Os dez mais

Dessas correntes de rede social: Poste seus 10 álbuns favoritos de todos os tempos; que de fato te impactaram e ainda estão na sua lista de audição, mesmo que ocasionalmente. Poste a capa, sem maiores explicações. Postei. Mas quem resiste a dar explicações? O resultado é esta lista bastante pessoal, de dez álbuns que mudaram minha escuta – não necessariamente os melhores nem os que mais escuto, mas aqueles dos quais saí diferente, para o que pode ter contribuído tanto sua qualidade e novidade quanto meu estado à época… De todo modo, continuam para mim extremamente interessantes, em alguns casos depois de décadas, o que quer dizer alguma coisa, e quem sabe servirão também a quem me lê. São eles então:

1- Os Saltimbancos – Chico Buarque. O disco para crianças mais inteligente já feito. Chico (na verdade os autores italianos, mas onde eles dizem mata Chico diz esfola) toma a fábula dos músicos de Bremen, da Floresta Negra alemã, e a põe no cenário da ditadura brasileira, sugerindo mesmo que os militares (o cão) voltem para a caserna (!). Criança, ouvi até furar, decorando as falas e até os pulos da aguulha. Ao longo dos anos, aprendi com ele a fazer segundas e terceiras leituras da obra de arte, desde direitos dos animais até a leitura marxista, de luta de classes. Suas vozes são as de Miucha, Nara Leão e de meio MPB-4, nitidamente se divertindo muito. E ainda ganhou uma espécie de continuação anos depois, na trilha sonora dos Saltimbancos Trapalhões, não por acaso o melhor filme do quarteto.

2- Us – Peter Gabriel. A síntese mais completa do tão desgastado termo world music. Para começar, um time de monstros (para ter uma ideia, Sinead O’Connor faz backing vocal em duas faixas, e o encarte traz uma lista de músicos de cair o queixo cujas gravações não foram aproveitadas na mixagem final) e um festival de texturas inéditas para mim. Peter Gabriel aproveita o aprendizado que teve fazendo a trilha sonora de A última tentação de Cristo, filmaço de Martin Scorcese, e traz para suas canções irrepreensíveis timbres orientais, ritmos africanos e tecnologia de gravação, tudo junto e misturado, sem embolar nem desandar. Mas mais importante é que tudo está a serviço da maravilhosa sonoridade final.

3- Brasil – João Gilberto. O resumo da música brasileira em meia hora. A presença deste álbum como que me desobrigou de colocar quase qualquer outra da chamada MPB, tamanha sua capacidade de sintetizar tanta coisa, está tudo aqui. Tom Zé, no seu livro Tropicalista lenta luta, afirma em um artigo que as canções cantadas por João dobram a esquina da história. E prossegue, comparando João com Einstein – ou mais apropriadamente, a Bossa-Nova à Relatividade:

Esquina onde o que parece um passo passa do ano-luz. Então, João não é nada. Só a esquina. Fiquem com todas as honras. A ele, a esquina. Ele é a gravidade que impõe à reta da luz um ângulo de 90 graus.

E em outro texto, arremata: João abre a porta da quarta dimensão. Este álbum é um portal para esta dimensão, em que o Brasil da utopia se realiza e é feliz. Além do repertório fabuloso, da orquestração deliciosa, o João está na sua melhor forma. Mas o melhor é que o disco é uma aula, literalmente, e Caetano e Gil (e Bethânia numa faixa) são os alunos, repetindo obedientes as lições que João lhes passa. Inesquecível.

4- [Símbolo] – Prince. Último álbum antes dele trocar o nome pelo símbolo que é o nome do disco, sobreposição dos símbolos masculino e feminino, com uma trompa. Este não é seu álbum mais revolucionário, mas também não é do da maturidade de Musicology, mais homogêneo. Ao contrário, aqui Prince está endiabrado e a New Power Generation Band está em ponto de bala. Ele atira para todo lado e não erra, e na contracapa as canções são chamadas de jams. Tem desde hits radiofônicos até suítes amalucadas, com dois rappers incorporados à banda. E como se não bastasse, é uma aula de orquestração. Até canções singelas de amor terminam com solos de guitarra sobre metais furiosos – e funciona. Sua auto elogio está à toda: Meu nome é Prince, primeiro e único (…) No início, Deus fez o mar / Mas no sétimo dia ele me fez / Ele estava tentando descansar quando ouviu um som / Parecia uma guitarra (…) Deus estava preocupado, até que me ouviu cantar. Entendeu?

5- Õ Blesq Blom – Titãs. Sou legiomaníaco e quase escalei o I ou o V aqui. Mas não dá pra negar que os Titãs foram o que de melhor o rock brasileiro produziu. Hoje são uma sombra do que foram, mas conseguiram levar para a música popular e jovem algumas das vertentes artísticas contemporâneas, sem perder a pegada nem o público. Assisti o show do Rock in Rio II no Maracanã, logo após o lançamento deste álbum, e a comunhão com a platéia era bonita de se ver. Este disco tem de tudo que os Titãs fizeram de melhor: tem poesia concreta, crítica social não óbvia, metalinguagem, nonsense, e é inesperado a cada faixa. Não é um disco de rock, é um disco que deixa o rock para trás.

6- Remain in Ligth – Talking Heads. O encontro entre o David Byrne e o Brian Eno, e deveria ser suficiente dizer isso. Na verdade o terceiro encontro, já que é o terceiro álbum da banda produzido por ele. Mas este é fora do comum, um encontro perfeito também entre forma e conteúdo. Nunca as canções de David, obra primas do estranhamento do mundo (esta não é a minha bela casa. Esta não é a minha bela esposa!), fizeram tanto sentido junto às tessituras sonoras de teclados e levadas inesperadas (haviam conhecido Fela Kuti pouco antes). É um disco para desreconhecer a realidade. Os timbres deste álbum são um mistério para mim até hoje. Ouço, reouço e não consigo decifrar. Que maravilha!

7- Clube da Esquina – Milton Nascimento e Lô Borges. Falta um disco que simbolize a Tropicália nesta lista, por não haver nenhum específico que mudou minha audição (poderia ser Estrangeiro, que talvez fosse o décimo primeiro dela). Mas na falta dele, este aqui passa a ter uma dupla função, por ser aquele que traz o rock para dentro da música brasileira de uma forma ainda mais orgânica que os baianos (e dando a deixa juntamente com eles para os nordestinos logo após). Fora isso, uma coleção de canções atemporais, incluindo a que mais me meteu medo a vida toda (vide abaixo), e ouvir os amigos se revezando nos instrumentos, Beto Guedes no baixo, na guitarra, no bandolim, os outros outro tanto, é também algo para abrir o ouvido. Esqueça o tanto que este disco já tocou e escute-o novamente sem pé atrás. Vai se surpreender.

8- Álbum Branco – Beatles. Sargento Pimenta era minha primeira opção, um tanto óbvia: qual ouvido ele não arrombou? O Branco o venceu por uma cabeça, ou melhor, faixa: Revolution 9 me mostrou até onde pode ir a música popular muito além do que eu nunca imaginara. Mas é claro que não apenas de anticanções vive-se. Fora isso, é um disco em que a maior banda do mundo se leva pouco a sério, o que é genial. “Todo mundo tem algo a esconder, menos eu e meu macaco!” É preciso coragem para dizer isso, a coragem de não ser profundo. E é preciso ter subido muito alto para se dar o direito de não se levar a sério assim, e justamente por isso fazer uma música que realmente diz coisas novas, sem se preocupar em ser revolucionário. Você diz que quer uma revolução / Bem cê sabe, adoraríamos mudar… sua cabeça.

9- The Red Shoes – Kate Bush. OK Computer, do Radiohead, passou perto aqui, assim como Bjork. Mas a coesão alada à inventividade e a variação entre suavidade e potência da Kate são imbatíveis. Este álbum veio depois de um longo hiato e dá pra sentir a gana dela de voltar à ativa. O repertório flui tão redondo que participações do Eric Clapton e do Prince são como visitas de amigos (nada de featuring). As experimentações de álbuns anteriores aqui estão domadas e inteiramente a serviço – o que não as deixa de lado, antes pode potencializá-las. A mulher é uma fada mas também sabe ser uma bruxa quando preciso, e como sabe contar uma história.

10- Chico Buarque (1984) – Chico Buarque. A escolha mais pessoal da lista, talvez um anticlimax para o leitor que esperasse algo muito arrojado como chave de ouro. E realmente não é um disco particularmente inovador, especialmente sendo Chico Buarque antes um mestre de ofício, dos que perfeccionam a forma, que um iconoclasta. Acontece que este é o primeiro LP que comprei, com 13 anos, e nele descobri um mundo, desde os arranjos que nunca ouvira com aquela atenção (algo de maturação dos neurônios na adolescência talvez…), como também pelas participações de outros músicos e cantores, me apresentando pistas que fui seguindo – Pablo Milanés, Francis Hime, Dominguinhos, e perceber as diferenças entre o violão de Toninho Horta e o de João Bosco… e como se não bastasse, em plena redemocratização, canções como Pelas Tabelas e a imortal Vai Passar – para não falar de Brejo da Cruz – foram um ensino médio de política para mim, onde os Saltimbancos tinham sido o fundamental. Foi o álbum a partir de que descobri o mundo. Podia ter sido outro, calhou de eu ouvir JB AM e passar na frente das Lojas Americanas, calhou de ter 13 anos, calhou de ser brasileiro… mas veja se não foi um bom começo.

Como se faz um hino, e depois se esquece

Qual foi a última vez que você ouviu Coração de estudante? De repente me dei conta de que não a escutava há anos. E no entanto é uma canção que continua entranhada no nosso imaginário. Assim como o tanto que ela tocou e foi cantada por anos, seu silêncio hoje também me parece muito significativo.

Em 1986 eu tinha 14 anos e fazia o solo de flauta doce no arranjo de Coração de estudante no coral de minha escola de ensino médio. Mais inocência, impossível. Ao mesmo tempo que eu, o país saia de uma ditadura de 20 anos, tinha os traumas do adiamento da chance de escolher seu presidente e de um presidente civil morto antes de assumir, e ainda achava que, apesar de tudo, agora tudo seria diferente.

O que aconteceu depois é sabido, e a sucessão de decepções em relação à que era chamada Nova República, sofridas por um país que passou por um processo de amadurecimento à força, fizeram com que Coração de estudante fosse meio que propositalmente, estrategicamente esquecida, como quem reluta em confessar que tocava flauta doce no coral da escola em plena adolescência (e nem peguei ninguém por isso).

Para descobrir os motivos deste ostracismo atual é necessário entender também os motivos de ela ter se tornado o hino que se tornou. Coração de estudante não fala explicitamente em sua letra de absolutamente nada que estava acontecendo em 1983, ano em que foi gravada no álbum Ao vivo de Milton, nem dos anos seguintes. Então o que a levou ao grau de simbolismo que angariou, de ser cantada por um país como a esperança de tempos melhores, mais justos para todos?

A resposta talvez esteja em algumas circunstâncias de sua criação. Coração de estudante é uma melodia de Wagner Tiso com letra de Milton, coisa não muito comum, tipo de parceria que Milton não costuma ter. Ocorre que ela foi criada como um tema instrumental apenas. Eis para que acontecimento e que personagem histórico ela foi criada (a música começa aos 2 minutos, mas vale a pena ver também o princípio):

Coração de estudante não tinha ainda este nome quando foi composta para ser o Tema de Jango no documentário Jango, de Sílvio Tendler. Sua melodia, portanto, foi composta para ser a tradução em música de um momento que é o inverso de quando ela se tornou o que é hoje; nasceu por inspiração de um momento histórico em que o Brasil tinha um sonho muito alto despedaçado, e tornou-se popular e ganhou mundo quando este sonho renascia depois de 20 anos.

Mas o mais impressionante é que também a letra de Milton carrega implícita uma carga de significação que tem a ver com outro momento histórico intrinsecamente ligado ao primeiro: Milton a fez em memória do estudante Edson Luís, morto pela Polícia Militar em março de 1968, cuja morte foi o estopim de uma série de manifestações populares que, pela primeira vez, afrontaram publicamente a ditadura militar.

A reação da sociedade à morte do estudante desencadeou uma sequência de acontecimentos que atravessou a Passeata dos Cem Mil e desembocou no Ai-5. Foi o evento simbólico de um ressurgimento, em que muitas pessoas decidiram que era hora de falar. O resto é História.

Isto então para mim explica o simbolismo que Coração de Estudante assumiu durante a retomada democrática na década de 1980, muito mais do que qualquer característica analisável de sua letra ou de sua melodia. É como se o determinante fosse na verdade o fato de ter sido inspirada, ter retratado ou homenageado dois precisos instantes que são chaves na História recente do Brasil e formam uma linha de continuidade que se completa exatamente na época em que a canção veio a público: 1964, 1968, 1983 (em 84 a campanha das diretas, em 85 a eleição de Tancredo Neves presidente). Como se a canção tivesse ficado impregnada da lembrança destes acontecimentos, como uma mensageira do inconsciente coletivo nacional.

Quando faço a análise de uma canção aqui, sei bem que tudo o que digo é ouvido e percebido por quem ouve a canção. Apenas isto não se dá de forma consciente e racional. Tantas vezes ouvi ou li comentários que dizem é isso mesmo que eu sentia, mas não sabia porque. As características de melodia, harmonia, instrumental, suas relações, todas falam ao ouvinte de forma mais direta que a linguagem discursiva, e vão mais fundo.

Mas em Coração de estudante acho que há algo mais, que não ficou exatamente fixado na forma musical, e sim em algum lugar mais… recôndito seria a palavra? Há algo nela que ecoa, mesmo para os recém-chegados à História, os motivos e os acontecimentos que a antecederam e inspiraram. Coração de Estudante soube ser o hino da redemocratização porque já era, de certa forma, o hino das reformas de base de 1963 e o hino da contestação à violência da ditadura em 1968, e ao mesmo tempo contém em si a tristeza do golpe de 64 e do Ai-5. Assim como talvez já tivesse, à revelia dos próprios autores, a tristeza das decepções de 1987, 88, 89… Talvez por isso tenha sido deixada de lado como foi.  Não porque tenha se tornado datada, ou porque nos lembre da nossa ingenuidade, mas porque nos lembre não apenas de um, mas de três sonhos que pareceram ser sonhados em vão, e ainda assim tem a coragem de reafirmar, mais uma vez, que é preciso continuar sonhando, mesmo que ingenuamente, em uma época em que isto nem sempre parece fazer sentido, a nos falar tão diretamente dessas coisas tão incômodas, que sempre morrem e insistem em renascer: esperança, coração, juventude e fé.

Meus agradecimentos à Eliana Pichinine pela idéia jogada no Facebook, e ao Chico Furriel, pelas considerações que aproveitei aqui.

Cassia Eller e a diferença entre regravação e releitura

Cássia Eller tinha um monte de qualidades, mas a que mais me chamou a atenção desde sempre foi a sua escolha de repertório. Para um intérprete, saber escolher o que vai cantar é meio caminho andado. A Cássia tinha um estilo e uma sonoridade muito específicos e identificados com o rock, e tinha a capacidade de escolher canções de lá de dentro da tradição da MPB, canções muitas vezes quase desconhecidas – as chamadas “lado B” – que se adaptavam à maravilha a ela, ao mesmo tempo que ela sabia fazer com que suas características pessoais se somassem à música cantada. Em suma, ela nunca gravou uma música só porque a achou linda, e este era seu maior trunfo.

Um grande exemplo disso é exatamente seu primeiro sucesso, a regravação de Por Enquanto, de Renato Russo, faixa que fechava o primeiro álbum da Legião Urbana. Por Enquanto foi composta e gravada dentro de uma atmosfera de desencanto pós-punk que tinha influências fortes de grupos como o Joy Division e sua reencarnação eletrônica, o New Order. Pois Cássia teve a idéia genial de dar-lhe um tratamento bluesly que a deslocou no tempo e no espaço, e a recontextualizou totalmente. A tristeza que era geracional assumiu um referencial mais de um século mais antigo, e cada uma de suas frases ganhou novas possibilidades de significado. Mas o mais interessante é a capacidade de Cássia de cantar a canção como um blues sem soar forçado, já que o blues tem fraseados e harmonizações específicos (e aí a o timbre vocal da Cássia ajudou muito). Enxergar esta possibilidade de releitura real, mais do que regravação, é algo que separa intérpretes de cantores.

Por Enquanto – Legião Urbana

Por Enquanto – Cássia Eller

Cássia abriu seu segundo álbum, O Marginal, de 1992, com uma música de Beto Guedes e Márcio Borges que nada lembra as canções suaves dele que tocaram em rádios, como Sol de Primavera:

Caso você queira saber – Beto Guedes (1973)

A primeira gravação de Caso você queira saber é de um obscuro álbum gravado por Beto Guedes, Toninho Horta, Danilo Caymmi e Novelli. Como quase todos os álbuns do Clube da Esquina desta época (o primeiro de Lô Borges é outro exemplo), foi feito de forma cooperativa, como os amigos se revezando nos instrumentos, de forma que quase todos tocavam tudo. Basta dar uma olhada em quem tocou o que nesta faixa:

Beto Guedes: Voz, violão e bateria
Flávio Venturini: acordeon
Frederiko: guitarra
Lô Borges: baixo elétrico
Maurício Maestro (líder do grupo vocal Boca Livre): percussão
Novelli (notável baixista): percussão
Toninho Horta: percussão
Vermelho (integrante do 14 Bis): órgão

Dois anos depois, com a participação do próprio Beto Guedes, Milton Nascimento fechou seu álbum Minas com esta faixa.

Caso você queira saber – Milton Nascimento e Beto Guedes (1975)

É de se notar como a gravação de Milton radicaliza a sonoridade de rock progressivo que a primeira trazia, desde a introdução com guitarra, enquanto que na de Beto Guedes o violão é preponderante, com fraseados típicos de viola caipira, numa levada ternária que vai entre um congado e uma moda de viola.

(por sinal que recomendo o excepcional estudo sobre o Clube da Esquina como movimento feito por Ivan Vilela, violeiro e pesquisador, aqui).

E então Cássia Eller se apossou da música.

Caso você queira saber – Cássia Eller

À primeira audição, parece óbvio o que Cássia fez: tomou uma canção de temática feroz passando-a para o universo do rock, ou melhor, escancarando esta relação que já havia. É isto, mas é mais, por um detalhe: Cássia passou a canção do universo do progressivo para Jimi Hendrix (e ela gravou duas músicas do Hendrix no mesmo álbum). Esta escolha não é casual, pois assim ela pôde capitalizar esta fúria na interpretação. explicitando-a de maneira muito mais clara. Ou seja, em que pesem as qualidades instrumentais de cada um, o arranjo da gravação dela, em tese, é o mais “adequado” em sua relação com a canção. Por outro lado, grande parte do interesse que as duas outras gravações despertam vem justamente do estranhamento que fica entre a levada próxima da música regional e a temática terrível. Ou seja, ao trazer a canção para um elemento mais familiar, Cássia corre também o risco de torná-la mais comum.

Cassia compensa este possível perda de densidade com sua interpretação. A melodia angulosa de Beto Guedes é muito ressaltada nas duas primeiras gravações pelo fato de ser cantada em ritmos bem marcados. Cassia segue o caminho oposto. Por cima da marcação firme do trio guitarra/baixo/bateria, ela se permite cantar a melodia com variações no tempo que a aproximam da entonação falada. A densidade que havia no contraste arranjo/canção passa para a voz – é como se ela chamasse a responsabilidade para si, e a aproximação de sua interpretação com a voz falada, sem perder nada do desenho da melodia, mas transformando-o em ênfase em frases como eu não quero nada com seu riso indecente!, impede que a canção caia numa zona de conforto que a tornaria insípida.

Estes são dois exemplos de como Cássia Eller sabia como trazer uma canção para o seu universo, o que implica, necessariamente, numa compreensão profunda da canção em si. Atributo raro. Com tantas cantoras por aí, esta é um exemplo de como fazer um repertório de canções alheias não apenas com coerência, mas com uma vivência pessoal (quem ouviu Cássia abrindo seu Acústico MTV com Je ne regrette rien, do repertório de Edith Piaf, sabe do que estou falando) que se soma a cada canção e dá ao todo uma cara, uma personalidade, que é maior que cada um de seus elementos.

Milton e o Eterno Retorno da Melodia – o Tema de Cais

Cais é a segunda canção do álbum Clube da Esquina I, de 1972, parceria de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. Além da canção propriamente dita, ou tão importante quanto ela, o tema apresentado ao piano pelo próprio Milton no fim da faixa tornou-se emblemático.

Cais – do álbum Clube da Esquina I

O tema se apoia em um intervalo dissonante de segunda maior martelado na mão esquerda, enquanto a direita, e depois a voz, traçam a melodia. Não é apresentado inteiramente, mas decai em fade.

O tema retorna no mesmo álbum, numa das faixas finais, Um Gosto de Sol. Continua baseado no mesmo ostinato, mas agora transposto para cordas (o piano soa ao fundo), e é apresentado inteiro, ou seja, com uma segunda parte típica do Milton, em que a harmonia permanece em suspenso como que desequilibrada, para depois voltar com tudo à primeira parte (veja no post anterior).

Um Gosto de Sol – gravação do álbum Milton Nascimento ao Vivo, de 1983, com Gal Costa

A estratégia da reapresentação do tema de uma música inicial em outra música no fim serve para dar unidade ao álbum, e foi muito usada por grupos de rock progressivo da época como o Genesis (veja aqui sobre a relação do rock progressivo com o Clube da Esquina). Mas há algo mais aí.

Em 1978, Milton e Lô Borges gravam o Clube da Esquina II. O álbum já se inicia referencial – um coro à capela canta um trecho de San Vicente, do Clube da Esquina I, antes mesmo da primeira faixa. Mas é na música que encerra o álbum que a ligação se completa.

Que Bom, Amigo – do álbum Clube da Esquina II

Que bom, amigo é uma canção inteiramente construída sobre o tema de Cais. A melodia da canção soa intercalada com a do tema, fazendo um jogo de canto e contracanto. Mas não apenas a óbvia ligação entre os álbuns é reforçada. Há também um jogo de relações entre as três canções.

Cais, em sua letra, narra uma aventura fundamentalmente solitária. “Para quem quer se soltar invento o cais / Invento mais que a solidão me dá”. O piano toca igualmente solitário no fim do arranjo.

Um gosto de sol é acompanhada somente pelo piano. No entanto, ao final (o arranjo de 83 segue o original) as cordas se somam a ele emoldurando o encontro. “Alguém que vi de passagem / Numa cidade estrangeira / Lembrou os sonhos que eu tinha / E esqueci sobre a mesa”.  É o complemento do pensamento, do caminho percorrido solitariamente à descoberta do outro. Seria um bom encerramento para a idéia. Mas Milton volta a ela anos depois.

Com Que bom, amigo Milton consegue dar um passo à frente. O que era um encontro fortuito e de passagem se torna efetivamente uma comunhão. Nesta canção, o tema é indissolúvel da própria composição, sublinhando a letra que repete quase tautológica: “Que bom, amigo / poder saber outra vez que estás comigo / dizer com certeza outra vez a palavra amigo / se bem que isso nunca deixou de ser”. É, agora sim, a celebração do ideal coletivista que caracteriza o Clube e que levou Milton e Lô a convidarem novos participantes para este segundo álbum. O que era um grupo de amigos agora é uma congregação.

Milton sempre afirma que o Clube da Esquina é muito maior que seus participantes originais. Ele seguiu à risca este pensamento tocando com músicos de variadas vertentes – de nomes do jazz a estrelas pop como os grupos RPM e Duran Duran, e apadrinhando cantoras como Clara Sandroni e Maria Rita. Esta diversidade não o impede de ter uma obra profundamente particular. O uso reiterado de temas como os que abordei são uma de suas assinaturas. Um reconhecimento de si e do outro. Um modo de possibilitar o encontro.

Milton e o Eterno Retorno da melodia – O tema de Pablo

Um bocado mais de Milton Nascimento. Especificamente, sobre algo que ele volta  meia faz em suas composições, e que me interessa particularmente, que é usar o mesmo tema instrumental em duas ou mais canções, de diversas formas. Muitos compositores citam a si mesmos, e assim tentam conferir algum tipo de unidade a sua obra. Mas geralmente estas citações se dão na letra, não na melodia, e muito menos nos arranjos. Ao fazer isso, Milton carrega de uma canção para outra significados diversos, agrega em uma a lembrança da outra, mas de forma mais sutil que na citação da letra. Em dois posts, trarei dois exemplos desta técnica. Eis o primeiro.

Pablo é uma canção de 1973. Na verdade, são duas. Pablo I, (a que nos interessa) construída sobre uma base de piano, é uma canção singela de Milton e Ronaldo Bastos em que ele usa um artifício característico: a segunda parte modula para tom menor, e o contraste vai se acentuando até desembocar numa instabilidade harmônica de suspense (aqui reforçada pelas cordas vertiginosas) e voltar ao tom inicial numa espécie de redenção (aqui, com o coro de crianças). A mesma estratégia foi usada por ele anos depois na versão de La Bamba que, com letra, acabou gravada por Maria Rita com o nome A Festa. Por coincidência, A Festa é também o subtítulo da segunda Pablo.

Pablo – Milton Nascimento – versão em inglês do álbum Journey to Dawn, de 1979 (escolhi esta versão em vez da original, do álbum Milagre dos Peixes, por esta ter um arranjo bem mais amadurecido, mas com o mesmo tema no acompanhamento. A primeira gravação, em compensação, é cantada por um menino, o que é um dado importante. Outra coisa: as duas canções Pablo foram gravadas na mesma faixa, emendadas. Isolei Pablo I na edição.)

Em 1993, Milton lançou o álbum Angelus, que à época chegou a ser saudado como um terceiro Clube da Esquina internacionalizado, tamanho o calibre das participações – Peter Gabriel, Herbie Hancock, James Taylor, Pat Metheny, Jon Anderson, Wayne Shorter. Nele, há duas versões da pequena canção – quase uma vinheta – Sofro Calado, dele e de Régis Faria. A primeira aparece bem no meio do álbum, e é exclusivamente arranjada pelas vozes de Milton sobre percussão.

Sofro Calado – primeira versão

Já a segunda, que encerra o álbum, tem como base exatamente o tema de Pablo, tocado ao piano, evocando diretamente as gravações de 1973 e 79.

Sofro Calado – segunda versão

A versão cantada sobre as vozes está em modo menor, o que faz com que o intervalo inicial ascendente da palavra sofro fique também menor. É quase uma blue note, a nota característica do blues que é propositalmente desafinada para baixo. As vozes em falsete de Milton sobrepostas no arranjo são gemidos de sofrimento que sublinham a letra.

A versão cantada sobre o piano está em modo maior, e o plano da retomada do tom que descrevi então é realizado ao longo do álbum, como uma canção dividida estrtegicamente em duas. O álbum em si é “trazido para dentro” da música, sendo posto entre as duas versões. A suavidade do piano original de Pablo, com sua letra de fortes metáforas, sugere a identidade entre as canções, colocando Pablo como a primeira pessoa das duas histórias. O menino que cantou sua própria história em 1973 tornou-se adulto, sofre de amor, mas se consola na infância que continua dentro de si. O sofrimento da primeira gravação ganha uma dimensão de redenção.

Meu nome é Pablo
Como um trator é vermelho
Incêndio nos cabelos
Pó de nuvem nos sapatos
Meu nome é Pablo
Nasci num rio qualquer
Meu nome é rio
E rio é meu corpo
Meu nome é vento
E vento é meu corpo
Incêndio nos cabelos
Pó de nuvem nos sapatos
Como um trator é vermelho
Pablo é meu nome
Meu nome é pedra
E pedra é meu corpo

Para Barret e Waters

Uma vez, faz tempo, folheando uma dessas publicações que contam a história do rock (esta era uma enciclopédia inglesa, em sua edição brasileira), levei um susto ao dar de cara com um capítulo inteiro da parte nacional dedicada… ao Clube da Esquina.

Que o Clube da Esquina já devia muito aos Beatles, não era novidade, em especial pelas mãos de Lô Borges, autor de Para Lennon e McCartney. Mas Minas Gerais foi também terreno fértil para o rock progressivo desde a década de 1970. Grupos como O Terço, que gerou mais tarde o 14 Bis, e mais recentemente o Sagrado Coração da Terra, de Marcos Vianna, conseguiram uma boa projeção (este enveredando pelo terreno da chamada new age). Mas o grupo Som Imaginário, ao acompanhar Milton no álbum Milagre dos Peixes ao vivo, de 1973, foi quem traçou mais fortemente esta relação.

Pelo Som Imaginário passaram nomes e mais nomes da música brasileira – Wagner Tiso, Tavito, Robertinho Silva, Zé Rodrix, Naná Vasconcelos, Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Paulo Braga, entre outros. E sua sonoridade era pautada em grande parte pela corrente musical que abrigava Pink Floyd, Genesis, Jethro Tull, pelas experimentações que estas bandas realizavam procurando sonoridades novas e aliando a um virtuosismo instrumental uma postura (a chamada atitude rock) combativa e contestatória .

Mathilda Mother é uma canção do primeiro álbum do Pink Floyd, The Piper at the Gates of Dawn, de 1967, de autoria de Syd Barret. Importante notar que este álbum foi gravado simultaneamente e no estúdio ao lado de Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, e que houve uma certa troca de informações entre as duas bandas. Isto talvez tenha levado os Beatles ao forte experimentalismo do Sgt. Peppers, e tenha servido para realçar para o Pink Floyd a importância das canções.

Pink Floyd – Mathilda Mother

Bodas é a primeira canção de Milagre dos Peixes ao vivo, que é aberto por Matança do Porco / Xá Mate, sendo a primeira também o nome de um álbum do Som Imaginário. A sonoridade dos instrumentos – teclado, guitarras, até a bateria – segue de perto a do Pink Floyd. Embora seja uma balada, existe uma violência no arranjo que acompanha a descrição sangrenta feita por Milton. Até mesmo a flauta de Nivaldo Ornelas (em outras faixas ele toca sax) encontra correspondência na tocada por Peter Gabriel no Genesis e Ian Anderson no Jethro Tull.

Bodas – Milton Nascimento

Milton diz:

Foi um lance muito interessante, porque eu nunca fui intimista, sempre fui muito aberto. Pelo contrário, eu estive e vivi muito perto do rock, da música pop, o tempo todo. O trabalho com o Som Imaginário para mim foi como se fosse um trabalho de cinema, de teatro… vestimos nossa música com uma roupagem elétrica. Foi uma época importantíssima, muito bonita…

É importante notar uma semelhança entre as duas canções, compartilhada por várias outras do repertório tanto progressivo quando do Clube da Esquina: as referências à realeza como artifício para a crítica política. Na Inglaterra, uma realeza até hoje, as letras remetiam a contos de fada e chegavam ao surrealismo, enquanto aqui elas utilizam referência históricas. Porém, manifestavam um inconformismo comum aos jovens ingleses dois anos antes da explosão do movimento punk (que, ironicamente, tomaria um caminho musical oposto ao do progressivo) e aos brasileiros sob uma ditadura. Se lá os contos de fadas falavam de uma realidade virada pelo avesso, aqui o poder do rei era exercido pelo governo autoritário – mas não só. A força das metáforas da letra de Ruy Guerra (e das de Barret, por tabela) pode ser avaliada por esta outra declaração de Milton:

É claro que as músicas tinham um teor político, mas não era nada explícito. Houve um exagero por parte da censura, porque nunca preguei que o pessoal pegasse em arma e coisa e tal; a gente só botava pra fora o nosso descontentamento com tudo, não só com o Brasil, mas com o mundo. (…) A própria EMI chegou a censurar internamente obras minhas. A música chamada “Bodas” tecia alguns comentários não muito elogiosos à rainha da Inglaterra, que por sinal ainda é a maior acionista da EMI. Aí eles acharam que não ia pegar bem; eles foram os censores, daí sempre tive que usar aquele negócio: “Quer? Não quer, me libera!”.

A transformação da palavra mata de substantivo em verbo pela voz de Milton – uma incitação de linchamento – pode ter mais afinidades que aparenta com as histórias lisérgicas do Pink Floyd, especialmente se levarmos em conta sua moldura instrumental. Como diz a letra de Mathilda Mother, as palavras têm diferentes significados. (…) Você só tem que ler as linhas. Elas estão rabiscadas em preto e tudo brilha.

A Perfeição Equilibrista

Escrevi este artigo para a revista digital Arte Institucional nº5 em janeiro deste ano. Trago-o para cá não apenas para tê-lo arquivado num lugar, digamos, meu, mas para que quem não soube dele na época tenha acesso. Mais adiante trarei os seguintes.

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Passei anos procurando inutilmente a citação de “O Bêbado e a Equilibrista” em “Perfeição”. O encarte do álbum “Descobrimento do Brasil”, da Legião Urbana, é que trazia a informação da citação. Conheço o samba de João Bosco e Aldir Blanc do avesso desde que me conheço por gente, e virei também do avesso a composição de Renato Russo, sem nunca descobrir o menor indício.

Até que um dia, ao ouvir a música da Legião, tive o insigth repentino que valeu por uma epifania: a citação não estava na letra, onde eu a vasculhara em vão, mas na melodia! A linha dos últimos versos de “Perfeição”, os únicos que são cantados e não recitados raivosamente: “Venha, / meu coração está com pressa / quando a esperança está dispersa” retomava, mutatis mutandi, a que embala os versos iniciais da outra: “Caia / A tarde feito um viaduto / e um bêbado trajando luto”.

Sempre me perguntei também o motivo de uma citação com esta. É sabido que Renato sempre gostou de enfiar, às vezes à força, canções dentro da harmonia de outras, especialmente em shows, o que fazia “Ainda é cedo” virar um pout-pourri quase infinito às vezes. Mas outra coisa é colocar a citação na própria estrutura da música, como neste caso. Não se trata de improviso, é caso pensado. Passo a fazer um paralelo entre as duas composições.

Dez anos as separam. “O Bêbado e a Equilibrista” foi gravada primeiro no LP “Linha de passe” de João Bosco em 1979, no formato tradicional para que foi criada, o de samba-enredo. Mas logo depois Elis Regina se apropriou dela, no que o próprio João Bosco classifica como co-autoria, e, com o arranjo sublime do marido César Camargo Mariano, transformou o samba num hino. A canção, com sua referência velada a Herbert de Souza, o Betinho “irmão do Henfil” exilado pela ditadura militar, tornou-se o símbolo da Anistia e da esperança de tempos melhores para o país.

“Perfeição” é de 1989. Quando a primeira música foi lançada, passavam-se 10 anos do auge do movimento punk, com sua palavra de ordem “No future”. Renato e o Aborto Elétrico, seu grupo na época, beberam nesta fonte, numa Brasília de puro desencanto. Em “Perfeição” há ecos claros do punk nas guitarras distorcidas e na ironia avassaladora da letra: “Vamos celebrar a estupidez humana, / a estupidez de todas as nações / O meu país e sua corja de assassinos / covardes, estupradores e ladrões”.

Em 1989, para quem veio de Brasília e conhecia algo do poder, não havia muito o que comemorar. Pouco depois do lançamento do álbum, Fernando Collor de Mello venceu a eleição presidencial. Milton Nascimento, no álbum Yauretê, de 1987, compôs com Fernando Brant a “Carta à República”, espécie de resposta a “Coração de Estudante”, que também se tornara hino, só que da redemocratização: “Sim, é verdade, a vida é mais livre / (…) / mas a mentira voltou. / Ou será mesmo que não nos deixara?” E perguntava: “O que fizeram da nossa fé?” A esperança anunciada por Elis agora era “um sorvete em pleno sol”.

Para onde ir neste cenário? Renato Russo não tinha interesse, apesar de tudo, de passar mensagens de desepero, contra o qual lutava entre crises de depressão e problemas com drogas. “Já tentei muita coisa / de heroína a Jesus”, dissera ele em “L’age d’or”. E compusera uma canção baseada nos princípios budistas, “Quando o sol bater na janela do seu quarto”. Ele sempre tentara rechaçar inutilmente a imagem de líder da juventude, mas grande parte desta liderança provém exatamente das letras que, de certa forma apontam caminhos. E desta vez ele busca o caminho na retomada de uma esperança antiga, que se perdia. Basta confrontar os finais das canções citadas:

“A esperança dança / na corda bamba de sombrinha / e em cada passo dessa linha / pode se machucar. / Azar, / a esperança equilibrista / sabe que o show de todo artista / tem que continuar.”

E Milton Nascimento, na “Carta à República”, parece dar o tom e a deixa para Renato Russo cantar suas críticas terríveis:

“Foi por ter posto a mão no futuro / que no presente preciso ser duro / e eu não posso me acomodar / Quero um país melhor!”

E Renato reune os cacos de um país onde “tudo parece que é ainda construção / e já é ruína” (“Fora de Ordem”, Caetano Veloso), os cacos de esperança da chamada década perdida, e com eles reconstrói improvavelmente a fé no futuro no fim de sua letra demolidora, com a citação melódica que deu início a este artigo assegurando que não há outra saída senão tentar de novo e de novo:

“Venha! / Meu coração está com pressa. / Quando a esperança está dispersa / só a verdade me liberta, / chega de maldade e ilusão. / Venha! / O amor tem sempre a porta aberta / e vem chegando a primavera, / nosso futuro recomeça / Venha que o que vem é Perfeição.”

O Bêbado e a Equilibrista

Carta à República

Perfeição

Canções de Lista e suas listas

O podcast zuim estreou em janeiro deste ano com programas conceituais. Um dos primeiros esmiuçou a música Pra Ninguém (letra aqui, programa com a música aqui), de Caetano Veloso, que consiste em uma lista de títulos de outras canções. O sítio então fez o programa tocando as músicas citadas na letra. Deu tão certo que, mais recentemente, voltaram a usar esta tática com Todas Elas Juntas Num Só Ser, de Lenine e Carlos Rennó. Desta vez a letra quilométrica não coube em um programa só, precisaram de cinco! Daí que fiquei cismando com esse negócio de canção de lista, quando é que funciona e quando fica chato.

E quando é que funciona, quando é que fica chato? Confesso que já tive uma certa implicância com canções de lista, por ter a impressão de que cabia qualquer coisa, que não chegavam a lugar nenhum. Isso até me dar conta de que gostava de algumas sem me dar conta de que se encaixavam nessa categoria. Primeiro então pensei que funciona quando o sujeito sabe onde quer chegar, quando ele tem uma finalidade em mente que direciona a lista. É o caso de Passaredo, de Francis Hime e Chico Buarque, por exemplo. Mas aí lembrei de Diariamente, de Nando Reis, que parece não ter fim e não chegar a lugar nenhum, e mesmo assim se torce para continuar, pela curiosidade do jogo de associações.

Então achei que vale a surpresa da enumeração, indo até o limite do absurdo, como Dos Margaritas, dos Paralamas, ou Por Você, do Barão Vermelho. A surpresa não vem apenas do próximo ítem a ser reconhecido ou não, no caso de uma citação, mas também o estratagema e o contexto para ele ser encaixado na música, à maneira dos sambas-enredos, como em Cinema Novo, de Caetano e Gil, que ambiciona contar toda a história do cinema nacional em quatro minutos! A canção pode saber ou não onde quer chegar, mas tem que curtir o trajeto. Um componente bem humorado sempre ajuda, como em Por que que eu não pensei nisso antes?, de Itamar Assumpção  e Façamos (Vamos Amar), de Cole Porter em versão de Carlos Rennó (parece que este gosta de fazer canções de lista mesmo)   E uma lista pode ser também de sonoridades, mais até que de significados, como em Dançapé, de Mário Gil é Rodolfo Stroeter.

Finalmente, há algo que pode tranformar a mera lista em algo maior: é quando o compositor sabe usar a propriedade de acumulação de tensão inerente à repetição de uma fórmula, juntando-a a um acompanhamento crescente, a uma intensificação instrumental ou de interpretação, e assim empolgar, emocionar. Milton Nascimento faz isto  magistralmente em A de Ó (Estamos Chegando), em parceria com Pedro Tierra e Dom Pedro Casaldáliga. Francis e Chico (de novo) também o fazem em E Se…

E nesta brincadeira, acabei fazendo, a meu modo, um podcast também, uma lista de canções de lista. Então, à maneira do zuim, que aceita listas enviadas pelos ouvintes para fazer os próximos programas, aceito também sugestões de canções de lista interessantes. Com link para ouvir então, melhor ainda.

PS. No link de Dançapé, o sítio dá várias versões da música para escolher. Recomendo a penúltima da lista, de Mônica Salmaso.