Jesus, o samba

Dizem que Jesus morreu na cruz
Mas eu tive com ele na Dutra, em Queluz
Levava na cabeça um tabuleiro de cuscuz
Cocada de céu, cocada de luz

O início do  samba condomínio Jesus (os autores são Cabelo, Beto Valente, Dado, Montanha. Pedro Luís, Gusval e Lucas Monteiro) diz imediatamente a que vem: dessacralizar o mais possível a figura distante do Messias, o Salvador, o Cristo, etc. Jesus é do álbum Vagabundo, feito em conjunto por Ney Matogrosso e Pedro Luís e a Parede, de 2004, e voltou no álbum ao vivo correspondente. A escolha de uma canção como esta é a cara de Ney, iconoclasta como ele só. Apesar de Pedro Luís estar entre os autores, a música parece uma daquelas que Ney pinça de autores totalmente desconhecidos em seus trabalhos.

À primeira audição, (e as seguintes também), Jesus não tem direção, é uma sucessão de gags amarradas (em nome de Jesus, naturalmente) pelo refrão que é ao mesmo tempo uma invocação. A letra parece ter sido feita na base da associação livre de idéias, e consegue alguns momentos verdadeiramente hilariantes, como quando afirma que Jesus andou sobre as águas como o consagrado surfista Jojó de Olivença ou quando saúda conjuntamente Chico Science e Chico Xavier. A referência na construção da canção parece ter sido a de Jorge Benjor, (atenção para o Salve Simpatia na abertura) em composições como Chica da Silva e Os Alquimistas estão chegando os alquimistas, em que um refrão forte intercala estrofes que desenvolvem o assunto de modo que parece improvisado de tão espontâneo. Aliás, a invocação do refrão é ironizada na própria música: Pneu furou, Jesus / Vestibular, Jesus. Como no outro samba, de Almir Guineto, Deus já deve estar de saco cheio

E não há mesmo muito espaço para sutilezas. A parede sonora que deu nome ao grupo de Pedro Luís é de uma sonoridade muito trabalhada, mas cujo impacto casa à perfeição com a música, o que por vezes chega a dispensar a melodia, passando-se para o puro discurso. Depois de diversos trocadilhos infames e referências religiosas enviesadas – como relacionar São Francisco pregando aos peixes com a pesca milagrosa e esta com o fenômeno da piracema, vem da boca de Pedro Luís a, digamos, justificativa teórica da canção:

Nós Vamos tirar Jesus da cruz porque o rapaz tá pregado naqueles pedaços de pau há mais de 2000 anos, vamos deixar ele com os pés e as mãos livres que ele vai pular, dançar, virar cambalhota e fazer muito melhor, mas é muito melhorrrrrr!

Quer dizer, Pedro e Ney fazem aqui o que renovações carismáticas e movimentos Deus é Dez tentam há tempos, pintar uma imagem de Jesus que seja palpável e tridimensional, com a cara de um sujeito não se acha em qualquer lugar, mas de repente passa por você na esquina. Eu não sei vocês, mas este Jesus realmente me agrada muito mais. E no fim, a série de saudações díspares se unifica no critério: gente do bem, plural, e da paz. Paz na Terra a todos os seres, clama Ney Matogrosso. E salve a agricultura celeste!

Jesus – Ney Matogrosso e Pedro Luiz e a Parede

Bossa-Nova Totalflex

Uma vez fui parado no Largo da Carioca por uma equipe de reportagem do programa Afinando a Língua, que é apresentado pelo Tony Bellotto no Canal Futura. O programa não é exatamente dedicado à música, antes usa letras musicais para estudar a língua portuguesa. A pergunta que me fizeram: se eu já havia aprendido uma palavra nova ao ouvir uma canção, e qual.

Não sei se a resposta que dei chegou a ser aproveitada. Mas a pergunta serviu para fazer ali mesmo um paralelo de que gostei. Lembrei de Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça, em que se canta:

Fotografei você na minha RolleiFlex
Revelou-se a sua enorme ingratidão

Não tinha a menor idéia do que seria uma RolleiFlex, uma câmera fotográfica profissional e sofisticada,  quando conheci a música. Anos depois, soube também das circunstâncias em que esta música foi composta, como resposta aos críticos da nascente Bossa-Nova, e que Tom e Newton riam às gargalhadas dos versos “mudernos” que iam criando, este em particular.

Anos depois, ouvi Navilouca, do primeiro álbum de Pedro Luís e a Parede, em que ele canta:

Fotografei você na minha DragoFlex
De olhar aceso esperando por mim

Pronto, embatuquei de novo, até descobrir que se tratava de um tipo de cama dobravel, feita de armações de metal, molas e cobertura de lona.

Esta foi a resposta que dei. Agora, se foi aproveitada, talvez tenha sido possível perceber uma sutileza da citação do Pedro Luís. No verso original de Desafinado, a RolleiFlex, estando nas mãos de quem fotografa, tem também uma proximidade semântica com ele, sendo um adjunto do sujeito. Já em Navilouca, a DragoFlex está próxima semanticamente (e fisicamente também) à fotografada, e portanto é adjunto do objeto em termos sintáticos. Isto por causa da troca de metade de uma palavra. E acompanhando a análise sintática, a narrativa amorosa também se inverte: de Bossa-Nova de desencontro amoroso, ainda que farsesca, converte-se em promessa de encontro.

Como também Pedro Luís promove diversos encontros nesta canção, tocando bossa na guitarra, colocando no título a revista de poesia fundada por Torquato Neto e Wally Salomão, que teve um único número que Torquato não chegou a ver – suicidou-se antes. Na letra, na melodia, no arranjo, na interpretação que sobe uma oitava e passa ao grito na segunda vez, Pedro Luís faz da Bossa-Nova pedra rolando. Se o Tony Bellotto se interessar, fica a dica.