima-se do âmago da canção em sua leitura, deixando a voz branca e sem vibrato ser atravessada por ela.  Pode parecer que esta é a lição aprendida. Mas então é a vez de João. E aí é que a lição acontece. Pois com ele não há nada que não seja significação da canção em si. a relação letra/melodia/harmonia/ritmo em seu estado mais puro. O ouvido tem a impressão de estar ouvindo a canção tornada cristalina, como ela sempre quis soar. Não há interferência de uma outra personalidade, não porque João não tenha personalidade, mas porque ele humildemente se retira. E o seu modo particular de se retirar é sua grande lição, e é quando o ensinamento zen então se completa. Porque quando João se retira, ouve-se somente a canção, e quando ouve-se somente a canção, é aí que mais se ouve João. E ouvindo de novo estas gravações, no momento por que passa o país, me convenço de novo que, mais que nunca, é preciso ouvir João, para lembrarmos quem somos e o que é verdadeiramente o Brasil.

 

Uma do Jards, e sobre o João

Jards Macalé contou em entrevista ao jornalista Leonardo Lichote a seguinte história: Um belo dia João Gilberto telefona para ele e diz: Macalas, vem aqui para eu te mostrar o que é a Bossa-Nova. Claro que Jards não recusa. Vai, João pega o violão e fica cerca de uma hora fazendo a batida clássica em cima de um único acorde Jards espera, espera, e quando percebe que não vai passar disso, sai de fininho, chega em casa, e vai treinar a batida também… Tempos depois, João liga de novo para ele: Macalas, vou te dizer uma coisa: A Bossa-Nova não existe! E desliga. E Jards a partir daí passou a considerar que fez graduação e pós em Bossa-Nova.

Dessa história lembrei de um comentário do pesquisador Fred Coelho de que o Jards foi a pessoa no mundo que melhor entendeu o João. Lembro que na época concordei e me admirei da percepção dele, mas pensei também imediatamente nos Novos Baianos. E cheguei à conclusão de que os Baianos foram quem melhor entendeu o João, mas coletivamente, como um ente coletivo que era maior que a soma das partes. Pela união dos poderes deles, eles eram o Capitão Planeta, e olha que os poderes individuais já não eram poucos.

E tem ao menos duas coisas em comum entre eles e o Jards, fora suas trajetórias meio marginais e independentes. Uma é terem ambos tido aulas particulares como João, como estas acima, e a apresentação do Assis Valente aos Novos Baianos que resultou na gravação de Brasil Pandeiro e no melhor álbum deles. Mas tem uma outra ainda mais importante, que é o que eles fizeram com o aprendizado. E o incrível é que ambos tomaram a mesma direção, que foi fundir o violão do João com nada menos que o outro revolucionário das seis cordas: Jimi Hendrix.

E é aí que eles mostram o quanto entenderam João, tratando de não serem João. A fusão da batida da bossa com a distorção do rock acontece maravilhosamente nos dois, mas os Novos Baianos têm a vantagem do número, então podem dividir as tarefas: Moraes Moreira toma para si o balanço da Bossa, Pepeu Gomes a zoeira da guitarra (às vezes transcrita para bandolim). canal esquerdo, canal direito, sem contar as músicas que começam só ao violão para depois ganharem o peso, didaticamente – no álbum Acabou Chorare são quase metade.

Mas o Jards não tem esta vantagem, é só ele. E é aqui que opera o milagre, pois o cara consegue juntar as duas coisas em si. O violão do Jards, meio Bossa Nova e roquenrrol muito antes do Cazuza, traz em si a bateria de escola de samba e o power trio, com sua sonoridade suja e asfrada, com golpes repentinos de potência seguidos por pianíssimos, incorporando a trastejada à percussão como Hendrix incorporou a microfonia, e sem perder por um instante sequer a noção de que tem que dançar, dançando, como ensinou Jorge Ben (outro que entendeu João de forma única), tudo de uma vez só, forjando seu estilo inconfundível. Tudo ao mesmo tempo agora, esse é o Jards.

(Aí vai de brinde Let’s play that, o álbum que me apresentou ao Jards, as sessões dele com Naná Vasconcelos, que o acompanha lendo pensamento, como fazia costumeiramente.)

 

Os dez mais

Dessas correntes de rede social: Poste seus 10 álbuns favoritos de todos os tempos; que de fato te impactaram e ainda estão na sua lista de audição, mesmo que ocasionalmente. Poste a capa, sem maiores explicações. Postei. Mas quem resiste a dar explicações? O resultado é esta lista bastante pessoal, de dez álbuns que mudaram minha escuta – não necessariamente os melhores nem os que mais escuto, mas aqueles dos quais saí diferente, para o que pode ter contribuído tanto sua qualidade e novidade quanto meu estado à época… De todo modo, continuam para mim extremamente interessantes, em alguns casos depois de décadas, o que quer dizer alguma coisa, e quem sabe servirão também a quem me lê. São eles então:

1- Os Saltimbancos – Chico Buarque. O disco para crianças mais inteligente já feito. Chico (na verdade os autores italianos, mas onde eles dizem mata Chico diz esfola) toma a fábula dos músicos de Bremen, da Floresta Negra alemã, e a põe no cenário da ditadura brasileira, sugerindo mesmo que os militares (o cão) voltem para a caserna (!). Criança, ouvi até furar, decorando as falas e até os pulos da aguulha. Ao longo dos anos, aprendi com ele a fazer segundas e terceiras leituras da obra de arte, desde direitos dos animais até a leitura marxista, de luta de classes. Suas vozes são as de Miucha, Nara Leão e de meio MPB-4, nitidamente se divertindo muito. E ainda ganhou uma espécie de continuação anos depois, na trilha sonora dos Saltimbancos Trapalhões, não por acaso o melhor filme do quarteto.

2- Us – Peter Gabriel. A síntese mais completa do tão desgastado termo world music. Para começar, um time de monstros (para ter uma ideia, Sinead O’Connor faz backing vocal em duas faixas, e o encarte traz uma lista de músicos de cair o queixo cujas gravações não foram aproveitadas na mixagem final) e um festival de texturas inéditas para mim. Peter Gabriel aproveita o aprendizado que teve fazendo a trilha sonora de A última tentação de Cristo, filmaço de Martin Scorcese, e traz para suas canções irrepreensíveis timbres orientais, ritmos africanos e tecnologia de gravação, tudo junto e misturado, sem embolar nem desandar. Mas mais importante é que tudo está a serviço da maravilhosa sonoridade final.

3- Brasil – João Gilberto. O resumo da música brasileira em meia hora. A presença deste álbum como que me desobrigou de colocar quase qualquer outra da chamada MPB, tamanha sua capacidade de sintetizar tanta coisa, está tudo aqui. Tom Zé, no seu livro Tropicalista lenta luta, afirma em um artigo que as canções cantadas por João dobram a esquina da história. E prossegue, comparando João com Einstein – ou mais apropriadamente, a Bossa-Nova à Relatividade:

Esquina onde o que parece um passo passa do ano-luz. Então, João não é nada. Só a esquina. Fiquem com todas as honras. A ele, a esquina. Ele é a gravidade que impõe à reta da luz um ângulo de 90 graus.

E em outro texto, arremata: João abre a porta da quarta dimensão. Este álbum é um portal para esta dimensão, em que o Brasil da utopia se realiza e é feliz. Além do repertório fabuloso, da orquestração deliciosa, o João está na sua melhor forma. Mas o melhor é que o disco é uma aula, literalmente, e Caetano e Gil (e Bethânia numa faixa) são os alunos, repetindo obedientes as lições que João lhes passa. Inesquecível.

4- [Símbolo] – Prince. Último álbum antes dele trocar o nome pelo símbolo que é o nome do disco, sobreposição dos símbolos masculino e feminino, com uma trompa. Este não é seu álbum mais revolucionário, mas também não é do da maturidade de Musicology, mais homogêneo. Ao contrário, aqui Prince está endiabrado e a New Power Generation Band está em ponto de bala. Ele atira para todo lado e não erra, e na contracapa as canções são chamadas de jams. Tem desde hits radiofônicos até suítes amalucadas, com dois rappers incorporados à banda. E como se não bastasse, é uma aula de orquestração. Até canções singelas de amor terminam com solos de guitarra sobre metais furiosos – e funciona. Sua auto elogio está à toda: Meu nome é Prince, primeiro e único (…) No início, Deus fez o mar / Mas no sétimo dia ele me fez / Ele estava tentando descansar quando ouviu um som / Parecia uma guitarra (…) Deus estava preocupado, até que me ouviu cantar. Entendeu?

5- Õ Blesq Blom – Titãs. Sou legiomaníaco e quase escalei o I ou o V aqui. Mas não dá pra negar que os Titãs foram o que de melhor o rock brasileiro produziu. Hoje são uma sombra do que foram, mas conseguiram levar para a música popular e jovem algumas das vertentes artísticas contemporâneas, sem perder a pegada nem o público. Assisti o show do Rock in Rio II no Maracanã, logo após o lançamento deste álbum, e a comunhão com a platéia era bonita de se ver. Este disco tem de tudo que os Titãs fizeram de melhor: tem poesia concreta, crítica social não óbvia, metalinguagem, nonsense, e é inesperado a cada faixa. Não é um disco de rock, é um disco que deixa o rock para trás.

6- Remain in Ligth – Talking Heads. O encontro entre o David Byrne e o Brian Eno, e deveria ser suficiente dizer isso. Na verdade o terceiro encontro, já que é o terceiro álbum da banda produzido por ele. Mas este é fora do comum, um encontro perfeito também entre forma e conteúdo. Nunca as canções de David, obra primas do estranhamento do mundo (esta não é a minha bela casa. Esta não é a minha bela esposa!), fizeram tanto sentido junto às tessituras sonoras de teclados e levadas inesperadas (haviam conhecido Fela Kuti pouco antes). É um disco para desreconhecer a realidade. Os timbres deste álbum são um mistério para mim até hoje. Ouço, reouço e não consigo decifrar. Que maravilha!

7- Clube da Esquina – Milton Nascimento e Lô Borges. Falta um disco que simbolize a Tropicália nesta lista, por não haver nenhum específico que mudou minha audição (poderia ser Estrangeiro, que talvez fosse o décimo primeiro dela). Mas na falta dele, este aqui passa a ter uma dupla função, por ser aquele que traz o rock para dentro da música brasileira de uma forma ainda mais orgânica que os baianos (e dando a deixa juntamente com eles para os nordestinos logo após). Fora isso, uma coleção de canções atemporais, incluindo a que mais me meteu medo a vida toda (vide abaixo), e ouvir os amigos se revezando nos instrumentos, Beto Guedes no baixo, na guitarra, no bandolim, os outros outro tanto, é também algo para abrir o ouvido. Esqueça o tanto que este disco já tocou e escute-o novamente sem pé atrás. Vai se surpreender.

8- Álbum Branco – Beatles. Sargento Pimenta era minha primeira opção, um tanto óbvia: qual ouvido ele não arrombou? O Branco o venceu por uma cabeça, ou melhor, faixa: Revolution 9 me mostrou até onde pode ir a música popular muito além do que eu nunca imaginara. Mas é claro que não apenas de anticanções vive-se. Fora isso, é um disco em que a maior banda do mundo se leva pouco a sério, o que é genial. “Todo mundo tem algo a esconder, menos eu e meu macaco!” É preciso coragem para dizer isso, a coragem de não ser profundo. E é preciso ter subido muito alto para se dar o direito de não se levar a sério assim, e justamente por isso fazer uma música que realmente diz coisas novas, sem se preocupar em ser revolucionário. Você diz que quer uma revolução / Bem cê sabe, adoraríamos mudar… sua cabeça.

9- The Red Shoes – Kate Bush. OK Computer, do Radiohead, passou perto aqui, assim como Bjork. Mas a coesão alada à inventividade e a variação entre suavidade e potência da Kate são imbatíveis. Este álbum veio depois de um longo hiato e dá pra sentir a gana dela de voltar à ativa. O repertório flui tão redondo que participações do Eric Clapton e do Prince são como visitas de amigos (nada de featuring). As experimentações de álbuns anteriores aqui estão domadas e inteiramente a serviço – o que não as deixa de lado, antes pode potencializá-las. A mulher é uma fada mas também sabe ser uma bruxa quando preciso, e como sabe contar uma história.

10- Chico Buarque (1984) – Chico Buarque. A escolha mais pessoal da lista, talvez um anticlimax para o leitor que esperasse algo muito arrojado como chave de ouro. E realmente não é um disco particularmente inovador, especialmente sendo Chico Buarque antes um mestre de ofício, dos que perfeccionam a forma, que um iconoclasta. Acontece que este é o primeiro LP que comprei, com 13 anos, e nele descobri um mundo, desde os arranjos que nunca ouvira com aquela atenção (algo de maturação dos neurônios na adolescência talvez…), como também pelas participações de outros músicos e cantores, me apresentando pistas que fui seguindo – Pablo Milanés, Francis Hime, Dominguinhos, e perceber as diferenças entre o violão de Toninho Horta e o de João Bosco… e como se não bastasse, em plena redemocratização, canções como Pelas Tabelas e a imortal Vai Passar – para não falar de Brejo da Cruz – foram um ensino médio de política para mim, onde os Saltimbancos tinham sido o fundamental. Foi o álbum a partir de que descobri o mundo. Podia ter sido outro, calhou de eu ouvir JB AM e passar na frente das Lojas Americanas, calhou de ter 13 anos, calhou de ser brasileiro… mas veja se não foi um bom começo.

A melodia do rap – Emicida

Num excelente artigo para a revista digital de cultura Celeuma, o pesquisador Walter Garcia partiu de João Gilberto, objeto de seu livro Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto, e ao chegar em Chico Buarque, continuador natural da tradiçõo da Bossa-Nova, tomou um desvio para traçar uma ponte até os Racionais MCs. Ao traçar as linhas mestras da Bossa, resumiu:

1.no trabalho de Tom Jobim, “o predomínio absoluto da linha melódica” sobre outros parâmetros musicais – harmonia, arranjo, orquestração; 2.no trabalho de João Gilberto, o “horizonte ideal” de seu canto: “um ponto em que seja suficiente falar com perfeição para que a linha melódica brote espontaneamente da palavra, uma vez encontrada a inflexão e a cor exata de cada sílaba”; 3.ainda no trabalho de João Gilberto, o pulso musical que, ao relativizar a “oposição forte/fraco”, configuraria “uma pulsação doméstica, o correr indefinido das horas em que ficamos em casa”.

Muito bem, sintetizando muito para termos um ponto de partida, a Bossa-nova estiliza o samba, que por sua vez se estruturara como célula rítmica estável a partir de uma profusão de divisões que se resumia (mas não se limitava) ao paradigma do tresillo descrito por Carlos Sandroni no livro Feitiço Decente. É esta estruturação/estilização que permite construir sobre ela o edifício melódico/harmônico de Tom Jobim, e também a João Gilberto, firmemente apoiado na divisão complexa/concisa que criou, estabelecer a infinidade de variações entre sua voz e a batida de seu violão. Lorenzo Mammi, no já clássico artigo João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova, parte da premissa-chavão (mas nem por isso falsa) da Bossa como uma manifestação da classe média carioca. Estabelece-se então uma espécie de consenso de classes em que o samba, assimilado e digerido como o ritmo nacional, é alçado a uma condição estética de construção de um projeto de país, uma utopia, uma… promessa de felicidade. Walter aqui remete-se a Sérgio Buarque de Hollanda e ao tipo do homem cordial, protótipo do brasileiro, que desconhece “qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo”. A matéria histórica em que se assenta a cordialidade é a supremacia dos domínios rurais sobre os centros urbanos, o que significa dizer que a ética cordial – a supremacia das relações afetivas, das vontades particulares,da opinião tradicional sobre os princípios neutros e abstratos, sobre as normas antiparticularistas de organização social – dá prova da “persistência dos velhos padrões coloniais” (citando Walter que cita Sérgio). Pois bem: exatamente este acordo cordial que o rap vai quebrar, e é isto que seu som mostra distintamente. Tecnicamente falando, a não melodia do rap é um ato político que abre espaço para a liberdade rítmica. A voz de Emicida (e já explico porque o tomo como objeto deste segundo texto) atua no ritmo como uma espécie de repique. A voz repica tempos fracos do compasso acumulando síncopes sobre o tempo quadrado da bateria eletrônica. O improviso – e o desafio – não é só de letra, mas de domínio do tempo. Este é o ponto a ser discutido. A música oriental nega a harmonia para desenvolver a melodia microtonal (o funk carioca, por caminhos muitos diferentes, partilha esta escolha). O rap, mais radical, nega a melodia, ou faz a não-melodia (mas aceita ocasionalmente a harmonia, porém desfuncionalizada, que não desenvolve papel preponderante ao não ser justificada pela melodia) para que o ritmo floresça. Walter Garcia, neste artigo, trata de como os Racionais fazem a acentuação tônica sobre os tempos fracos do compasso – como um surdo de escola de samba também faz. Porém, Emicida leva mais longe este jogo, variando a acentuação como numa dança, de forma mais radical que os Racionais, algo que se evidencia ela simples audição – tudo soa menos quadrado, há uma malemolência que não é só rítmica, mas também formal, e de ideia. Neste ponto, um encontro estilístico entre João e não tanto Racionais, mas Emicida. João se esmerou meticulosamente na divisão rítmica. A relação entre a batida de seu violão e a divisão de sua voz é o grande segredo da Bossa-Nova. A música dos Racionais não tem a divisão complexa de Emicida (embora sua divisão seja também plena de implicações). É como se não-melodia dos Racionais fosse a preparação necessária para a divisão complexa de Emicida. Como que para compensar esta divisão complexa (que tira um pouco da atenção da letra pela estilização, enquanto os Racionais optam pela não estilização rítmica em favor absoluto da letra, uma urgência de se fazer ouvir que sacrifica tudo pela mensagem), Emicida se permite esta estilização. Como compensação pela divisão irregular de sua fala, recorre ao refrão cantado – por Wilson das Neves em Trepadeira, por Pitty em Hoje Cedo (faixas do álbum de Emicida O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui), tomando um caminho timidamente pop, como uma concessão ao ouvinte, mas também como consequência desta mesma estilização. Sua sua música se complexifica também pelo contraste entre estes dois caminhos opostos e simultâneos. Isto é uma aproximação com a MPB? Sim, mas também um aprofundamento natural do próprio Rap. Aqui percebo uma diferença fundamental entre Racionais e Emicida no modo de contar suas histórias. O que os Racionais MCs tratam como princípio, regra geral mesmo ao relatarem experiências pessoais, Emicida se permite tratar efetivamente no nível da vivência. Sua primeira pessoa é reconhecível como ele próprio, não a persona que os raps dos Racionais apresentam de forma épica, quase mítica. Se o que torna os Racionais especiais é justamente a capacidade de transformar em relatos transcendentes as histórias terríveis da Sobrevivência no Inferno – para citar o título de seu álbum mais conhecido, por outro lado Emicida tem como fazer o retorno à narrativa do caso particular como que numa exemplificação de linhas filosóficas enunciadas pelos Racionais, e isso exatamente por se sustentar nelas. A perda do pai contada de forma pungente em Crisântemo, o invejoso contumaz protagonista de Zoião, a mina falsa de Trepadeira, são histórias palpáveis, reais e intransferíveis, mas também gerais a ponto de gerar empatia em dois públicos: o que não sabe nada das quebradas pode se identificar com as ideias gerais; e o que ouviu Racionais e sabe das quebradas, e vai saber da significação destas histórias dentro destes lugares, ressignificados pelo entorno. Walter Garcia afirmou em entrevista:

IHU On-Line – Em que medida o seu estudo sobre João Gilberto, trazido no livro Bim Bom, contribui para o estudo da música dos Racionais MC’s? Como é percorrer o caminho que vai da bossa nova de João Gilberto ao rap dos Racionais MC’s? Walter Garcia – Não sei avaliar se a minha dissertação de mestrado sobre João Gilberto , depois publicada em livro, contribui ou não para o estudo dos Racionais MC’s . Mas penso que não há exatamente um caminho da “bossa nova” ao “rap”. Aliás, como não é nada fácil lidar com esses rótulos, seria melhor afirmar que não vejo um caminho que vá de João Gilberto aos Racionais MC’s. Penso, sim, que se formaram dois sistemas na canção brasileira de mercado (remeto-me à noção de sistema trabalhada por Antonio Candido na literatura, adaptando-a evidentemente às condições de realização da canção popular). Num desses sistemas, João Gilberto ocupa o lugar central. Noutro, o Racionais MC’s ocupa o lugar central.

Simbolicamente, é mesmo possível considerar o projeto musical dos Racionais como uma oposição feroz ao projeto MPB, pautado na melodia/harmonia de Tom Jobim. Porém, na sua não melodia há o eco de João Gilberto por negação, como um caminho de retorno: de um ponto em que seja suficiente falar com perfeição para que a linha melódica brote espontaneamente da palavra passa-se a outro ponto em que o falar impede propositalmente e peremptoriamente o surgimento desta melodia, como forma não apenas de realçar a letra, mas também de realçar exatamente este impedimento, um não elemento que se torna protagonista da música. São pontos opostos, porém estranhamente próximos. E através desta negação da melodia/harmonia, faz também a contraposição à música moldada pela e para a classe média, sua tomada de posição contra o consenso de classes que manteve uma delas submersa mesmo ao utilizar seus elementos para enriquecer-se esteticamente, a denúncia de que a promessa de felicidade que a Bossa Nova simbolizou não foi nem de longe cumprida para todos. Tomada de posição que se torna mais chocante exatamente pela insuspeita proximidade com um dos elementos básicos deste consenso, a relativização da oposição forte/fraco. Relativização mantida musicalmente mas negada socialmente. Aqui, um excurso necessário sobre Jorge Benjor: é fato que os Racionais sempre fizeram questão de frisar sua, não diria, filiação, mas ligação com a música de Jorge Ben. À parte interpretações sobre os pontos de contato estilísticos e musicais entre ambos e que mereceriam um artigo específico, há que se lembrar que, quando Ben surgiu no cenário da música brasileira, havia o programa Fino da Bossa, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, e o da Jovem Guarda, e foi neste último que Jorge Ben foi acolhido, pois o primeiro recusou-se a recebê-lo. Assim, há de início um estranhamento entre a Bossa-Nova e Jorge Ben, como que um reconhecimento de que não partiam da mesma matriz, a percepção de vocabulários que não dialogavam. Obviamente, ao longo do tempo, com o esgarçamento progressivo da sigla MPB e a inclusão de vertentes diversas (inclusive de boa parte da Jovem Guarda), esta situação se diluiu. Mas os Racionais em sua radicalidade, nos vêm lembrar desta divergência na raiz, aprofundando-a em sua música. O que percebo na música de Emicida representa talvez o princípio de um caminho de assimilação do rap à música brasileira, depois do desafio terrível lançado pelos Racionais MCs. Emicida segue na negação da melodia (abrindo no entanto caminho para ela no refrão eventual), mas diversifica a quebrada rítmica, reaproximando-se da música brasileira forjada a partir da Bossa por um caminho em que sua habilidade lhe garante segurança, ao mesmo tempo radicalizando o ritmo e flexibilizando seu uso. Por outro viés, pode-se ver o sintoma desta nuance nas duas polêmicas principais em que ele se envolveu nos últimos anos: sua prisão depois de um show em 2012 por ter sido acusado de incitar a violência contra a polícia, e a reação das feministas em 2013 à música Trepadeira. Escrevi em 2012 numa rede social:

É mesmo sintomático que o rapper Emicida tenha sido preso por cantar uma música, bem no dia 13 de maio. A frase que motivou sua prisão contestava a ação da polícia mineira na desocupação de um terreno ocupado por sem-terra. Aqui está: “Levanta o seu dedo do meio para a polícia que desocupa as famílias mais humildes, levanta o seu dedo do meio para os políticos que não respeitam a população e vem com ‘noiz’ nessa aqui, ó. Mandando todos eles se f…, certo, BH? A rua é ‘noiz'”. Lido o trecho, fica claro que ele nem sequer está ofendendo a instituição policial, ou coisa parecida, mas unicamente se referindo à ação. Emicida explicitava, como disseram Caetano e Gil, “como é que pretos, pobres e mulatos / E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”. A polícia concorda ao discordar do Emicida, agindo com ele exatamente como ele a acusou de agir com os sem-terra. O que não deixa de ser sinal de coerência.

A atitude contestatória de Emicida neste episódio não fica nada a dever à dos Racionais em termos de coerência – inclusive ao recusar-se a assinar o boletim de ocorrência que distorcia suas palavras, não fazendo de forma alguma o jogo do repressor. E no entanto, Trepadeira foi acusada pelos realizadores da Marcha das Vadias de repercutir o discurso hegemônico que deprecia a mulher sexualmente livre e justificar a violência com base no comportamento dela. Na letra, Emicida afirma que a mulher em questão Merece era uma surra de espada de São Jorge / um chá de comigo ninguém pode. O interessante é que este pretenso vacilo de Emicida se dá justamente numa faixa em que o ritmo não é hip-hop, mas samba (o samba que a Bossa-Nova resumiu, idealizou, transformou em consenso, projetou uma utopia de país etc.), em que o sambista veterano Wilson das Neves é convidado especial e canta a faixa junto com Emicida. É como se à aproximação com um universo de maior flexibilidade rítmica correspondesse também uma flexibilidade de posição pessoal, uma concessão à ética cordial, de fundo emotivo – e que, repetindo Sergio Buarque de Hollanda, revela em si, por sob camadas e camadas históricas, a persistência dos velhos padrões coloniais. Emicida se justificou com relação às críticas, inclusive se desculpando, mas não deixou de cantar a música. Trata-se, porém, de algo bem mais complexo que uma traição dos ideais ou uma rendição ao mercado. As duas posturas de Emicida, de defesa dos sem teto e de um eventual machismo, coexistem exatamente porque sua narrativa é pessoal, não ideal. E porque, ele se coloca, num passo histórico ainda pequeno adiante da ruptura dos Racionais (sem julgamentos estéticos aqui especificamente) no caminho da assimilação do rap pela música brasileira, que vem se alargando concentricamente desde o instante mesmo em que foi concebida como MPB. Sua contradição está implícita no consenso que se estende juntamente com a inclusão econômica ainda tímida promovida pelos últimos governos, e permite que a música feita para recusar seja aceita pelo que recusa. Porque, como reconhece dubiamente (talvez dialeticamente) Emicida na letra de Hoje cedo, A sociedade vende Jesus, porque não ia vender rap?

Triunfo

O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui – álbum completo

A ida sem volta de João Gilberto, por Luiz Nassif

Durante alguns meses, fui amigo de João Gilberto no Facebook. Durante este período, a revista Veja publicou uma falsa entrevista dele, em que teria dito, entre outras coisas, que iria fugir para a Argentina. Segundo a própria revista, tratava-se de uma compilação de declarações (algumas particulares e vazadas) arrancadas de João ao longo de um período. Se apenas a transformação de frases esparsas – e provavelmente algumas inventadas como esta declaração absurda acima – em entrevista já é uma prática antiética bem de acordo com o que a revista se tornou, nem falo do anúncio da revista, replicado por alguns jornais, de que o perfil no Facebook era falso. Não era. Este artigo de Luiz Nassif não trata de música, que é o mote deste blog, e sim da pessoa João Gilberto. Mas em se tratando de uma pessoa que se tornou sinônimo e encarnação de música, sua leitura é fundamental.
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João Gilberto provavelmente não mais voltará. Escondeu-se em alguma dobra do tempo, em algum mundo auto-referenciado, de onde aguarda o momento da partida definitiva.

Nos últimos anos eram nítidos os sinais dessa ida sem volta. A síndrome do pânico, ou o nome clínico que se dê às suas vulnerabilidades, o impediram de concretizar a última turnê, a despedida triunfal. Foram dois canos nas duas últimas excursões planejadas. Espocaram críticas, dos que viam nas suas estranhezas apenas um caráter excêntrico.

Era muito mais que isso: uma questão médica para a qual não havia diagnósticos na época.

Aqui no carnaval, caminho pelos jardins ouvindo Marilu interpretar “Porque é”, de Roberto Martins e Mário Rossi. É de 1942, quando a música carioca descobria a riqueza interminável do sincopado. Marilu escande cada sílaba em cada nota, usando o contratempo inserido na composição – os mesmos recursos dos conjuntos vocais, dos extraordinários Anjos do Inferno, da dupla Joel e Gaúcho.

Foi ali que os músicos mais sofisticados foram buscar a base, o molho e, depois, fizeram a síntese. Primeiro Garoto desenvolvendo a batida inicial da bossa nova. Depois, João Gilberto, assimilando a batida de Garoto e incluindo nela o Brasil.

Nem vou discorrer sobre a sua importância.

O que me importa é o homem João Gilberto.

Tempos atrás, surgiu o boato de que João Gilberto tinha um perfil no Facebook. Em pouco tempo o perfil lotou e os seguidores ganharam durante meses preciosidades da música brasileira e internacional em vídeos do Youtube.

O perfil ganhou visibilidade em dois momentos. Primeiro, no episódio em que a Vejinha do Rio publicou uma suposta entrevista com ele. Segundo, no caso da dona do apartamento de João Gilberto pretendendo despejá-lo.

Defendi-o dos ataques que sofreu, quando negou que tivesse concedido a entrevista à Veja. Surpreendi-me quando recebi uma mensagem reservada do tal perfil, agradecendo minha defesa e insistindo que jamais havia recebido o repórter ou qualquer jornalista da revista.

Depois, no episódio do despejo, escrevi uma crônica sugerindo o “tombamento” de João Gilberto.

Ele passou a se comunicar permanentemente comigo, da maneira mais discreta possível: clicando no CURTIR quando colocava algum vídeo que o interessava. Ou pedindo socorro.

Até então, meu único contato indireto com ele foi uma crônica que escrevi na Folha, quando completou 70 anos. Seu produtor me ligou pedindo para usar a crônica na divulgação de seus shows. Provavelmente, ele nem soube dessas tratativas. No episódio Veja, vários jornais sugeriram que o perfil do FB era fake.

Fiquei com um pé atrás, para não ser pego num trote. Conversamos muitas vezes, até que apliquei o teste definitivo. No período anterior ao do lançamento do Chega de Saudade, em 1957, foi feito um conjunto de gravações caseiras de João Gilberto,. Saraus entremeados de conversas, dicas musicais, avaliações de músicos. Consegui baixar da Internet durante o meio dia que ficou disponível, colocada pelo dono da casa depois que João Gilberto decidiu não autorizar seu lançamento em CD.

Em uma das conversas, o anfitrião pergunta a João Gilberto quem seria o maior violinista brasileiro. O próprio anfitrião se incumbe de desqualificar nada menos do que Baden Powell, em início de carreira. Baden tinha cometido a audácia de acompanhar a grande Ângela Maria, pecado indesculpável para a juventude esnobe e internacionalista da zona sul do Rio.

João Gilberto não entra na discussão sobre Baden, mas indica o melhor: Jacob, violonista que conheceu em São Paulo. O anfitrião pede para que ele toque algo de Jacob e João Gilberto diz que não consegue. A harmonia era muito sofisticada para seu nível de conhecimento do instrumento.

Só havia essa menção. Joguei a informação aqui no Blog, pretendendo identificar o tal do Jacob. Um mineiro de Diamantina garantiu tratar-se de um boêmio local, que morou em São Paulo, onde conheceu Garoto, e de quem João Gilberto teria se aproximado no período em que morou com a irmã – e que, segundo o livro do Rui Castro, teria descoberto a batida. Era um “causo” mineiro apenas.

Matei a charada em um sarau na casa de Walter Appel, em São Paulo, com o pessoal da bossa nova paulista, os antigos instrumentistas dos barzinhos de jazz dos anos 60 e 70. Foi o Luiz Roberto ou o Theo de Barros que me disse que o Jacob era o Edgard Gianullo, amigo dos tempos do Bar do Alemão, músico excepcional.

Conheci Edgard levado pelo Nelsinho Risada, caixa e cavaquinho do bar, que havia participado com ele de um conjunto vocal dos anos 50.

Depois, o Serginho Leite me contou que, em Nova York, quando foi visitar a loja da Tender (o grande fabricante de violão), na parede havia quadros com os melhores guitarristas que passaram por lá. E Edgard estava lá com seu sorriso escancarado, que ilustrou vários comerciais dos anos 80.

O único ponto em comum com a hipótese Diamantina era o fato de Edgard ter convivido com Garoto e bebido na sua influência. Aliás, outro dia o Paulo Vanzolini me contou que Garoto chegou a montar um bar na Major Sertório, frequentado pela boemia musical da cidade.

Uma noite, perguntei de chofre a João Gilberto quem era o Jacob, ao qual ele se referiu na gravação. A resposta foi imediata: era um rapaz de São Paulo, por volta de 18 anos. Justamente a idade de Edgard na época.

(aqui a confirmação da identidade de Edgard/Jacó, inclusive por Edgard Poças, testemunha da época, nos comentários)

Tempos depois, Danilo Caymmi também confirmou que era João no perfil.

Durante meses desenvolvemos uma conversa de poucas palavras. João escrevia colocando um ponto entre cada palavra. Assim: q.u.e.r.i.a..f.a.l.a.r..c.o.m..v.o.c.e. Ou clicava no CURTIR, quando eu fazia algum comentário em seus posts.

O que se revelou, naquela conversas reservadas, é o que qualquer pessoa de bom senso intuiria sobre suas extravagancias: uma pessoa extremamente vulnerável, sem nenhum sentido prático, indefesa ante um mundo em que havia pessoas, objetos, rotinas, contratos. Era incapaz de resolver os problemas mais comezinhos. Como trocar as cordas do violão, como me disse uma vez Raphael Rabello.

No episódio do despejo, escrevi uma coluna sugerindo o “tombamento” de João Gilberto. De noite, mandou mensagem agradecendo, indignado com a petulância da dona do apartamento, de pretender…. vistoriar seu próprio apartamento. Perguntou o que eu poderia fazer por ele. Respondi que apenas o que sabia fazer: podíamos marcar uma entrevista no Rio, filmada ou não, onde se mostraria seu lado humano e, com toda sutileza, as razões que o faziam ter tal comportamento, longe do estrelismo, perto dos problemas emocionais graves.

Topou, de início. Depois, recuou. Foi se aconselhar com Roberto Carvalho, ex-Rita Lee, que se tornara seu conselheiro mais próximo. E Roberto desaconselhou qualquer contato com a imprensa. Então, tá!

Duas vezes foi alvo de ataques virulentos de trolls. Cada ataque o deixava prostrado. No primeiro, desapareceu por vários dias. No segundo, veio pedir minha ajuda. Confessou estar apavorado e perguntou que providências poderia tomar.

Informei-me com uma procuradora conhecida, que me passou o telefone e e-mail de um local que poderia acolher a denúncia. Dias depois, pediu para esquecer. Descobriu que o ataque viera do filho de um amigo, solidário com Bebel em uma das brigas entre pai e filha.

Depois, espalhou-se que o autor do perfil, na verdade, seria seu filho Marcelo Gilberto. Não era, de fato. Se foi, pode ter sido por um período. Não naquele em que o perfil sabia o detalhe correto de uma conversa ocorrido em 1957.

Tempos depois, tentou-se a derradeira excursão. Mais uma vez João Gilberto falhou, como havia falhado algum tempo antes com duas empresarias cariocas – que depois o processariam.

Foi o último vestígio de sua presença vaga entre nós.

Para mim, ficou a lembrança de um dos últimos vídeos que postou no Facebook, a declaração apaixonada a seus dois grandes e únicos amores: a música e o Brasil. O “Canta Brasil” é uma declaração definitiva de amor.

Mas existe gravação original?

Existe este conceito, ele faz sentido? Uma gravação de uma canção pode ser a primeira, e então a música é inédita, ou ser uma regravação. Ser o primeiro a gravar uma canção faz diferença de cantá-la conhecendo uma interpretação anterior de outra pessoa? É possível considerar a primeira gravação como sendo a referência de todas as outras posteriores, para o bem ou para o mal?

Quando ouvimos uma regravação ouvimos também a gravação original por trás dela. Se conhecemos uma gravação anterior, estabelecemos automaticamente uma relação nesta reaudição. Mas mesmo que não a conheçamos, ouvimos o seu eco na regravação – se o cantor conhece a gravação original. E se ele não conhece, há este eco em sua interpretação, sem que ele perceba ou controle?

Me acostumei ao longo do tempo com a idéia de uma gravação original que fosse considerada a referência da canção, idéia muito dos pesquisadores da música brasileira pré-bossa nova. Mais tarde descobri que no meio acadêmico hoje esta idéia é repudiada por muitos. Não sei se posso concordar inteiramente com nenhuma das duas posições. Trago quatro exemplos bem diversos, em que a ligação entre duas ou mais gravações obedece a diferentes critérios:

Primeiro exemplo: descobri há dias que Ai, se eu te pego, o sucesso internacional que acaba de ser gravado em hebraico, tem a seguinte e mirabolante história: foi composta e gravada por uma funkeira baiana, adaptada por um forrozeiro e gravada por um grupo chamado Cangaia de Jegue, e só então por Michel Teló, que é classificado como sertanejo universitário (sic).

Antes de qualquer coisa, uma informação como esta se presta a uma análise e tanto sobre a nossa indústria cultural de massa descaracterizando tudo que toca. Mas isto só se torna possível porque ela encontra uma canção como esta, que passa incólume por essas sucessivas mutações. Comentei no Facebook que ela tem que ser absolutamente genial ou não ser absolutamente nada para conseguir ser todas estas coisas sem realmente ser nenhuma, e no fundo acho que ela junta as duas coisas, sendo genial em sua capacidade de ser nada. Não vai ironia aqui. Será que a gravação da baiana Sharon Acioly (autora também da Dança do quadrado!) pode ser considerada a verdadeira, cantada do ponto de vista feminino? Ou a do Cangaia de Jegue, que não é a que foi ouvida por quem fez a tradução para o hebraico? E no entanto, foi a partir destas gravações que foi definida a versão que explodiu nas paradas de sucesso.

Certo, esta canção certamente será esquecida dentro de pouco tempo, ela foi feita para isso. Mas a reflexão acima vale não somente para ela, mas para a obra de arte de massa em geral, em que o processo de criação é bem outro, seguindo critérios de autoria muito diversos, e que ainda vão ter que ser estudados pelos teóricos de Comunicação.

Segundo exemplo:

Fadas – Luiz Melodia

Luiz Melodia gravou Fadas em seu álbum de 1978, Mico de circo, como um vigoroso choro, cheio de ironias típicas de seu samba sofisticado, como o erro de português proposital logo no primeiro verso, Devo de ir (ele também usa a preposição de fora de propósito num verso de Ébano, Espero de te encontrar com mais saúde, assumindo uma sintaxe de pessoa iletrada tentando falar na forma culta), mas com um lirismo igualmente vigoroso.

Fadas – Elza Soares

Elza Soares regravou Fadas em 2002, no álbum Do cóccix até o pescoço, tranformando o choro num inesperado tango. A canção perdeu algo da ironia da gravação original, mas permaneceu lírica e um tanto ácida na leitura de Elza. Ainda assim, são visões muito diversas da mesma canção. Mas Luiz Melodia, depois desta gravação, passou a frequentemente apresentá-la em shows com o arranjo da gravação de Elza! É o caso de uma regravação influenciar o autor (Lembra-me também Bob Dylan, que após a gravação de Knockin’ on the heavens door por Bob Marley, passou a também cantar sua própria canção como reggae).

Terceiro exemplo:

Dura na queda – Elza Soares

Dura na queda foi composta por Chico Buarque especialmente para Elza Soares, e gravada por ela no mesmo álbum de 2002. José Miguel Wisnik, produtor do álbum, conta que foi à casa do Chico para anotar a tortuosa melodia da voz do próprio autor, contendo inclusive uma citação de An american in Paris, de George Gershwin, e que na hora de cantar Elza arredondou completamente a melodia, chegando a tornar descendentes frases ascendentes e vice-versa, o que levou Chico a gravar a canção depois eu seu álbum Carioca:

Dura na queda – Chico Buarque

E neste caso, qual deverá ser a versão real? A que tem a melodia correta, a do autor – que não é a primeira, ou a da cantora para quem a música foi feita, esta sim a original em seu significado estrito?

Quarto e último exemplo: Luiz Tatit diz que João Gilberto é recompositor, por tomar uma canção que muitas vezes é consagrada e muito conhecida, e nos revelar arestas insuspeitadas, como disse Caetano, e resolver o dilema à sua maneira particular, criando versões que soam definitivas das canções, sem deixar de remeter continuamente à história de cada uma, às gravações anteriores, originais, sempre referencial, sempre sobejamente autosuficiente. Cito a partir daqui, ipse litteris , um trecho do documentário Tim tim por tim tim – a música de João Gilberto, texto do pesquisador Paulo da Costa e Silva, e eu não poderia dizer melhor:

Muitas vezes, a canção recriada por João é tão difundida, tão fincada no repertório comum, que não é mais possível remetê-la a uma única fonte primordial, a essa ou aquila matriz de referência. As inúmeras gravações de Garota de Ipanema, Aquarela do Brasil e Desafinado sobrepõem-se de tal maneira que terminam por formar uma espécie de original ideal da canção, que jamais é realizado concretamente. A memória não é apenas uma máquina de registro, na qual eventos passados e experiências são armazenados de forma imutável. A memória é ativa, modifica o que guarda. Costuma agir sobre as melodias armazenadas de modo a torná-las mais padronizadas e confortáveis para a própria mente, mais redondas e esquemáticas, portanto mais facilmente assimiláveis e rememoráveis. Ao ser retida, a forma musical geralmente é alterada na direção da regularidade, da simetria e da completude. Ou seja, tendemos a lembrar dos temas musicais como sendo mais simples do que eles realmente são, como tipos ideais mais do que como objetos particulares dessa ou daquela interpretação. A música de João nos induz continuamente a essa comparação com o tipo ideal, com a lembrança que temos de determinada canção. Talvez nenhum exemplo da capacidade de João de dar vida nova a uma canção já gasta seja mais indicativo do que suas gravações de Garota de Ipanema.

João, tim tim por tim tim

João de novo, e de novo, e de novo. João é o ponto central da música brasileira, em torno do qual tudo gravita, às vezes a distâncias enormes, mas de qualquer modo tendo-o como referência central. João é também a referência auditiva para quem afirma detestá-lo ou achá-lo chatíssimo, pois quem afirma isso frequentemente adora outros músicos diretamente influenciados por ele.

Tim tim por tim tim – a música de João Gilberto é um audiodocumentário da Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, que se propõe a olhar com microscópio este ponto central. O roteiro do Paulo da Costa e Silva (que tem o blog Doida Canção, pouco movimentado mas com excelentes análises musicais) se dedica a esmiuçar todo aspecto da música do João, das raízes e precursores de seu estilo, passando pelas variações da batida do violão, as relações rítmicas e timbrísticas entre ele e a voz, até considerações semióticas, como a excepcional sacada de que João, mesmo quando transforma uma gravação sua na que parece ser a versão definitiva de uma canção, sempre dialoga com uma gravação original que é para ele como que o chão sobre o qual elabora a sua. O que novamente tem a ver com esta posição central de João, condensando em si a história da música brasileira anterior e abrindo novamente o leque para o futuro.

O documentário, de sete blocos com cerca de meia hora cada, é para ser degustado com calma – como a música que o originou. Tem depoimentos preciosos de Luiz Tatit, José Miguel Wisnik, Lorenzo Mammi, o preparador vocal Felipe Abreu, entre vários outros. Mas, principalmente, tem música, ou seja, pari passu cada nova interpretação, cada detalhe interessante, cada desdobramento, vem o exemplo em canção e interpretação joanesca, da mesma forma que tento fazer aqui. O resultado é interessantíssimo mesmo a não iniciados, acessível como deve ser um documentário, divertido como deve ser o que, afinal, ele é: um programa de rádio. Ainda trago desdobramentos dele para cá. Mas antes vou ouvi-lo de novo.

As exegeses do bilhete à diarista

Depois da exegese dos posts anteriores (aqui e aqui), é bom mostrar o outro lado – ou seja, a sanha da interpretatice, o culto à personalidade e a vontade de ganhar alguma notoriedade em cima da obra alheia, alimentando múltiplos significados que acabam dando mais notoriedade a quem consegue arrancá-los da obra que ao próprio autor, que nunca pensaria em nada parecido, e assim surgem os especialistas. O poeta Bruno Tolentino empreendeu nos anos 1990 uma verdadeira cruzada contra esta sobrevalorização da cultura popular – que ele simplesmente não considerava cultura, vide esta entrevista, e baixou o malho no Caetano Veloso, que aliás já afirmou diversas vezes que não considera sua obra algo que mereça atenção por refinamento erudito, e que tem a exata dimensão de ser apenas um compositor popular, e nada mais que isso.

Por mais argumentos eruditos que Tolentino tenha apresentado, é óbvio que esta visão absolutamente elitista não se justifica. Mas há bons debates sobre a posição da cultura popular no Brasil, em que a cultura erudita por séculos foi pouco mais que cópia ou adaptação da importada. Conversa que vai longe. Onde quero chegar é no Piauí. Ou melhor, nas sátiras que a equipe do Piauí Herald faz à esta confusão entre a cultura erudita e a popular no Brasil, por parte das obras, mas também dos analistas, como se, à falta de cultura erudita, fosse o caso de promover a popular a este posto – promovendo também por tabela quem a promove e supervaloriza obras marginais como correspondência pessoal à altura de grandes obras literárias.

A primeira que vi foi a incrível manchete Descoberto homem que compreende Gilberto Gil. Mas mais recentemente veio a público uma série inteira, baseada num recado escrito à diarista – por Chico Buarque, Gilberto Gil, João Gilberto e Caetano Veloso. O mesmo recado à mesma diarista, supostamente compartilhada por todos, um dia na semana para cada. A notícia é fundamentalmente a mesma, com as adaptações ao novo autor do bilhete, e é isso que as torna crescentemente hilariantes. Aqui, a sequência completa de artigos:

Bilhete de Chico Buarque à diarista é considerado magistral

Bilhete de Gil à diarista é considerado incompreensível

Bilhete de João Gilberto à diarista é considerado revolucionário

Lobão critica recado de Caetano à diarista

E finalmente, o clímax – ou o paroxismo – da novela, ainda mais surreal, mas ainda uma vez chicoteando a intelligentsia: Documentário de José Padilha sobre bilhetes à diarista é considerado visceral.

OK, vá lá, colocar estes textos num blog que se dedica justamente à análise do repertório destas pessoas requer uma boa dose de autocrítica, o reconhecimento de que elas fazem sentido muitas vezes – inclusive as do Bruno Tolentino, que certamente consideraria este blog a escória. Lembrei de Drummond se sentindo um monstro de escuridão ao ler a análise de um erudito a um poema despretensioso seu, e de Jonh Lennon rindo do crítico que detectara cadências eólicas em uma canção sua – cadências que existem mesmo, e que Jonh fazia questão de não conhecer… Mas lembro também do Chico Buarque que confessa não saber exatamente o que querem dizer versos como agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês ou pela varanda flores tristes e baldias como a alegria de não ter onde encostar. Sinal de que nem sempre o artista tem todas as chaves de sua própria obra.

É útil e saudável reconhecer o lugar especial que a canção popular, por circunstâncias históricas diversas, acabou assumindo no Brasil, fazendo as vezes de literatura, de crônica política e econômica, de filosofia, do escambau, reconhecer a beleza precária disso, de um florescimento tão grande que é a denúncia de uma falta que ela procurou e procura suprir a seu modo. Talvez num Brasil ideal a canção não seja tão importante – agora lembro do Millôr, que diz que um mundo ideal não teria humoristas, que vivem da falha. Mas então não seria ideal. Deixo a solução desta contradição para os exegetas.

João e Miles, no mesmo lugar, muito à frente

Tirei do blog Arte e suas Instituições… , da historiadora da arte Martha Telles, este artigo do filósofo Lorenzo Mammi, que saiu na Folha de S. Paulo ontem e tem como mote inicial o aniversário de 80 anos de João Gilberto – ao menos para a imprensa, que precisa de ganchos deste gênero para tratar de coisas que tem importância em qualquer ocasião. Nem a data nem o pretexto importam. Mais uma análise de João Gilberto? Exatamente. E o impressionante é exatamente a capacidade – mais que de qualquer analista, mas da própria obra do João – de gerar novas e inesperadas análises e interpretações ao longo dos anos, como se, em vez de a obra dele amadurecer, nossos ouvidos é que fossem amadurecendo sempre para ouvi-la melhor.  No blog ainda tem outro artigo do Mammi sobre o João, este mais antigo, que aborda o assunto por ângulos bem diferentes e tão interessante quanto, e ao qual logo vou voltar aqui.
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A celebração dos 80 anos de João Gilberto proporciona certo desconforto. Não que ele não mereça. Mas a própria ideia de comemoração, com seu alarde festivo, não parece condizente com uma personalidade tão esquiva. Atrás de todas as páginas publicadas, memórias, artigos, testemunhos, fica a impressão de que ninguém sabe ao certo quem ele é. E que a expressão evasiva, quase abobalhada, com que pronuncia poucas frases em público é uma máscara com a qual consegue nos ludibriar há décadas. Ou não? E se sua figura, seu papel de referência para tudo o que foi produzido na música brasileira dos últimos 50 anos tiver crescido a tal ponto que já não admite um indivíduo atrás dela? João Gilberto virou uma espécie de entidade, mais do que um simples intérprete de canções, e entidades não fazem aniversário. Seu aniversário é o aniversário de um país, mais do que o de uma pessoa. E aí, seria o caso de investigar como isso se deu mais do que quem ele realmente é.

TEMPO De resto, se há alguém para o qual o tempo não passa, é ele. Há artistas que ficam presos a um momento glorioso e depois se repetem. Mas certamente não é esse o caso de João Gilberto: ao contrário, a repetição, a imobilidade nele parecem essenciais. Em sua forma geral, a bossa nova é um “loop”, um movimento circular, que volta constantemente ao começo. Não tem propriamente exórdios e finais, evita cadências muito conclusivas. As introduções das canções parecem colhidas no meio de uma conversa já em andamento, e os finais sugerem quase sempre que a melhor coisa a fazer seria recomeçar tudo de novo -e, de fato, João Gilberto costuma repetir três ou quatro vezes a canção inteira. Assim como não há começo nem fim, tampouco há acontecimentos dentro da canção que possam sugerir um movimento progressivo. O recurso fundamental é o da elisão, ou seja, a arte de mostrar escondendo: esconder o contraste entre tempos fortes e fracos, não apenas arredondando o 2/4 do samba em 6/8, mas, sobretudo, na mítica batida de João, pela geração contínua de síncopas e síncopas de síncopas, de maneira que o pulso fundamental seja marcado pelas pausas, e não pelos acentos; elisão das transições harmônicas, pela multiplicação de acordes intermediários (no violão de João) ou por um uso sofisticadíssimo das vozes internas (no piano de Tom Jobim); elisão na melodia, que sugere uma curva que não chega a se realizar plenamente; e na emissão da voz, que parece buscar, mais do que o som, o silêncio.

CHET BAKER Muito se falou, e de vez em quando ainda se fala, de uma influência de Chet Baker sobre João Gilberto. De fato, foi Chet Baker quem introduziu no jazz o gosto da emissão vocal puríssima, quase sem timbre e sem dinâmica, “sottovoce”. Mas as semelhanças são superficiais: atrás da voz do jazzista americano transparece a vontade de seduzir pela ternura e pelo aparente desprendimento -uma sedução antitética àquela afirmativa e atrevida de um Frank Sinatra, por exemplo, mas ainda uma sedução. Quando João Gilberto canta, em nenhum momento sentimos que está buscando um contato conosco. O sujeito já desapareceu, só ficou a canção -aí está a elisão suprema, aquela que justifica todas as outras. (Como intérprete, quem reintroduziu a busca de uma comunicação interpessoal na maneira de cantar de João Gilberto, fazendo a ponte com Chet Baker, foi Caetano Veloso; mas o que se revela no canto de Caetano, mais do que a voz do sedutor, é a voz do amigo: aquele que pode abordar qualquer assunto, mesmo o mais dolorido ou espinhoso, sem perder a dimensão do afeto.) A suspensão voluntária pela qual o sujeito se mostra ao se esvaecer, se oferece à vista (ou ao ouvido) enquanto se retira do mundo, talvez seja o significado essencial da bossa nova. Seu lugar de eleição é à beira-mar, dando as costas à cidade, mas sem entrar na água. Seu tempo é à tardinha, tarde demais para fazer alguma coisa, cedo demais para sair.
De resto, essa afirmação pela negação se reflete na personalidade dos protagonistas: Vinicius, poeta prestigiado e diplomata, que vai perdendo louros e gravata e que, mesmo depois de se tornar o maior letrista da música popular brasileira, parece constantemente tentado a se esconder atrás de parceiros menos conhecidos (de Jobim para Baden Powell, de Baden Powell para Toquinho); a timidez lendária de Jobim, sua melancolia congênita, sua vontade de se embrenhar no mato (“Águas de Março” é uma canção eufórica, mas não alegre, como bem mostrou Arthur Nestrovski); e João Gilberto, bem, este quase conseguiu a façanha de não existir.O mistério, no entanto, está no fato de esta poética da subtração, do quase não dito e não feito, ter sido um acontecimento cultural tão determinante, capaz de marcar com tamanha contundência a identidade brasileira moderna.Como pôde se tornar o maior ícone cultural de um país (porque é isso que João Gilberto é) um homem que só teima em desaparecer?

PROFISSIONALIZAÇÃO O vício da linearidade histórica nos leva a inserir a bossa nova num esquema desenvolvimentista: há o samba clássico, em seguida a influência do jazz, que gera a bossa nova, que abre o caminho à MPB, cada momento servindo de escada para o sucessivo. É um modelo fácil de decorar, mas que pouco explica. Há, de fato, um processo de progressiva profissionalização da música popular brasileira, já a partir da era do rádio, na década de 1930 -arranjos mais complexos, cantores mais aparelhados tecnicamente, um sistema de produção muito bem azeitado. Nos anos 1950, esse sistema já incorporara o jazz mais moderno, com Johnny Alf e Dick Farney, por exemplo. Mas a aparição de João Gilberto não foi apenas um passo à frente num caminho já traçado.
Nos primeiros álbuns, tirando as composições dos parceiros mais próximos (Jobim, Menescal, Lyra) e duas dele próprio (uma, vale ressaltar, que se autodefine como baião), poucas outras canções são incluídas, com um critério que, se não for fruto de uma estratégia consciente, é pelo menos índice de um gosto muito revelador.Os autores mais frequentados são Ary Barroso e Dorival Caymmi, aos quais se acrescenta, a partir de 1961, Geraldo Pereira. Pereira, que morrera em 1955, talvez fosse o herdeiro mais consistente do humor cirúrgico de Noel Rosa, não apenas nas letras, como também em seu fraseado peculiar, com um uso muito inventivo da síncopa.Caymmi colocara um estilo de composição muito arrojado a serviço de uma fala popular, aparentemente folclórica. E Ary Barroso era a expressão mais plena da autoconsciência técnica e poética da música popular brasileira, no auge da era do rádio.

MODERNIDADE Nenhum desses autores coincidia inteiramente com o ideal de modernidade da era JK, apesar da popularidade de que ainda gozavam. É como se João Gilberto, em plena febre desenvolvimentista, fosse procurar uma modernidade um pouco mais recuada, que já estava lá, e que, por sua vez, era baseada na releitura de uma tradição ainda mais antiga. O momento-chave, a meu ver, é a inclusão de “Aos Pés da Cruz”, de Marino Pinto e Zé Gonçalves, em seu primeiro álbum, “Chega de Saudade”. Se o público-alvo da bossa nova fosse apenas a classe média esclarecida da zona sul, como reza uma sociologia apressada, essa canção de versos católicos, carolas de tão recatados (apesar da citação de Pascal na segunda estrofe), ficaria deslocada. Por outro lado, talvez em nenhuma outra faixa do disco se torne mais evidente a capacidade do violão de João Gilberto de desmontar, analisar e remontar na hora, no próprio ato de executá-la, a estrutura harmônica de uma canção -justamente porque, provavelmente, essa era a melodia que menos se dispunha a isso. A bossa nova (Tom Jobim especialmente) gosta de formas musicais um pouco envelhecidas (modinha, valsa), e o estilo despojado e delicado de seus intérpretes talvez deva mais à maneira de os compositores de samba apresentarem suas canções em volta de uma mesa de bar ou num terreiro do que ao jazz de Chet Baker.

PASSADO DISSECADO Mas João Gilberto parece ir mais fundo, se alojando inteiramente numa dimensão da memória e extraindo dela as características de seu estilo inovador.Os acordes de seu violão não são novos por aparecerem como experimentação, mas por emergirem de um passado dissecado, levado à essência, revalorizado. As melodias já existem, trata-se de descobrir as harmonias delas.Não deixa de ser revelador que só haja uma canção americana entre as gravações dos primeiros anos, “I’m Looking over a Four-Leaf Clover” (“Trevo de Quatro Folhas”), e é uma composição antiga, de 1927, que se popularizou na década de 1930 pelos “cartoons” das “Merrie Melodies” – enfim, quase uma melodia infantil.O paradigma de “Chega de Saudade” insere, na projeção do país do futuro, uma modernidade que vem de trás. No fundo, é nesse momento, a partir do corte e da recuperação que a bossa nova opera, que se define o conceito de samba clássico e que a música popular brasileira começa a ter propriamente uma história. O curioso, no caso de João Gilberto, é que a descoberta da história comporta uma suspensão da história, a criação de um espaço mágico em que tudo é moderno ou pode sê-lo, e não há hierarquia. Provavelmente, se não houvesse “Aos Pés da Cruz” em “Chega de Saudade”, não haveria “Coração Materno” em “Tropicália”. Mas “Coração Materno” desempenha em “Tropicália” um papel muito específico, nas antípodas, por exemplo, de “Bat Macumba”. “Aos Pés da Cruz” tem, em “Chega de Saudade”, o mesmo estatuto que “Desafinado”. As canções estão à mão, como objetos num quarto, num dia de feriado. Podem ser pegas a qualquer momento, manipuladas por um tempo indefinido, deixadas de lado de repente. Não são trabalho, muito menos espetáculo.

CONSUMO A década de 1950, e sobretudo os últimos anos, marca a transição da estética industrial da primeira metade do século 20 a outra, baseada no consumo. Como todos os momentos de transição, esse também abre espaços inesperados de liberdade ou, melhor dizendo, de felicidade. Já se viraram as costas às fábricas, mas ainda não se entrou no circo. E ainda não se sabe que o circo implica, ele também, exploração, regras rígidas, assentos numerados. A nova modernidade parece fluir sem esforço e, por isso mesmo, se parece com uma situação pré-moderna, não sistêmica, comunitária. Talvez o novo sempre tenha algo de primitivo. Mas o que se instaura nessa fase não é o primitivo selvagem das vanguardas históricas, que sugeria ruptura e revolução. É um primitivo doce, quase infantil, que sobrevive nos pontos mortos e nas horas vagas.
É uma utopia recorrente na época: quando as máquinas assumirem todas as tarefas, as hierarquias de valores vão se inverter. Tudo aquilo que é irrelevante passará a ser fundamental, porque é a outra face da vida, que o trabalho não contempla. Isso vale para o “nonsense”, o tempo perdido, uma inflexão de voz que não pode ser quantificada e repetida, um sentimento que não visa à extroversão. Vale para tudo aquilo que é para nada.
Por alguma razão, o ideal brasileiro de modernidade se identificou com essa utopia de maneira mais profunda e persistente do que em outros países. E João Gilberto é sua mais perfeita expressão, inclusive pela teimosia em ficar nesse lugar indefinido -fora da fábrica, mas não dentro do circo.

MILES Contraprova. Se não tivesse morrido em 1991, Miles Davis faria 85 anos 15 dias antes do aniversário de João Gilberto. Em 1959, o mesmo ano de “Chega de Saudade”, lançava “Kind of Blue”, que muitos consideram o mais importante disco de jazz já gravado. Miles Davis já fora responsável por outras revoluções: com seu mítico quinteto (ele ao trompete, John Coltrane ao saxofone, Red Garland ao piano, Paul Chambers ao baixo, Philly Joe Jones na bateria), praticamente inventou o cool jazz. Com Gil Evans, revolucionou o estilo das big bands. No campo da música popular, a transição que tentei descrever tem nele seu maior protagonista. Nesse processo, contudo, “Kind of Blue” representa um ponto de volta, principalmente pela adoção sistemática da harmonia modal, que já experimentara ocasionalmente nos anos anteriores. Na harmonia tonal, a sequência de acordes é construída para “resolver” em determinadas notas, que são os pontos de apoio e de repouso da composição. Na harmonia modal, não há pontos de apoio privilegiados, as sequências não são direcionadas. Os acordes formam estruturas que permanecem, por assim dizer, em suspensão. A primeira faixa do disco, “So What?”, baseada em apenas dois acordes, é o manifesto de quase todo o jazz e de muita música popular que estava por vir. Mas o modalismo não é apenas pós, é também pré-tonal: permite aproveitar todo o material de tradições étnicas ou populares não atingidas pela técnica tonal ocidental. Por um lado, a atitude e as inovações de Miles Davis faziam com que o jazz ultrapassasse o virtuosismo “operário” que ainda marcava a geração anterior (até nos maiores: Charlie Parker e Dizzy Gillespie) e adquirisse a concentração e a precisão técnica de uma experiência de laboratório; por outro, a partir de “Kind of Blue”, os ritmos hipnóticos, as melodias circulares, os acordes não funcionais faziam emergir uma raiz africana que já não se confundia espontaneamente com o ritmo da produção industrial, como no jazz clássico.

CIENTISTA E XAMàSempre mais, nos anos seguintes, Miles Davis tentou conjugar a alta tecnologia e o transe, o laboratório e a tribo, reivindicando para si, ao mesmo tempo, o papel do cientista e o do xamã. Mas a conciliação, nesse caso, não era tão fácil -aliás, talvez fosse irrealizável. Não havendo síntese possível no presente, era necessário apontar para o futuro, se colocar sempre um pouco mais além. Miles Davis é condenado a abrir caminhos, a estar sempre quilômetros à frente, “Miles Ahead”, como reza o título de um álbum de 1957: como em “Bitches Brew” (1969), que inaugura o jazz fusion, ou em “Tutu” (1986), onde Miles contracena com apenas um músico (Marcus Miller) e uma floresta de sintetizadores. Mas todas essas gravações geniais, no fundo, apenas comentam e desdobram a intuição fundamental de 1959, a interrupção do fluxo do tempo pela síntese de dois acordes em que futuro e pré-história parecem coincidir por um instante. E, por um instante, não parece haver problema – so what?
Certamente, João Gilberto nunca teve a ambição de Miles Davis. Nunca se sentiu dilacerado entre um futuro inalcançável e uma raiz perdida. Para ele, um violão acústico é moderno o bastante, e as raízes estão bem aí, na Bahia, nos sambas um pouco envelhecidos, nas “Merry Melodies”. Porém, fechando-se nesse microcosmo, conseguiu encontrar um ponto de equilíbrio igualmente perfeito, e dedicou a vida a preservá-lo. Na história do século 20, o fim da década de 1950 foi um dos períodos mais criativos, e não apenas no campo da música (“Acossado” de Godard, por exemplo, esta outra ode ao tempo parado, também é de 1959).Quase todos os movimentos artísticos posteriores nascem naquela época, naquele momento de suspensão que talvez ainda não tenhamos entendido plenamente -como se então a solução estivesse à mão, mas a deixamos escapar. Miles tentou reencontrá-la pelo resto da vida, sempre mais à frente. João permanece perto dela e se recusa a sair dali. Mas o tempo passa, em todo caso, e as memórias se tornam sempre mais longínquas, as celebrações sempre mais engessadas e automáticas. Talvez a melhor maneira de comemorar -se é que se pode comemorar uma vaga sensação de perda- fosse dar plena vazão às perguntas que há certo tempo rondam por aí: o que foi do jazz? O que será da canção?

Discoteca Brasílica – Pandeiro, Brasil

Não me lembro do autor da declaração, mas lembro que foi durante o Rock’n Rio I. Ao ser perguntado sobre quem ou o que mais o impressionara no festival, uma estrela qualquer de uma grande banda qualquer respondeu : a grávida e o satriani. Estava se referindo a Baby (na época Consuelo) e Pepeu Gomes, que haviam tocado na noite de abertura (possivelmente foi David Coverdale ou John Sykes, ambos do Whitesnake que tocou no mesmo dia; sendo o primeiro ex-integrante do Deep Purple, do qual o virtuose da guitarra Joe Satriani também fez parte).

É conhecida a história da amizade de João Gilberto com os Novos Baianos, cheia de histórias incríveis, como a de João ensaiando dentro do armário para fugir da balbúrdia daqueles garotos. Moraes Moreira conta que uma noite passeava com João quando viram uma mulata descendo o morro, e João comentou: lá vem o Brasil descendo a ladeira. E Moraes gostou.

Em 2007, a Revista Rolling Stone Brasil fez uma lista dos 100 mais importantes/melhores álbuns de música brasileira de todos os tempos. Não, não ligo para listas, mas não acho estranho que tenha dado Acabou Chorare na cabeça (os dez primeiros comentados aqui, a lista completa aqui) Acabou Chorare (1972) transita num Campo Grande que vai de João Gilberto (faixa título) até Jimi Hendrix e Janis Joplin (Tinindo Trincando), puxado – simplificando um bocado – para um lado por Moraes, e do outro por Pepeu. O que não significa antagonismo, mas encontro. Vale a pena pegar um pouco do artigo de Marcus Preto:

Depois de um primeiro disco semitropicalista, um tanto psicodélico e essencialmente roqueiro gravado em São Paulo (É Ferro na Boneca, de 1970), a trupe se mudou de mala e cuia para o Rio de Janeiro e por lá se instalou. Luiz Galvão, letrista dos Novos Baianos, conhecia o pai da bossa nova desde a adolescência em Juazeiro e retomou o contato assim que pisou na Cidade Maravilhosa. Por algum motivo inexplicável, João se identificou com a turma de hippies e logo começou a freqüentar o, digamos, “alojamento” onde eles moravam. De cara, apresentou ao grupo um samba que, mal sabiam eles, se tornaria a peça-chave da transformação sonora que viria em 1972. Brasil Pandeiro foi composto nos anos 40 por Assis Valente especialmente para Carmen Miranda cantar, e fez quase tanto sucesso na época quanto faria trinta e poucos anos depois. A indicação do samba antigo vinha com um recado mais profundo: “Voltem-se para dentro de vocês mesmos”, disse João Gilberto ao grupo. Sob essa brutal influência, Acabou Chorare foi composto e gravado.

Brasil Pandeiro, na verdade, é exatamente de 1940. Aquarela do Brasil, de que tratei aqui, é do ano anterior. Ambas compartilham um contexto política comum, dentro da política norteamericana da boa vizinhança, que provocou a criação do Zé Carioca, avô das ararinhas azuis do desenho Rio. A este interesse americano, somado a investimentos que fizeram Getulio Vargas, depois de muita hesitação, entrar na Guerra contra a Alemanha e não a favor, correspondeu um movimento brasileiro de expansão, materializado na política econômica de substituição de importações que forjou nossa indústria, e na exportação de nossa cultura especialmente embalada para consumo yanque. Mais tarde, Carmen teve de rebolar para provar que não voltara americanizada – mas, sintomaticamente, não quis gravar Brasil Pandeiro, que acabou fazendo sucesso nas vozes dos Anjos do Inferno. A Aquarela de Ary já nasceu composta como um cartão de visita, um desses passeios que hoje se compra nas agência de viagem com as milhas do cartão de crédito em que se conhece a Europa em três dias.

Mas Brasil Pandeiro rompe sutilmente este coro de contentes. Se por um lado trai uma certa euforia ufanista pela atenção estrangeira dispensada ao país, considerando-a um sintoma de que “a hora chegou”, é por outro lado uma resposta à visão estrangeirizada de Ary Barroso. Enquanto ele exalta a natureza, Assis fala de gente o tempo todo: Salve o Morro do Vintém! A macumba que ele convoca não é para turista. Há uma certa ironia, especialmente na primeira parte: Eu quero ver o tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar pode significar um desejo ou um desafio. E, se o samba de Ary era quase estilizado (talvez para ficar mais fácil de sambar), já o de Assis era samba mesmo, que do recôncavo (ele era de Santo Amaro) vai parar na gafieira.

Brasil Pandeiro – Anjos do Inferno (não deixa de ser uma coincidência engraçada que os nossos Hell’s Angels tenham gravado esta música)

Aliás, Assis Valente faz referência explícita a esta estilização do samba para turista, ao dizer: Há quem sambe diferente noutras terras, noutra gente, num batuque de matar. Porém, logo a ironia fica em segundo plano, e Assis parece querer mostrar como fazer um samba exaltação que não seja para consumo externo. Por isso, assume o próprio Brasil como seu interlocutor. A melodia na primeira parte fora fortemente sincopada e com pequena extensão. Na estrada da segunda parte, o caráter melódico se acentua, ainda na região grave – O que há então é uma invocação, quase espiritual – Batucada, reuni vossos valores, pastorinhas e cantores, expressão que não tem par. É a preparação para a explosão final, subitamente saltando ao agudo no quase grito de Brasil! E aí a celebração finalmente tem início, é festa.

Na gravação dos Anjos do Inferno, esta leitura que fiz da composição fica pouco nítida, sob um arranjo convencional e intervenções de coro (afinal, era um grupo vocal) que eram, elas mesmas, copiadas de grupos americanos. Mas nesta, deve ficar mais perceptível.

Novos Baianos

A gravação dos Novos Baianos traz em si toda esta discussão entre o samba para americano e o rock para brasileiro. Pepeu ouvia Jimi Xendrix, Baby ouvia Janis Joplin, e ambos caíram no samba, com Pepeu tocando craviola – instrumento brasileiro, espécie de violão de 12 cordas criado por Paulinho Nogueira. A gravação de Brasil Pandeiro que abre Acabou Chorare é o suprassumo  daquilo que consagrou o grupo: a capacidade de reunir estas influências tão distintas numa fórmula incendiária. Mais da metade da música é cantada por Baby, Morais e Paulinho Boca de Cantor (adoro este nome) apenas com o acompanhamento do violão de Morais, modelo repetido em Preta pretinha, Swing de Campo Grande, Mistério do planeta, A menina dança – ou seja, mais da metade do álbum. Em todas estas, a batucada e as guitarras e o baixo entram só mais adiante. As exceções: Tinindo trincando, que, conforme o nome indica, já começa a toda, eletrificada; a maravilhosa Besta é tu, que começa a toda, mas no sambão; e a faixa título, no extremo oposto, uma bossa-nova algo surrealista, composta sob inspiração direta de João. E o tema instrumental Um bilhete para Dadi, apresentado duas vezes: uma com regional, outra com o power trio d’a Cor do Som, conjunto formado a partir dos Novos Baianos.

O que quero dizer com isso? Que o substrato, o chão sobre o qual caminham as canções, é o samba, e eles fazem questão de deixar isto claro. E sobre esta base, cabe a batucada empolgante e cabem os solos de guitarra, ou o violão de aço tocado como guitarra, cabe o desvario vocal de Baby (que também sabe cantar contido, diga-se). O caminho percorrido pelos Novos Baianos ao cantar, por conselho de um baiano mais velho, a canção de outro baiano mais velho ainda, foi repetido mais tarde de diversas maneiras por diversas outras turmas: o caminho que permite à música brasileira se renovar trazendo para si elementos de qualquer lugar sem necessariamente se descaracterizar, ao contrário, se reafirmando e renovando.

Assis Valente suicidou-se, desesperado e afundado em dívidas. Já tentara se atirar do alto do Corcovado – a queda foi amortecida pelas árvores. Agora, apenas sentou num banco de rua e tomou veneno. Em seu último bilhete, pedia ao amigo Ary Barroso que pagasse por ele dois meses de aluguel em atraso. Por um lado, a diferença entre o êxito (inclusive) financeiro de Ary e a trajetória de Assis poderia indicar que a estética para turista da boa vizinhança vencera a parada.  Mas a amizade entre os dois indica o inverso: a dicotomia é falsa, transitória, e a música brasileira encontra seus caminhos, como o rio descendo para o mar. Provavelmente, Ary e Assis sabiam disso, no fundo. Os Novos Baianos foram apenas mais alguns que provaram isso, mas o fizeram com catiguria. Uma gente bronzeada mostrando o seu valor, e o de um mulato Valente, para a turma do Whitesnake e para a mulata descendo a ladeira, nos terreiros e no palco do Rock in Rio.