A garota de Honório Gurgel

Tentei arduamente, mas não consegui identificar a gravação de Garota de Ipanema usada por Anitta em sua The girl from Rio (de autoria dela e mais diversos nomes, entre autores efetivos e produtores, num sistema ampliado de atribuição que se aproxima dos nossos sambas-enredo). Um site especializado no assunto afiançou que se tratava da gravação clássica do álbum de Stan Getz, cantada por Astrud Gilbert, mas estava enganado, sequer o tom era o mesmo. A que mais se aproximava era a do próprio Tom Jobim no álbum The composer of Desafinado plays, mas o fraseado da flauta não é idêntico. Acabei desistindo.

Mas por que isto seria importante? Para saber com com precisão com o que e com quem Anitta está dialogando. Afinal, embora a moça que inspirou Vinícius de Morais em sua letra seja só uma, há muitas Garotas de Ipanema, já que esta é nada menos que a segunda canção mais regravada do mundo, atrás apenas de Yesterday, dos Beatles. Garota de Ipanema foi de uma imensa novidade na canção brasileira a música de elevador e símbolo de um Brasil que passou, feito para turistas e idolatrado mundo afora porém irreal – e cada vez mais irreal em tempos de fascismo no poder. A história de como a Bossa-Nova estabeleceu uma imagem de país e esta imagem foi aos poucos demolida internamente enquanto se firmava externamente não é o objeto deste artigo, mas é fundamental para ele, como para a garota do Rio Larissa e sua canção.

Pois The girl from Rio é metodicamente construída sobre Garota de Ipanema, cuidando simultaneamente de demoli-la e subir em seus ombros para se alçar mais alto. Mas voltamos à questão: qual Garota de Ipanema, de Tom e Vinícius (e João) ou a dos elevadores? Há duas pistas para isto, uma indireta na gravação, outra explícita no clipe. Na gravação, o tom escolhido. O pesquisador americano (e youtuber) Adam Neely, em um interessantíssimo e metódico estudo da canção clássica, aponta entre outras coisas que, embora o tom de Fá maior tenha se popularizado em gravações internacionais a partir do registro da canção no Real Book (a mais popular compilação de standards do jazz), o tom das gravações de Stan Getz e do próprio João é Ré bemol, o que caracterizaria um tom “brasileiro” e um “pra gringo ver” (entre eles Frank Sinatra), dando às gravações em Ré bemol uma feição supostamente mais autêntica e às em Fá uma certa suspeita de diluição (embora Jobim o tenha utilizado também).

Pois bem, o sample usado por Anitta, seja de quem for, está em Fá maior. Evidentemente, esta escolha também não foi feita pensando nisto tudo e levou em conta o tom adequado para a voz de Anitta (que foi muito prejudicada por este quesito em Vai Malandra, baixa demais para ela). Mas a escolha da fonte do que seria a base da nova canção sem dúvida reflete esta dicotomia entre as visões estrangeira e brasileira sobre a canção. (Por sinal, o vídeo de Adam, em inglês, vale ser assistido mesmo por quem acha que já conhece bem a canção.)

A outra pista nem é uma pista, mas a própria essência do clipe promocional da canção – e que no universo pop onde Anitta se move é efetivamente parte da canção. Pois ele se inicia exatamente numa espécie de paródia dos filmes hollywoodianos em que o Rio de Janeiro era retratado como um paraíso idílico e glamouroso (embora exótico) – filmes que vão desde Uma noite no Rio, o segundo de Carmem Miranda nos EUA, de 1940, até 1984 com o desastrado Feitiço do Rio, que nem o diretor de Cantando na chuva Stanley Donen nem Michael Caine e uma jovem Demi Moore conseguiram salvar. Esta imagem da cidade se estabeleceu firmemente e permanece no exterior apesar de tudo, e Anitta passa o clipe inteiro alternando entre ela e as imagens filmadas no Piscinão de Ramos, em que o Rio de Janeiro para além dos três ou quatro quarteirões onde Helô Pinheiro reinava se faz presente.

Voltando à música, a base de Girl from Rio é a parte A de Garota de Ipanema, e somente ela, algo de se esperar de um sampler – muitas vezes o que é samplaedo é ainda menos, apenas uma batida, uma linha de baixo, um acorde. Mas no caso presente isto também não deixa de ganhar um significado, já que, por outro lado, é toda a parte A de uma canção que tem apenas duas partes. Esta parte A, muito mais conhecida mundialmente, é convertida no refrão de Girl from Rio, enquanto a parte B, que contém em si uma desestabilização harmônica que desafia interpretações funcionais (outra vez o vídeo de Adam é bastante esclarecedor) e fala da solidão do eu lírico, como que o lado menos luminoso da canção, é deixado de fora. Anitta, ao tomar para si toda a primeira parte e de forma tão explícita, deixa o ouvinte como que esperando a chegada da segunda, que não acontece, assim como o lado sombrio da cidade não é retratado em suas versões cinematográficas.

E sobre esta base tão conhecida de todos e esta mesma melodia, vem uma nova letra para esta parte A que, em vez de apresentar a garota de Ipanema, a substitui pela de Honório Gurgel. E acompanhando esta letra, uma batida trap, caracterizada por muitas e velozes subdivisões de ritmo. Não é o funk carioca típico, longe disso, o que ocasionou ridículos protestos de descaracterização. Mas Anitta não pretende atualizar a Bossa-Nova com o Funk, e sim atualizar a visão do Rio de Janeiro e se projetar como sua a representante alinhada com esta nova visão. Em suma, ela pretende ser mais a nova Helô Pinheiro que a nova Tom Jobim – mas controlando ela mesma a música. Ou mais claramente, e como já apontei em um artigo sobre Vai Malandra há dois anos, a nova Carmem Miranda, nada menos.

Neste sentido, The girl from Rio é um passo seguro e firme adiante de Vai Malandra, em que este universo da Zona Norte carioca foi apresentado ao mundo, tanto em termos musicais quanto de marketing – e a campanha primorosa de lançamento do single que o diga, com a foto de Anitta em pé numa prosaica cadeira de plástico em frente ao ônibus usado na filmagem viralizando violentamente e permitindo que cada um se inserisse nela com as adaptações pessoais devidas. Na letra, Anitta se insere no universo dos abandonados pelo poder público com naturalidade, incluindo aí o fator pessoal da descoberta tardia de um irmão, filho de seu pai com outra mulher. Esta menção particular, ao lado dos versos sobre a epidemia de gravidez precoce nas favelas – Babies having babies like it doesn’t matter – soa como algo da mesma natureza, e é mesmo. A descrição feita por ela é crua, sem nenhum glamour, assim como suas poses no clipe, sentada de pernas abertas na cadeira de praia, besuntada de água oxigenada e amônia para clarear os pelos, celulites à mostra (desde 2018), quase tropeçando ao descer do ônibus – tudo estudadamente natural, mas ainda assim natural, assim como a identificação de quem conhece ou veio deste Rio de Janeiro, um efeito parecido com o dos cariocas que assistiram a animação Rio, do brasileiro Carlos Saldanha, em que tudo era estilizado, mas estava tudo lá…

E é aí que acontece o pulo do gato de Anitta, é quando ela consegue a proeza de atualizar o modelo brasileiro de música de exportação (e a própria visão de Brasil no exterior) enquanto o esculhamba, e simultaneamente propor a si mesma como substituta desde modelo, como a sua atualização. O Rio não é só Ipanema, o Rio é muito mais do que vocês imaginam, o Rio é muito mais do que aquela lourinha aguada, o Rio… sou eu. E o Brazil não conhece o Brasil. Mas venha, venha conhecer. Vai malandra, gringo canta, todo mundo canta, diz o único verso em português da canção, na verdade um contracanto. Anitta se propõe a ser a Beatriz que guiará os Dantes que aceitarem seu convite por este Inferno e Paraíso de cidade, mas sem deixar um de lado em prol do outro, e mesmo às vezes sem saber distinguir bem em qual lado está.

E Anitta cuida antecipadamente – embora nunca se possa escapar de todo – das críticas de voltar americanizada – ou no caso, de americanizar-se para ser aceita no embarque de ida. Sim, a dialética não se dá sem choques, assim como não se deu para Carmem: ela deixará algo para trás na negociação para carregar algo. E, se Anitta está longe de ser tecnicamente a melhor voz de sua geração – nestes termos, Ludmilla a deixa longe tanto em termos de canto como até mesmo de composição – Anitta por sua vez é uma negociadora nata, e mais que ninguém sabe onde quer chegar, e como. Ela propõe uma troca: conheçam meu mundo, e me deem passagem no seu. E uma visão rápida do repertório variadíssimo de Anitta, entre reggaetons, funks, pop, sertanejo e featurings sem fim, sabe que The girl from Rio é mais uma versão de Anitta apresentada ao mundo, mas uma versão especial, a sua versão, sua contraparte. E a Garota de Ipanema, ao fim e ao cabo, ganha com esta versão que se livra do peso morto de anos de edulcoração e finca pé no que, para além mesmo da questão musical, é o que a tornou tão grande: o estabelecimento de um imaginário de cidade.

Eu confesso que torço por ela, que seja para reclamar dela adiante. Anitta não será a salvação da música brasileira nem se propõe a isto. Mas a auto-estima nacional anda precisando se ver, se reconhecer, sem ignorar suas mazelas mas sem ser o pária internacional que o fascismo populista nos tornou. E Anitta conseguiu isto desta vez, e devemos essa a ela. Vai Anitta, ser a nossa garota. Faça bonito, com celulite e tudo, é esse o espírito.

P.S. Eu já estava encafifado com a canção desde que a ouvi pela primeira vez, mas o que detonou o artigo foi esta publicação do pesquisador Diego Viana no Twitter. Fica o agradecimento.

Dois Tons e uma Coca-cola

Em 1986 o Tom participou de uma propaganda da Coca-cola. O Tom em questão era o Jobim, e ele na verdade fez um pouco mais do que participar. Ele cedeu por seis meses os direitos de uso do tema de Águas de Março, e com ele a Coca-cola estruturou toda a sua campanha mundial naquele ano.

Compilação dos anúncios da campanha brasileira – letra adaptada por Nelson Wellington da agência McCann Erickson (Tom participa do anúncio de Natal)

Um dos anúncios da campanha americana:

O mundo caiu sobre a cabeça de Tom Jobim. Entre muitos outros, Jards Macalé o descascou publicamente. Foi chamado de traidor, por vender (alugar, vá lá) um pedaço do patrimônio brasileiro a uma multinacional que é por si um símbolo do capitalismo norteamericano etc. Entrevistado pela Veja em março de 1988, desabafou:

Veja: Muita gente o criticou por ter cedido Águas de Março para os anúncios da Coca-Cola. Você fica magoado com isso?

Tom Jobim: Há quase dois anos que eu não bebo. Só posso beber café, água e refrigerantes. A Coca-Cola se aproximou de mim para fazer um anúncio, eu achei ótimo, achei que não fazia mal a ninguém, pois vejo todo mundo tomando Coca-Cola. Aí esses meus amigos – entre aspas, Jards Macalé, Antônio Houaiss e Luiz Carlos Vinhas – começaram a dizer que eu tinha vendido o Brasil à Coca-Cola. Essas pessoas resolvem que fazer anúncios para a Coca-Cola é pecado. Eu posso anunciar cachaça, Brahma Chopp, mas não posso cometer o pecado mortal que é anunciar Coca-Cola. Eu não vendi nada para a Coca-Cola. Eu apenas licenciei o mote de Águas de Março. Todo o Brasil pode cantar tranqüilamente esta música. O primeiro contrato foi por seis meses e por aquele anúncio em que eu aparecia, aqui no Brasil, recebi 280.000 cruzados.

Corta para 2013. Tom volta a participar de um comercial da Coca-cola, como locutor. Só que agora o Tom é Zé, e o anúncio é para associar a Coca-cola à Copa do Mundo no Brasil.

 

E o mundo voltou a desabar. Dias depois, Tom Zé, diante das reações, postou em seu blog:

Pois é, pessoal, estou preocupado.

Eu dou importância à opinião de vocês. Essa alegria sempre me acompanhou.

Quando o anúncio saiu na tv, imaginei que até as opiniões contrárias eram uma espécie de comemoração por eu aparecer com status de locutor de uma propaganda grande. Mas agora, quando perco o sono por causa do assunto… não, agora eu estou preocupado!

O apoio de vocês sempre foi uma base de sustento. Será que uma alegria nascida do privilégio de até hoje, aos 76, ter vivido dessa profissão de músico e cantor, me fez pensar que eu poderia afrontar essa sustentação?

É curioso que quando fui consultado sobre o anúncio nem pensei nessa probabilidade. No ano passado meu disco fora patrocinado pela Natura e como eu nunca tinha recebido patrocínio desse tipo – nem de nenhum outro – , cara, eu me senti como um artista levado em conta!

Para profissionais de meu tipo as gravadoras são agora inalcançáveis. A Trama, de João Marcello Bôscoli, me deu grande apoio nos anos 90 e até Estudando o Pagode, em 2004. Mas em Danç-Êh-Sá”, já dividimos as responsabilidades. Em 2008 Estudando a bossa foi muito ajudado pela Biscoito Fino; Agradeço, mas ficou difícil continuar lá. No ano passado o apoio da Natura me deu tanta confianca pessoal que ousei fazer o Tropicália Lixo Lógico.

No lançamento de Danç-Êh-Sá, em 2005, o resultado foi de extremos. A gravadora francesa teve um ódio tão grande do disco que quase perco até a amizade de Henri Laurence, que lá me lançava pela Sony. Nos E.U.A. houve comentários apaixonados na crítica, mas Yale Evelev recusou o disco na Luaka Bop. Logo a seguir a mesma Luaka Bop me respondeu com entusiasmo ao Estudando a bossa de 2008 e depois lançou o super set box de vinis com os 3 Estudando…

E o … Lixo Lógico recuperou também a amizade de Henri Laurence.

Toda essa dança de lançamentos e esse céu-e-inferno com os editores-lançadores é própria desse setor onde não devo nem quero relaxar o arco-tenso-da-ousadia. Mas nos dias atuais vivemos a era da internet e a venda de disco passou a ter um peso insignificante. Já o papel desses lançamentos, em termos de divulgação, é muito eficiente.

* * *

Voltemos ao presente. Atualmente sinto paixão pela retomada do projeto dos instrumentos experimentais de 1972. Com a eficiente colaboração do engenheiro Marcelo Blanck, começamos a desenvolver alguma tecnologia, mas com recursos parcos, insuficientes. Os resultados estão nos animando muito. Aí entrou o anúncio da Coca-Cola que, mesmo sem ela saber, patrocinaria boa parte da pesquisa.

Será que o uso dos recursos obtidos com o anúncio muda a avaliação de vocês?

Madrugada de sexta, 8 de março, 6h22. tom zé

Não obstante, a polêmica continuou, e que bom que continuou. Entre comentários no próprio blog e artigos sobre o assunto, destaco este, do Eduardo Nunomura, que não só resume o assunto anterior e alguns comentários pertinentes como o do músico mineiro Makely Ka, como também dá uma opinião pessoal equilibrada e aberta ao debate, em vez de fechar a questão em termos de vendido ou hipócrita.

Pois não há mesmo resposta fácil ou posição absoluta nesta questão. Mas há alguns apontamentos possíveis, como é possível, avaliando semelhanças e diferenças nestas duas relações Tom X Coca, perceber um bocado de nuances da relação da nossa cultura com os meios de se viabilizar e com o monstro de milhares de cabeças e tentáculos que se convencionou chamar o mercado. E o primeiro ponto, a meu ver, está na diferença de postura destes dois artistas em relação à sua obra, e nas características desta obra em relação com o tal do monstro, frutos também das diferenças históricas dos movimentos onde eles foram pontas de lança, eterno debate da música brasileira: Bossa-nova e Tropicália. Por mais reducionista que seja dizer isso, é fato de que a bossa, anterior a movimentos como a pop art e num Brasil que somente então se abria para a economia mundial (para o bem e para o mal), tem parca consciência de si como um produto e de sua interação com o mundo para além da questão estritamente artística. Enquanto o tropicalismo já nasce se propondo a relacionar-se com tudo o que aparecer, em certos casos tendo a música como um aspecto somente de um todo maior. Neste sentido, toda a atuação pública de um artista se torna relevante, e toda interação de sua obra com o mundo altera seu significado. Algo que a bossa-nova nem sonhara.

Assim, Águas de Março esteve por seis meses vinculada estreitamente à Coca-cola. E o que aconteceu? Bem, a Coca-cola continua sendo a Coca-cola, e Águas de março continua sendo a maravilhosa canção que é, mesmo tendo tido sua letra alterada e tendo sido cantada em arranjos para lá de duvidosos, e mesmo tendo sido associada a uma bebida que não tem nada de ecológico nem de brasileiro, e sabidamente faz mal à saúde (à época já se sabia, apenas falava-se menos do assunto). E quanto a Tom Zé?

Pausa necessária para tratar de publicidade e de propaganda testemunhal, que é aquela em que uma pessoa conhecida atesta a qualidade de um produto. Em geral, recomenda-se escolher alguém que tenha não apenas credibilidade pessoal, mas também alguém cuja adesão ao produto seja crível, mandamento lógico que vem sendo crescentemente deixado de lado em favor da celebridade da vez, seja ela qual for. Pois – e aí está o ponto – a propaganda testemunhal é um caminho de mão dupla, pois a associação de imagens não é unilateral. Que o diga Zeca Pagodinho, que depois de fazer propaganda de uma marca de cerveja diferente da que bebia, viu sua vida transformada num inferno, tendo de beber às escondidas, até finalmente capitular e voltar à cerveja de que gosta.

Portanto, trata-se de uma mão dupla, e não há ingênuos nesta história. Enquanto o produto se utiliza do artista para endossá-lo, o artista vincula seu nome a uma marca que pode-lhe ser benéfica ou prejudicial. Porém, voltemos à diferença desenhada entre Tom e Tom. Para o Jobim, a condenação foi devida à associação de Águas de Março com o Brasil, que ele certamente não gostaria de perder. Para ele, ter Águas de Março numa propaganda mundial poderia ser motivo de orgulho pela valorização que mostrava ter a canção e a música brasileira, despertando interesse de uma multinacional. Para outros, foi simplesmente alugar um orgulho nacional a uma empresa multinacional. Jobim, em 1986, vivia no mundo pré-tropicália. Por mais que tenha se aborrecido com as críticas, o fato é que ninguém dá mais importância a sua participação hoje. A indústria da propaganda e o mercado são uma máquina de moer carne. A característica da cultura pop é o esquecimento rápido. Pensando bem, o pensamento do Jobim talvez não estivesse tão anacrônico. Ele sabia que, com críticas ou não, poucos anos depois o caso seria deixado de lado, e que Águas de Março era bem maior do que a Coca-cola, embora naquele momento parecesse o contrário.

Mas há mais uma possibilidade aqui. Se a música do Jobim, ao fim e ao cabo, passa incólume pela Coca-cola e se o endosso recebido por esta é temporário apenas, como toda propaganda, sobra uma pequena possibilidade: a de que a participação testemunhal, em vez de endosso, se converta em crítica, ou senão em algo mais complexo como a crônica dos tempos. Um verso como o de Caetano Veloso em Alegria, alegria: O Sol nas bancas de revista / me enche de alegria e preguiça será uma propaganda ou uma crítica ao jornal de esquerda O Sol? Ora, nem uma coisa nem outra. Caetano usa O Sol para falar de outra coisa. A obra de arte tropicalista lida com os aspectos notícia e propaganda como um elemento a mais de significado na criação artística, tendo inclusive consciência de sua fugacidade. Só que, numa canção, estamos num terreno que é controlado pelo artista, e se ele cita um produto o faz dentro de suas condições e parâmetros. E quando é ele o citado na obra da propaganda? Em que medida ele pode manter o controle da sua imagem?

Aí é que está: a curto prazo, não pode. Pois a máquina avassaladora do monstro do mercado é mais forte, muito mais forte – a curto prazo, como sabia o Jobim. Ainda assim, voltamos à questão da credibilidade pessoal e do anúncio, ou seja, da associação entre produto e testemunha. Pessoalmente, Tom Zé tem muita credibilidade, mas não para todos, simplesmente porque ele não é uma celebridade, não está na grande mídia, em suma, é muito menos famoso do que pode parecer. Grande parte da população brasileira nem se deu conta de quem estava narrando o comercial. O Zé tem credibilidade para uma parcela da população que em boa parte é crítica, se não à Copa no Brasil, às providências que estão sendo tomadas para ela. O redator do anúncio sabia bem, tanto que já inicia o texto com a frase ambígua: muita gente se pergunta como vai ser a Copa. Mas seria ingenuidade achar que a Coca-cola pretendia convencer estas pessoas apenas pela presença do Tom Zé. O que se queria era provocar a discussão que está acontecendo, com prós e contras, entre os tão superestimados formadores de opinião – e aí ela já é um sucesso absoluto.

Por outro lado, é mesmo duro de ouvir Tom Zé dizendo que o Brasil é o país de todo mundo, o futebol é o esporte de todo mundo e a Coca-cola é a bebida de todo mundo. Porque é este o momento em que a associação finalmente se dá, depois de cinquenta segundos de preparação – para a propaganda, uma eternidade. No restante do filme, o que se vê é mais um esforço violento de uma empresa estrangeira em se maquiar de brasileira. O que guarda uma estranha relação com os arranjos pop/rock a que submeteram Águas de Março há mais de 25 anos. Consegue? Sim, até o próximo anúncio, a próxima campanha. Para manter uma afirmação tão insustentável, só mesmo repetindo-a incessantemente. Mas fala uma última pergunta: se Tom Zé empresta sua brasilidade e sua originalidade à Coca-cola por um momento, o que ela empresta a ele, além do dinheiro que financiará sua música por algum tempo?

Tenho para mim que, sem que se tenha percebido com nitidez, foi isso o que revoltou e mobilizou tanta gente, tanto para o Jobim quanto para o Zé. A sensação de que eles estavam no fundo sendo roubados, emprestando o inestimável de suas obras, um sua música maravilhosa, o outro a si mesmo, pois no caso de Tom Zé e segundo a visão tropicalista, sua vida e sua obra se confundem numa coisa só, para receberem de volta apenas… dinheiro. Se tanto Jobim quanto Zé deram alguma importância ao reconhecimento que os levou a serem convidados para uma propaganda grande (não pela Coca-cola, mas pelo fato de o convite da Coca-cola comprovar o valor que o mundo lhes dá a ponto de querem alugar para si um pouco deste valor), outros consideram que nenhum valor pago seria suficiente para compensar este empréstimo de credibilidade, que o aluguel seria sempre caro demais, mesmo para a Coca-cola. Daí os gritos de vendidos, ou no mínimo achar que fizeram mau negócio. E, neste sentido, fizeram mesmo, pois, embora seja nítido que eles fazem o jogo da Coca-cola, a Coca-cola dá bem menos a impressão de fazer o jogo deles. Mas eles sabiam desde o princípio que não perderiam o que alugaram. No fundo, jogam outro jogo, que dura bem mais, e que a Coca-cola não tem condições de jogar com eles – vai ter que escolher outros, sempre outros, como sempre fez.

Mas e aí, os Tons estavam certos ou errados? Não tenho a menor ideia, nem pretendi descobrir neste texto. O que quis foi entender um pouco melhor a teia quase inextrincável de relações entre o fenômeno de nosso tempo de empresas internacionais pintarem faces humanas e brasileiras, as questões envolvendo a credibilidade pessoal e o envolvimento de um artista e/ou sua obra com o monstro de milhares de cabeças e tentáculos que se convencionou chamar o mercado, e as consequências artísticas disso. Nem Jobim nem Zé passaram incólumes pela Coca-cola. Mas Jobim e Zé não precisam dela nada além de dinheiro, enquanto ela vai continuar precisando de pessoas como eles eternamente para continuar afirmando convictamente que é o que não é capaz de ser. Sigo a sugestão de Makely Ka: que Tom Zé se aproveite de sua condição tropicalista e traga o jogo para seu campo, fazendo uma canção sobre ter feito um comercial para a Coca-cola. Seria um belo final.

Os segredos da canção longa

A primeira faixa do primeiro álbum dos Beatles anunciava: It won’t be long. E, realmente, longeva que seja a obra deles, a canção tinha apenas 2 minutos e treze segundos. Desde o nascimento do formato canção popular (deixando propositalmente de lado referências históricas anteriores à possibilidade de gravação), estabaleceu-se a duração aproximada de 2 minutos e meio como a ideal, em parte inicialmente pelas precariedades tecnológicas da gravação, mas logo também pelo estabelecimento de um formato padrão que permitia que sua narrativa se desenvolvesse em termos ideais. Mais tarde, ao longo do tempo, a exploração do formato e a liberdade absoluta das amarras tecnológicas, esta duração não chegou a se estender muito: hoje, está em torno dos 3 minutos e meio a quatro minutos

E que forma padrão é esta? A de dois, no máximo três temas musicais a serem alternados e (pouco) desenvolvidos. Os formato ABACA e suas quase infinitas variações tornaram-se um paradigma difuso, em que se pode ir muito longe. Mas, quanto mais longe a canção vai, mais se arrisca a não ser reconhecida como tal. Uma vez, participando de um festival da canção, vi uma composição excelente de um amigo ser desclassificada pelo juri ainda antes das eliminatórias. A alegação era que a música, bastante experimental, com uns cinco temas diferentes e duração maior do que o normal, não seria uma canção, mas uma rapsódia!

Como extrapolar isso? É possível fazer canção longa, sem que deixe de ser canção? Como e até onde se pode estender o formato? Quais as amarras formais a serem utilizadas para que a canção não se dilua e perca o sentido, ou simplesmente fique enfadonha? De cara, vislumbro duas possibilidades extremas, entre as quais múltiplas possibilidades surgem: ou uma estrutura simples e única que se repete indefinidamente, ou uma em que sucedem-se temas variados, e a amarra da estrutura se dará pelo desenvolvimento da própria narrativa. O primeiro caso é exemplificado nos repentes, muitas vezes improvisados. A estrutura é rígida, e nela o cantador conta uma história (e com isso mantém a coesão interna com o encadeamento dos fatos), ou sucede tiradas sobre tiradas (como nos desafios) de modo a manter o interesse do público. Já no outro extremo, um exemplo:

Supper’s ready – Genesis

OK, este é um exemplo radical, que se enquadraria perfeitamente na classificação de rapsódia, que citei acima – o que aliás é típico do rock progressivo, que foi procurar inspiração na música clássica. É também bastante didático, já que dividido em partes quase estanques – na letra encartada no álbum, explicita-se a divisão em 7 partes numeradas, com algarismos romanos e subtítulos. Cada uma das partes funciona como uma pequena canção não inteiramente desenvolvida, um tema bem característico – e no entanto há um encadeamento entre elas, real mas não óbvio, na letra bastante difusa de Peter Gabriel.

Porém, a técnica usada para conseguir a unidade foi outra, e bem simples, mas usada de maneira sofisticada: a volta aos primeiros temas apresentados, como um retorno do recalcado. Mas em vez da obviedade de terminar como a canção começou, os rapazes (à época…) do Genesis preferem, no fim da sexta parte, citar o fim da primeira – citação exata, incluindo letra – para logo a seguir emendar na última parte, com a mesma melodia da segunda e outra letra. E com um outro detalhe: enquanto a segunda parte terminara abruptamente com uma cadência incompleta (e uma frase da letra também), agora frase e cadência se completam triunfantes, majestosamente, com o instrumental à toda no grand finale. Este encerramento em que temas anteriores se repetem transfigurados unifica a composição, mas não impede que ela se coloque quase além dos limites do formato de canção, assim como um desafio entre repentistas que se prolongue por horas também o faz, mas pela fronteira oposta.

Então, agora analisemos dois outros exemplos não tão radicais, indubitavelmente canções, que não foram tão longe em termos de tamanho (ambas regulam os sete minutos, dobro da duração média da canção radiofônica), mas em que as soluções encontradas foram bem mais sutis.

La maison Dieu – Legião Urbana

Harmonicamente, La maison Dieu segue o padrão roqueiro de Renato Russo: poucos e simples acordes, um riff em mi menor que sustenta a introdução e a parte A quase toda. Em contraposição, a melodia segue em boa parte sem repetições, fixando-se apenas em momentos chave e variando de acordo com as ênfases da letra na maioria dos outros. A coesão da canção é dada pela sucessão das sequências harmônicas: depois de uma espécie de introdução da letra, em que a parte A é repetida várias vezes até uma variação preparatória, surge a parte B, espécie de refrão com melodia marcada a partir da expressão eu sou a tua morte. Depois de uma repetição do eu sou sobre a harmonia da parte A, surge a parte C, de melodia mais fixa e cadência tradicional II/V, em a pátria que lhe esqueceu. Seu final marcado volta à harmonia da parte A, novamente apenas uma vez para a frase eu sou e novamente a parte C, agora um pouco mais curta. Ela se encerra agora emendando novamente na parte B, mas que termina com a convenção característica da parte C e volta à parte C novamente. Finalmente, ocorre o retorno à parte A, com a frase eu sou a tua morte, e o fim com a repetição de eu sou, remetendo à primeira parte depois da introdução.

Complicado? A forma estrita seria então, grosso modo, A A A A A A’ B A C A C B’ C A A, sendo os asteriscos correspondentes a modiicações na terminação. Ou seja, na verdade não passa de uma variação extendida do velho ABACA, complexificada de modo a criar uma narrativa harmônica que permita ir mais longe, com as surpresas de quando a parte C desemboca na B e esta retorna modificada para a C, criando assim um crescendo implicito de tensão (o ápice da narrativa) até voltar ao rif inicial (ainda há uma última estrutura harmônica repetida após o término da letra, impedindo um relaxamanto completo e se estendendo até o fade). É esta estrutura harmônica bem armada, explorando as possibilidades de combinação entre poucos elementos, que sustenta a canção, mais que a melodia cheia de variações, muitas vezes ao sabor da letra, ou a própria letra propositalmente algo vaga, e permite à canção ir tão longe.

Matita Perê – Tom Jobim

Aqui a estratégia é outra, e ainda mais refinada. Matita Perê é uma canção com apenas um tema, construído sobre dois únicos acordes de mesmo baixo – menor, maior com quarta e nona – e apenas parte A (com uma certa boa vontade se admite uma parte B curta que surge apenas duas vezes). O segredo aqui é outro. Tom Jobim simplesmente modula a cada repetição: G#m, Gm, F#m, Fm, parte B terminando em Dm, Bbm, G#m, (intermezzo instrumental), Em, Gm, F#m, parte B terminando em Cm (um tom abaixo da primeira vez, portanto), Am, e terminando no tom inicial, G#m.

A letra de Paulo Cesar Pinheiro, inspirada em Guimarães Rosa, narra nebulosamente uma busca por alguém de quem nem o nome se sabe ao certo, cujos rastros se apagam à sua passagem. A perseguição pelo sertão imenso e sem referências, onde tudo e todos são iguais, todos joão, com várias e vagas indicações de lugar (De Nor-Nordeste pra Norte-Norte, Por sete caminhos de setenta sortes) a canção vagueia pelas tonalidades junto com seu protagonista, dando ao ouvinte uma dupla desorientação, uma viagem pelo deserto em círculos, às vezes a galope, às vezes caminhando a duras penas, e que termina com o círculo fechado: se acabou joão. E duas vezes com a harmonia suspensa, na parte B, onde, paradoxalmente, tem-se a impressão da possibilidade de chegar a algum lugar, apenas para logo após cair novamente no vazio da jornada.

Sem dúvida, há outras soluções possíveis. Estas duas primam pela elegância e são sólidas a ponto de quase dispensarem a ajuda da letra para conseguirem unidade, e ainda assim, caminham pari passu com elas. São duas entre muitas outras formas de estender o arco da narrativa da canção de modo a ir mais alto e mais longe. A canção tem suas formas e seus limites, sem dúvida; mas estes limites estão aí para serem desafiados. Os Beatles já sabiam, desde It won’t be long até The long and widing road

Antônio, o brasileiro

Porque o Brasil teve que ser inventado, entende? Não existia o Brasil. Tudo aqui é importado, tudo: o relógio, o gravador. E quando não é importado, é copiado do original, que vem de fora. E o resto é mais importado, o café é importado, a cana-de-açúcar é importada, o eucalipto é importado, os carros são importados, nós somos importados… Os índios são importados, vieram da Polinésia, né?, com o zigomas salientes, a plica mongólica, a zarabatana. Então, a ilha Brasil talvez seja uma grande ilha com as espécies muito diferentes do resto do mundo Aqui você não tem animais do presépio de Jesus Cristo. Você não tem vaquinha, boizinho, galinha, ovelhinha, nada disso existe aqui. Tudo isso é importado. Aqui tem tamanduá-bandeira, tem gambá, tem preguiça, peixe-boi, entende? São animais realmente diferentes.

Pergunta: Como é que você vê essas dificuldades em continuar mantendo contato com essa coisa brasileira, as raízes?

Vai ficando cada vez mais difícil. Esse é um negócio que eu cheguei a conversar com o Vinícius, vai ficando cada vez mais difícil. Porque você destrói a Mata Atlântica toda, você destrói a Amazônia, quando chegar no poema do Villa-Lobos você não vai entender, porque não tem a Amazônia. Por exemplo: eu vejo no meu filho de 15 anos. Como é que ele pode conhecer as qualidades de passarinhos? Ele não conhece. Ele não conhece os bichos, ele não conhece as árvores. Porque essas pessoas que estão aí nunca viram esse Brasil, esse Brasil elas não conhecem, elas conhecem o Brasil asfaltado, com o sinal vermelho, o guarda, a violência, a metralhadora, isso elas conhecem. Agora elas não conhecem a jacutinga, não sabem quando o murici floresce lá no alto da serra, não sabem quando a jacutinga vai lá comer o coco da juraça. Eles não sabem o que é juraça, nem se a juraça dá coco, nem coisa nenhuma. Enquanto isso o pessoal, quando o outro fala de ecologia, começa a cortar mais depressa, antes que apareça o fiscal ou qualquer coisa que impeça a destruição. Porque toda arte é ligada ao seu tempo. A arte de Debussy é ligada ao tempo dele, a arte de Charlie Parker… a arte de Gershwin… Aliás, Gershwin falou isso: “O que eu escrevo é uma coisa ligada ao agora de Nova Iorque.

Fred Coelho e Daniel Caetano assinam a organização de um livro de entrevistas de Tom Jobim para a Série Encontros, da Editora Azougue. Também escreveram em parceria uma apresentação para esse volume de entrevistas. Segue abaixo o ótimo texto, que roubo dos blogs deles:

A Filosofia do Compositor

Este livro que está em suas mãos, prezado leitor, é precioso. Por ser um livro que reúne entrevistas do maior compositor brasileiro, já teria garantido seu alto quilate. Mas ele é mais do que isso. Ele é também a prova de que a genialidade de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim não se manifestou apenas em suas músicas. Logo nas primeiras entrevistas podemos perceber que, nas conversas publicadas nas próximas páginas, Tom Jobim apresenta o brilho, a verve e a agudeza que caracterizaram a geração que marcou o Rio de Janeiro nas décadas de 1950 e 1960. Na mítica Ipanema de amigos e celebridades intelectuais como Vinícius de Moraes, José Carlos de Oliveira, Lúcio Cardoso, Paulo César Saraceni, Paulo Mendes Campos, Hélio Pelegrino, Millôr, Rubem Braga, Fernando Sabino e tantos e tantos outros companheiros, Tom forjou sua rapidez de raciocínio, seu livre-pensar, sua dose exata de indignação e de amor pelos homens e pelo Brasil. Esse caldo cultural – que reunia a beira-mar com a mesa do bar, tardes de piano e conversas infinitas sobre vastos pensamentos – foi o espaço perfeito para o compositor desenvolver uma visão atenta e complexa sobre o seu lugar.

Pouco a pouco, a partir do prestígio que angariou internacionalmente, seu olhar vai ganhando amplitude e se tornando mais complexo – apontando, através do seu próprio exemplo, o dilema de uma sociedade que se constituía recalcando as influências externas. Não foram poucos os artistas e pensadores brasileiros que defenderam a atitude antropofágica e formularam as possibilidades revigorantes desta postura no meio cultural brasileiro. Nas entrevistas que se seguem, podemos perceber que Jobim fez isso e foi além: ele percebeu que, no nosso contexto, ele foi o mais bem-sucedido ao pôr em prática esta atitude. As composições e os discos de Tom Jobim não procuravam se confrontar com as influências externas ou nacionais, eruditas ou populares: elas devoraram as influências e assim encontraram sua beleza, própria e vital. Se João Gilberto trouxe sua forma única de reinterpretar e reinventar a tradição artística e cultural brasileira, Jobim, por sua vez, fez uso de um amplo conhecimento de música para tornar brasileiro o que era canônico. Dito de outro modo: enquanto João Gilberto tornou universal a música brasileira, Jobim tornou brasileira a música universal. Com esta parceria (a que se somaram a poesia de Vinícius de Moraes, entre outros, e o talento de centenas de músicos), definiram um estilo que tornou realidade uma utopia à primeira vista impossível: uma arte moderna, brasileira e bem-sucedida. Mais do que isso: canônica. É esta a perspectiva que Jobim aponta e nos faz ver ao longo do seu percurso. No entanto, Tom Jobim usa as palavras com a consciência de que elas não dão conta de representar este universo essencialmente musical (esta arte intangível). Às palavras, diz ele, resta guardar para a história as anedotas. Assim, ele nos lembra, como leitores, que é preciso conhecer e compreender também o que não reside nas palavras. Só assim elas poderão dizer alguma coisa. Apesar de trabalhar desde muito cedo no meio musical carioca, Tom Jobim só foi ser motivo de interesse para jornais e revistas após o sucesso de seus primeiros grandes trabalhos com Vinícius, como a trilha para o musical Orfeu da Conceição e a Sinfonia de Brasília. A essa altura, já por volta dos seus trinta anos de idade, ele se mostrava conciso e formal em suas colocações, até mesmo um tanto reservado. No entanto, já na primeira entrevista deste volume, Jobim falava da perspectiva de modernização da música que se fazia no Brasil, mencionando alguns colegas que lhe pareciam também estar buscando novos caminhos.

Ao longo de sua carreira, uma desenvoltura literária e uma criatividade constante passam a povoar suas respostas. Muitas vezes, Jobim acabava entrevistando entrevistadores ou subvertendo perguntas e colocações. Destilava uma longa fila de citações e anedotas guardadas na cabeça e sacadas da manga em horas estratégicas. Drummond, Guimarães Rosa, Vinícius e Villa-Lobos são alguns dos seus personagens prediletos, companheiros que o auxiliam nas palavras. Do mesmo modo, ele mostra em suas falas a preocupação de traçar o panorama de influências e parceiros na criação da música brasileira moderna: Pixinguinha, Custódio Mesquita, Garoto, Radamés Gnattali e Ary Barroso dão base para a nova música; enquanto são companheiros de percurso João Gilberto, João Donato, Johnny Alf, Edu Lobo e outros.

Um ponto que se torna evidente, conforme as entrevistas são lidas em sequência, é a necessidade que o compositor bem sucedido tem de aprender a se defender do sucesso. Após seu imenso destaque entre o público e a crítica a partir da ascensão da bossa nova, na década de 1960, e sobretudo depois de sua consolidação no estrelato, com a gravação do célebre disco com Frank Sinatra em 1967, Tom Jobim é inquirido de tal forma que dá a impressão de ter que se justificar por ter se tornado um compositor brasileiro de destaque internacional. São constantes os questionamentos sobre sua vida financeira, sobre os motivos do seu sucesso e sobre as acusações de cópias e plágios de músicas alheias. Tudo isso fazia com que Tom Jobim – que poderia ter uma prosa quase surrealista, como na entrevista lisérgica com Clarice Lispector ou na entrevista etílica com Carlinhos de Oliveira (feita dentro do famoso bar Antonio’s) – se tornasse pura lâmina cabralina. Suas respostas em entrevistas como as concedidas para o Pasquim ou para a Playboy são muitas vezes agressivas e irônicas. É justamente no embate de 1969 com a equipe do semanário carioca que Jobim, rodeado por amigos dos bares de Ipanema que eram, também, os jornalistas (como Tarso de Castro, Jaguar, Millôr Fernandes, Ziraldo e Sérgio Cabral), cunha a expressão “um marginal bem sucedido” para se definir e encerrar a discussão sobre sua vida financeira.

Essas cobranças – que recaíam várias vezes e de variadas formas sobre o compositor – provocaram nas respostas de Tom Jobim um caráter, de certa forma, sociológico. Não uma sociologia de conceitos acadêmicos, mas uma sociologia de vivência popular, de quem, por força da profissão, pôde observar o Brasil “de fora”, devido a suas inúmeras viagens e longas temporadas morando em Nova Iorque e Los Angeles, assim como observava “de antes”, com a memória de cidades socialmente menos agressivas. Para se defender de sua ascensão social, ele passou a compreender seu sucesso (e a inveja que ele motivava) dentro de um amplo quadro de análise de toda a sociedade brasileira. De seu universo particular entre a praia e o piano, que tanto apreciava, Tom narra que foi “arrancado à força” para o famoso concerto do Carnegie Hall em 1962. A partir daí, teve que dar conta de outros níveis de informações e demandas sobre sua carreira. Em algumas entrevistas, ao ser instigado a comparar dólares e cruzeiros, a vida nos EUA ou no Brasil, a condição de artista rico em contraste com as dificuldades financeiras dos primeiros anos, Tom explana teorias sociais, analisa desigualdades e trata de rancores históricos da gente brasileira. Assim, ele usa as questões que lhe são apresentadas para atacar tanto as limitações impostas pelos patrulhadores da pureza cultural quanto a cultura da inveja e da má consciência social.

Outro ponto que fica evidente ao longo das entrevistas é a presença cada vez maior da natureza entre os interesses da vida e da obra de Tom Jobim. Suas declarações, principalmente após 1970, passam aos poucos a incluir reflexões sobre pássaros, plantas, matas, sítios, estradas de terra, silêncios, rios. Notório pela sua perspectiva ecológica do mundo – outro traço comum à geração que viu a destruição imobiliária de uma Ipanema acolhedora e anônima –, Tom passa a professar em verso e prosa essa visão do paraíso brasileiro, que ele vivenciou com a naturalidade de quem fez deste lugar o quintal de sua casa. No fim da vida, morando nas franjas da Mata Atlântica carioca, concretizou em sua obra uma trajetória que é o encontro emocionante do mar com o rio, das areias da praia com o granito da pedra da mata.

Na sua última entrevista, concedida sete dias antes de falecer, Tom Jobim fala bastante sobre a relação de sua música com um Brasil épico – existente apenas na visão de alguns brasileiros louvados por ele, como Villa Lobos e Guimarães Rosa – e chega a anunciar que sua música era a descrição de um Brasil paradisíaco. Nesta entrevista, talvez a mais bela entre várias, ele associa suas canções e discos dedicados profundamente ao país – Matita Perê, Urubu, Terra Brasilis, Passarim – ao livro fundamental de Sérgio Buarque de Hollanda, Visões do Paraíso, e a todo o projeto de construção de um imaginário brasileiro.

Este interesse sobre a sociedade brasileira e sobre o seu lugar natural é manifestado com tal constância que chega a revelar uma bela obsessão. A música, como se sabe, é a única das artes que dispensa o uso de ícones, personagens e falas: a música se faz através do som, não importando se este som ganha algum sentido inteligível. A música, portanto, depende de uma relação puramente estética – e qualquer discussão moral e ética surge de contextos externos a ela. Não por acaso, pensadores como Kant apontaram que, se é a arte com maior capacidade de provocar emoções, é também a que demanda menos esforço de pensamento: para vivenciar a experiência musical, basta ouvir com atenção e sensibilidade. Mas a constante preocupação de Tom Jobim em relacionar a sua produção musical com o seu lugar na sociedade e na natureza nos leva a compreender outra perspectiva: a de que há uma forte ligação entre o texto musical e o seu contexto; entre a atmosfera dos timbres e o ambiente social, entre as sensações provocadas pelos sons e os sentimentos e desejos próprios do lugar de onde surgem esses sons. “Toda arte é ligada ao seu tempo”, conforme ele afirma.

Portanto, esse volume da série Encontros dedicado a Tom Jobim amplia para seus fãs a força de sua obra ao associá-la de forma contundente a suas ideias. Tom não tem medo de abrir sua cabeça e sua alma, de arriscar vôos poéticos e de ser pragmático e didático quando necessário. Vale lembrar que a obra do maestro já foi amplamente estudada e dissecada por diversos livros, artigos, cancioneiros e biografias. Os que conhecem esses trabalhos verão que muitas informações preciosas vieram de algumas das entrevistas a seguir, como o clássico depoimento para o Museu da Imagem e do Som. Nesta ocasião, quando foi entrevistado por Vinícius, Chico Buarque, Oscar Niemeyer e outros, ele fez um longo relato de sua trajetória, desde o nascimento até o momento da entrevista, realizada em 1967. E todos aqueles que se debruçaram sobre seu trabalho são unânimes em apontar a junção da beleza e classe do compositor com a clareza e leveza do contador de histórias que era Tom Jobim.

Na sua derradeira entrevista, ao refletir sobre a necessidade de se manter ativo profissionalmente, Jobim sentencia com certo amargor sua descrença em relação às discussões sobre posteridade. Cansado de servir de alvo a críticas caducas, pobres e repetitivas, ele afirma que só são publicadas e discutidas as anedotas, justamente aquilo “que não interessa”. Conforme ele aponta, essas anedotas e picuinhas que são publicadas em jornais não dão conta da complexidade do universo cultural, nem da força da criação artística. Que este volume de entrevista de Tom Jobim sirva para, ao contrário do que diz essa declaração desiludida acerca da capacidade das palavras, continuarmos reafirmando o que realmente importa: nosso maestro soberano foi Antônio Brasileiro.

Matita Perê – Tom Jobim e Paulo Cesar Pinheiro

A canção esgarçada e a canção expandida – Tom Jobim

Bem, antes de tudo, que raio é a própria canção? Pergunta simples, resposta comprida.

O formato canção pressupõe, primeiro que tudo, uma interação entre música e letra, ou seja, uma relação entre a lingua articulada, a fala, e a música – aí incluída melodia, harmonia, arranjo etc. Isto tem algumas implicações, porque a língua falada já tem uma melodia ela própria, a intonação, que varia de língua para língua, e de região a região (caso dos sotaques), o que torna esta interação um problema a ser resolvido – como manter a coerência, reforçar a significação da palavra – ou contradizê-la sem efraquecê-la, etc. Saber aproveitar a melodia já existente na língua falada para criar a melodia, ou distanciar-se dela sem perder a ligação. Este é o ofício fundamental do compositor

Mas há um segundo aspecto. Uma canção sempre conta uma história em algum nível, mesmo que não uma história com personagens. Por isso, tem começo, meio, fim, e uma estrutura. Estrofes. Refrão. E a partir daí uma possibilidade quase infinita de combinações e desdobramentos. O formato básico AB, o ternário ABA, o rondó ABACA, servem de esqueleto para muitas outras variações, que estarão sempre a serviço da sequência de pensamentos, acontecimentos, sentimentos que são descritos. Sobre a relação entre esta forma e o seu conteúdo, pilhas e pilhas de estudos. E a discussão formal de até aonde se pode ir sem descaracterizar o formato. Uma vez participei de um festival da canção em que uma composição, belíssima por sinal, foi desclassificada de antemão com o argumento (exdrúxulo, por sinal) de que não se tratava de uma canção, mas de uma rapsódia!

Porém, se a estrutura de uma canção é firme suficiente para dar sustentação à narrativa, é comparável também a comparável a uma trama ou um tecido, que tem a sua elasticidade e flexibilidade. E em alguns momentos esta estrutura é esgarçada até próximo de seu limite.

Passarim – Tom Jobim

Tom Jobim conhecia como poucos os meandros da criação de uma canção. Se obras mais antigas como o Samba de uma nota só tem estruturas propositalmente simples – pois o foco no caso era bem outro, estava todo na relação letra/melodia -,  no período pós-bossa nova atingiu tremendas complexidades, como em Matita Perê (esta sim, quase uma rapsódia), ou Luiza, que detrás de sua aparente singeleza esconde um padrão de voltas ao tema (inclusive transposto ou transfigurado) de lógica muito particular. Passarim tem uma estrutura ao mesmo tempo tremendamente simples e bastante complexa: só apresenta um formato de estrofe, que se repete três vezes: AAA. Só que esta estrofe é enorme, e vai tomando caminhos inesperados, com modulações repentinas entre a voz de Tom e o coro, além de uma ponte instrumental/vocal que, na verdade foi o ponto de partida da composição (era o tema da minissérie O Tempo e o Vento), até chegar a uma curtísisma coda que se origina do reinício da mesma estrofe. Parece uma desestruturação, mas a impressão é falsa; a estrutura está aí, firme, apenas esticada. Mas pode ser mais esticada.

Borzeguim – Tom Jobim

Aqui, o Tom radicaliza o processo, ainda mais do que já o fizera em Águas de março: Borzeguim é toda feita sobre uma única frase melódica descendente, repetida, explorada, abreviada, finalizada para o agudo, para o grave, não finalizada, desconstruída e reconstruída à exaustão. Não há exatamente estrofes, nem uma regra que guie o desenvolvimento, além da relação letra/melodia. Só que, se a letra de Passarim diz pouco – um amor que se foi, poucos detalhes a mais -, Borzeguim, nem isso: divagações soltas sobre a natureza e apelos à preservação, desamarrados entre si – ou melhor, amarrados pela repetição quase obsessiva do tema (um amigo meu já classificou Eu sei que vou te amar como a canção de um obsessivo-compulsivo, pela repetição do tema melódico cada vez mais agudo e com a mesma frase-título), e este conduzido pela harmonia.

Então chegamos ao ponto: o que amarra as estruturas destas duas canções não é a letra, difusa demais, nem a melodia, solta demais  no primeiro caso, concentrada demais no segundo: é a condução harmônica, o elemento originalmente mais acessório de uma canção. É como se a canção estivesse presa por um fio, como se o que a sustenta fosse justamente aquilo que nela é mais sutil. O resultado é uma sutilização da estrutura da canção, por se apoiar nesta teia tão fina. Borzeguim não está longe do mais longe que uma canção pode chegar em termos estruturais, tanto para o simples quanto para o complexo – há sempre a possibilidade de estendê-la em outras dimensões, como fez Arrigo Barnabé em Clara Crocodilo, apenas para citar um exemplo. Mas Tom não abre mão desta estrutura, ao contrário; aposta nela ao desenvolvê-la ao seu limite.

Escrevo tudo isso sem citar absolutamente nada relativo ao conceito que usei no título deste artigo. É proposital. Isto porque o que o Tom faz é, de certa forma, o oposto da canção expandida como foi pensada por José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski, e de que trata, em parte este artigo que trouxe aqui outro dia. Enquanto o Tom pegou um aspecto da canção e o levou ao seu extremo, mas mantendo-a estritamente estruturada, o que se vê recentemente é não um esgarçar da estrutura, mas um rasgar e recosturar, uma desestruturação que pode encontrar correlações com as artes plásticas e que chega bem tardiamente à Música Popular Brasileira, esta sigla tão polêmica e difícil de definir, por motivos que também vale a pena tentar desvendar. Assuntos vários que ficam para a sequência deste artigo – que já não sei se vai ser só de duas partes…

A propósito: tratei também deste tema por um prisma bem diferente – e sem conhecer o conceito do Wisnik e do Nestrovski – na série de dois artigos abaixo. É pano para a manga do assunto, divirtam-se.

Uma breve história no timbre – a ida
Uma breve história no timbre – a volta

A canção e o futebol

Uma vez Chico Buarque e Mané Garrincha se encontraram na Itália, e foram a um café bater papo. Chico falou de futebol, e Garrincha, de música. Chico ficou com a melhor das impressões, e conta que o Mané não mostrou nada da figura quase folclórica que ficou dele mais tarde: “era sensível, entendia João Gilberto”.

A relação entre música e futebol me parece a de um casal que se ama mas nem sempre se entende. Há as manifestações espontâneas das torcidas, criando cantos ou reinventando-os (a torcida do Fluminense cantando uma saudação ao Papa sempre me pareceu o fino do surrealismo. E o pior é que às vezes acontecia um milagre mesmo). Há também os funks divulgados oportunisticamente na esteira de vitórias, exaltando clubes ou jogadores. São manifestações extremamente saudáveis e que mostram a vitalidade criativa da nossa cultura, versões atualizadas do folclore. E, no outro extremo, há as tentativas várias de tradução direta da estética futebolística para dentro da pauta, para a linguagem musical.

Quem transita entre estes dois mundos com maior desenvoltura é Jorge Benjor. Canções como Fio Maravilha e Umbabarauma (Ponta de lança africano) encontram-se exatamente na fronteira entre eles, e conseguem ao mesmo tempo fazer a louvação e/ou a crônica de forma próxima da espontaneidade da torcida, e colocar em seus elementos correspondências com elementos futebolísticos – o drible, o chute, o suspense da jogada ainda inconclusa (quando a respiração de todo um estádio fica em suspenso), como na primeira parte de Fio Maravilha, aguardando a explosão do gol que vem na segunda parte. É uma partida de futebol, do Skank, segue a mesma trilha.

E na outra ponta desta equação ficam canções como esta:

O Futebol é do álbum de 1989 do Chico. Tive a idéia de falar da música depois de ler este post do Blog do Chico (outro Chico, o Assis Furriel), em que ele decupa a música do ponto de vista futebolístico. Aqui vai seu complemento, falando do ponto de vista musical. Se O Futebol, esportivamente falando, é filha das seleções de 58 a 70 e do futebol brasileiro de então, musicalmente é filha dileta da bossa nova, ou mais especificamente, de duas de suas canções-chave, contrárias e gêmeas, que são Desafinado e Samba de uma nota só.

As histórias e análises destas duas canções de Tom Jobim e Newton Mendonça  são bastante conhecidas. Desafinado foi composta como uma resposta irônica às críticas que a recém-nascida Bossa Nova recebia, como “música de desafinado”. Tom e Newton colocam a melodia sempre nas dissonâncias dos acordes e criam uma melodia sinuosa que nunca vai na direção esperada. Já o Samba de uma nota só segue o caminho inverso: põe a melodia em linha reta enquanto a harmonia se move embaixo dela, como se o corredor ficasse parado enquanto o chão é que corre. José Miguel Wisnik analisa Desafinado na série O Fim da Canção – link aí ao lado – e um post deste blog tirado do blog Doida Canção – link ao lado – trata do Samba de uma nota só.

E O futebol então toma para si o melhor de dois mundos. Sua melodia busca reproduzir a imponderabilidade do jogo, ao mesmo tempo que traça uma vaga geometria – paralelas, diagonais, parábolas – e ainda relacionar esta geometria com questões estéticas – para emplacar em que pinacoteca, para emplacar o visual de um chute a gol. Ora a melodia avança em zigue-zague, equilibrando-se improvavelmente nas notas de ponta dos acordes, como Desafinado, como em para aplicar uma firula exata; ora se lança de repente em linha reta como o Samba de uma nota só, como em para avisar a finta enfim – e o verso seguinte, novamente sinuoso, enganoso: quando não é… e a palavra seguinte evoca a melodia em linha reta anterior em apenas uma sílaba, ameaçando segui-la novamente: sim… e a estrofe termina com a evocação agora da segunda frase, completando o sentido e o drible no ouvinte: no contrapé. Como as súbitas quase-arrancadas de Garrincha, em que o adversário ia e a bola ficava…

Poderia citar diversos outros exemplos desta interação absoluta entre melodia, letra e harmonia, desta interação entre as duas opostas/iguais da Bossa Nova. Como no verso para avançar na vaga geometria, que avança em curva, para logo depois desenhar o corredor em linha reta, euclidiano; e a paralela do impossível é obviamente curva… e o sentimento diagonal é reto, mas com o chão harmônico se movendo, de modo a tornar diagonal a linha reta da melodia; e vai por aí afora.

Mas não posso deixar de tratar da dedicatória em forma de locução de futebol que Chico acrescenta no final. Trata-se de apenas uma frase melódica, que começa em linha reta no agudo para depois descender e terminar suavemente. Para Mané, para Didi, para Mané (a matriz futebolísitca é de quando jogadores não se chamavam Maicossuel ou Fábio Rochemback), em ritmo rápido e entrecortado, numa linha reta que tem sentido diferente das anteriores, remetendo ao grito do locutor; e que aos poucos se converte numa lista emocionada de dedicatórias: para Pagão, para Pelé e Canhoteiro. Nesta curva descendente da melodia, o futebol se converte de uma diversão de massas (simbolizada na figura do locutor) para uma vivência particular e uma lembrança do próprio Chico, que é compartilhada com o ouvinte.

O Futebol é uma canção sofisticada, como o próprio futebol pode ser, quando bem jogado. Não é definitivamente para ser cantada por uma torcida em coro num estádio, mas para ser sentida em termos pessoais, até intimistas, como a Bossa Nova. É uma das múltiplas possibilidades de união entre estas duas grandes forças da cultura do país. Como Chico e Garrincha batendo papo numa mesa de bar. À sombra de João Gilberto.

O Futebol – versão ao piano solo – André Mehmari

(essa vai de brinde)

… E de Tom a Guinga

Uma vez assisti a um workshop no Guinga na Escola de Música Villa-Lobos, no Rio. Workshop, no caso do Guinga, consiste em ele tocar suas músicas e bater papo com o público. Contou como foi a parceria com o Chico, que havia saído há pouco tempo. Chico partiu em turnê, mas não incluiu a canção no repertório do show porque não conseguia tocá-la com desenvoltura, os acordes não faziam parte do seu repertório harmônico. Perguntado se iria enviar novas músicas para o Chico letrar, Guinga disse que sim, claro. Ao que um gaiato na platéia disse: “Vê se na próxima vez manda uma que ele consiga tocar!” O gaiato era eu. Guinga soltou uma gargalhada e disse que ia contar a maldade para o Chico.

Mas o que eu ia contar não era nada disso, e sim que outra pergunta foi sobre a música que ele ouvia em casa. A platéia de estudantes de música, praticamente todos de música popular, se surpreendeu ao ouvi-lo dizer: Debussy.

O jornalista Hugo Sukman, em 2004, ao tratar do lançamento de um album do quarteto de violões Maogani, apadrinhado por Guinga, escreveu:

O MAOGANI é parte da corrente ‘impressionista’ da música brasileira, de Debussy-Villa, que vai desembocar em Edu Lobo e no padrinho Guinga.

De passagem, Hugo traçou uma linha de influência que atravessa todo o século XX: Debussy > Villa-Lobos> Tom Jobim > Edu Lobo > Guinga. Cada um destes retrabalha esta influência e passa o bastão adiante. Villa é influenciado por Debussy muito mais no início da carreira, como nas obras que apresentou na Semana da Arte Moderna de 22. Mais tarde, Villa se torna o multiprocessador que produziu obras de estilos díspares e misturou estilos e tendências de maneira desnorteante. Mas uma parte de sua obra orquestral continuou próxima de sua primeira formação, além de sua proximidade com a música popular, especialmente o choro, ter um paralelo com o interesse de Debussy pelo jazz.

Em entrevista a Almir Chediak, Tom afirmou que ” Villa-Lobos e Debussy são influências profundas na minha cabeça”. Nada mais natural que o interesse de Villa pela música popular desaguasse numa influência profunda nos compositores populares. E Tom, de todos, foi talvez o que mais se interessou também pelas questões orquestrais.

Tom ingressou na Gravadora Continental em 1952, onde trabalhou com Radamés Gnátalli. Com vinte e poucos anos, compôs uma peça para piano e orquestra chamada Lenda, e com 28 anos, a instâncias de Radamés, regeu a peça na Rádio Nacional. A obra tinha influência clara do Impressionismo de Debussy.

Mas seria possível afirmar que mais tarde, depois da irrupção da Bossa-Nova, Tom teria deixado de lado a fase sinfônica. Não é bem assim. Peças complexas posteriores, como Trem para Cordisburgo e Saudades do Brazil, levaram adiante as pesquisas de Tom, sem falar dos desenhos melódicos de canções como Luiza, de filiação direta com a música de Villa. Além disso, o próprio Tom reconhecia a influência de Debussy e Ravel ao lado do jazz na harmonia expandida da Bossa-Nova. Se em composições como o Samba de uma nota só há encadeamentos harmônicos, digamos, tradicionais, como o famoso 2-5, estruturando a harmonia, em canções posteriores (como na própria Luiza), o encadeamento de acordes chega ao limite dos ditames da chamada harmonia funcional.

Quanto a Edu Lobo, seria suficiente repetir aqui o que Tom Jobim escreveu no SongBook de Edu: “Eu voz saúdo em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avó e meu pai  – Um Antônio Brasileiro”. Mas o próprio Edu se encarrega de explicitar sua filiação ao gravar O Trenzinho do Caipira, movimento das Bachianas Brasileiras nº 2, com praticamente o arranjo original, “à exceção de dois acordes”, segundo o próprio (a letra é de Ferreira Gullar). Ou de buscar no folclore inspiração para Ponteio, Arrastão, Viola Fora de Moda.

Além disso, Edu é outro com formação teórica sólida. Em 1968, decidiu abandonar a carreira como cantor e se dedicar a estudar harmonia, orquestração e teoria musical em Los Angeles. Sua relação com o jazz, que já vinha da Bossa-Nova, fortaleceu-se ainda mais, mas ele nunca teve a intenção de abrir mão de sua brasilidade. Pelo contrário, é a partir daí que a identificação de sua obra com a de Villa-lobos e Tom Jobim torna-se mais forte. Não que já não houvesse esta identificação.

Ao concorrer para o I Festival da TV Excelsior com a música Arrastão, em 1965, um dos jurados, Eumir Deodato, acusou a música de ser plágio de Villa-Lobos. Roberto Freire, que também participava do júri, sendo conhecedor da obra de Villa-Lobos, exigiu a partitura que confirmava o plágio. A tal partitura nunca apareceu. Má-fé ou não, é possível que essa equivocada afirmação só tenha podido ser manifestada em função de alguma familiaridade percebida na sonoridade de Arrastão com alguma composição de Villa-Lobos, já que o ouvido de quem levantou a dúvida não era de um leigo, e sim de um músico e compositor.” (Esta citação vem de Edu Lobo: o Terceiro Vértice, tese de mestrado de Mônica Chateaubriand Diniz Pires e Albuquerque, encontrável aqui)

Porém, a partir de sua volta para o Brasil é que ele vai criar canções como Beatriz e Choro Bandido – esta gravada por ele com Tom Jobim mais tarde – em que o trabalho melódico/harmônico vai se revelar como uma continuidade histórica de seus predecessores. Beatriz, particularmente, em sua parte A, tem basicamente a mesma frase musical repetida em alturas cada vez maiores, com poucas adaptações, deixando à harmonia a tarefa de ir criando as nuances interpretativas; e na parte B, tem uma harmonia que vai adernando para fora da tonalidade por uma série de encadeamentos 2-5 e acordes sub-5 – técnicas que Debussy (a primeira) e Tom (ambas) souberam utilizar como ninguém – vide aqui.

E chegamos a Guinga. Em sua tese de mestrado, Um Violonista-Compositor Brasileiro: Guinga. A Presença do Idiomoatismo em sua Música (disponível aqui), o igualmente violonista-compositor Thomas Saboga conta:

Em um trecho de entrevista, perguntado sobre Villa-Lobos, Guinga afirma ter sido quem mudou seu pensamento musical. Após a audição de suas músicas, afirma Guinga: “É esse o Brasil que eu quero”. Guinga atribui a Villa-Lobos ao mesmo tempo uma grandeza musical e um mérito pelo seu projeto nacional-musical. Em outra entrevista, o compositor pesquisado falou novamente em Villa-Lobos, sugerindo um impressionismo brasileiro, “fundado” pelo compositor nacionalista. Nesta entrevista, Guinga reage à pergunta em referência aos impressionistas franceses fazendo alusão a Villa-Lobos, como se a música daqueles viesse destilada pelo prisma do compositor brasileiro. Assim, esse “impressionismo brasileiro”, termo cunhado por Guinga, retraduziria em escala brasileira as referidas influências estrangeiras, em sua percepção.

A forma de construção de melodias usada por Guinga, frequentemente a partir de arpejos dissonantes, guarda uma íntima relação com este impressionismo brasileiro de que ele fala, além de ser um idioma tipicamente violonístico, pois a melodia de notas que continuam ressoando quando a outra já foi tocada perde seu efeito ao ser reproduzida em instrumentos melódicos. Um claro exemplo disso é  Canção do Lobisomem, em que, na sequência de acordes dissonantes, subitamente surge um arpejo ascendente da tríade de sol maior, sem dissonância alguma (e que Aldir Blanc habilmente aproveita para colocar a frase “quando não espero é que Deus dá“). O violão trata de tocar exatamente a melodia cantada, para preserver o efeito da ressonância dos arpejos.

Há, porém, uma diferença entre os usos de Villa e de Guinga dessas técnicas: Guinga é um compositor popular, e gosta disso. Saboga sugere que Guinga ” apreende as técnicas composicionais das vanguardas representadas por (Leo)Brouwer e Villa-Lobos, e as adapta dentro de suas necessidades estéticas, trazendo-as para um campo harmônico mais claramente tonal.” Caminho parecido ao traçado por Tom e principalmente por Edu Lobo, no rastro de pesquisas como a de Guerra Peixe. De resto, Guinga compôs uma Villalobiana, gravada no álbum Casa de Villa. E também uma Jobiniana, que, com letra de Aldir, virou Pra quem quiser me visitar. E mais não preciso dizer.

Canto Triste – Edu Lobo e Vinícius de Morais, com Gal Costa e Jacques Morelembaum

Canção do Lobisomem – Guinga e Aldir Blanc

De Debussy a Tom…

Este post vem do blog Doida Canção, escrito pelo carioca/parisience Paulo da Costa e Silva. O blog é pequeno e existe há pouco tempo, mas as análises musicais são de primeiríssima linha. Esta vem a calhar com algo que já penso há um bom tempo, e que vou dar continuação mais adiante.

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Em muitas de suas músicas, Tom Jobim cria uma estrutura melódica mínima, baseada em poucas notas que serão repetida sob diferentes caminhos harmônicos. Para que isso funcione bem, para que essas melodias mínimas não percam em impacto emocional, não se tornem pobres, foi preciso que houvesse um desenvolvimento, uma ampliação do uso expressivo dos acordes. A tensão subtraída à melodia, agora sumariamente reduzida, é compensada por uma harmonia rica, dissonante. A fórmula soa paradoxal: um elemento ultra simplificado é imantado por outro de extrema complexidade; a timidez melódica apóia-se na exuberância harmônica. Esta, por sua vez, altera a percepção que se tem da melodia – e aí está a jogada. Vamos imaginar a cena de um teatro-canção. Os acordes formam o cenário enquanto a melodia é o personagem principal. A própria forma como percebemos este último vai depender da moldura que o enquadra. Se o pano de fundo for um hospital, o ator vestido de branco será um médico; se for um terreiro de candomblé, será um pai-de-santo, e por aí vai. Com grande domínio da matéria musical, Jobim extraía o máximo dessas junções e deslocamentos, podemos dizer, entre figura e fundo. Como disse Jacques Morelembaum, ele sabia o exato significado de uma nota sob um acorde.

Talvez o exemplo mais radical desse modo de compor seja o Samba de Uma Nota Só. Na primeira parte (Eis aqui este sambinha…) a melodia permanece praticamente estática, apoiada numa só nota, enquanto a harmonia não cessa de se modificar, deslizando cromaticamente entre dissonâncias. Na segunda (Quanta gente existe por aí…) é a melodia que passa a se deslocar por todas as notas da escala, e a harmonia, se não chega a ficar parada num só acorde, torna-se no geral mais simples, sem grandes dissonâncias, evoluindo em convencionais saltos de quinta – e não mais no deslizamento cromático do início. A composição se estrutura a partir do desdobramento de uma célula mínima que projeta diferentes harmonias e jamais retorna sobre si mesma (o mais corrente entre os compositores populares é justamente o oposto: organizar a canção em torno de um ciclo harmônico mais ou menos fechado, que vai sendo preenchido pela melodia).

Lorenzo Mammì chamou a atenção para a singularidade desse modo criar e para as semelhanças que ele nutre com procedimentos da música clássica. É na maneira de construir que Tom mais se aproxima de seus mestres do universo erudito. De Villa-Lobos, nas extensas linhas melódicas feitas da transposição de pequenos intervalos para cima e para baixo, como em Chega de SaudadeSabiá. De Chopin, no fato de colocar a melodia como centro estrutural da composição. De Debussy, na complexidade e no uso da harmonia. Em Prélude à l’Après Midi d’Un FauneNuages, entre outras, o compositor francês brinca de repetir pequenas frases sob diferentes luzes harmônicas. Os ouvintes do fim do século XIX acharam graça, pois não conseguiam reconhecer ali a presença de uma melodia. Impregnados da sensibilidade romântica, acostumados aos grandes rodopios do desenvolvimento temático, eles não entendiam bem aquelas frases paradas, repetidas várias vezes e sem concatenações legíveis. Com dificuldades para descrever aquele universo, os críticos viram nos acordes flutuantes, soltos, desencadeados do fio de causa e efeito do fluxo tonal, a tradução musical da técnica de compor quadros a partir de pequenas manchas de cores, aparentemente desconectadas entre si. Debussy foi tachado de impressionista.

A ausência de desenvolvimento do material temático e a comparação com pinturas não queriam dizer, contudo, que sua música fosse estática. Havia movimento ali, mas um movimento distinto daquele encontrado em seu grande predecessor, Wagner. Em Debussy, o material melódico torna-se ainda mais cristalizado, o foco sendo jogado sobre harmonias quase auto-suficientes, sem traços de concatenação necessária, interligadas mais por analogias. Ele interrompia assim o fluxo tonal, levado ao seu momento de agitação máxima pelo cromatismo romântico, sem no entanto abandonar a tonalidade. Incorporava a técnica de Wagner e a desligava por dentro. Com isso, reagia contra a grandiloqüência romântica e trazia a música para uma temporalidade circunscrita a um espaço mais exíguo e, ao mesmo tempo, mais amplo e imprevisível – um pouco daquilo que Bachelard chamou de “imensidão íntima”.

É natural que Jobim tenha ido nessa fonte buscar alguns dos elementos que lhe possibilitaram formar o delicado intimismo urbano da bossa nova: o modo sutil de construir melodias que nos comunicam uma temporalidade suspensa, meio onírica. E aqui podemos falar em qualidades semelhantes, compartilhadas por Tom e Debussy: a impossibilidade de repetição – a nota que volta sob outro acorde já não é a mesma nota – e a ênfase na sensação do instante. De fato, Debussy parece ser um dos primeiros compositores a explorar de modo consciente o espectro puro do som como material expressivo. Ou seja, a sonoridade pelo que contém de bruto e imediato, de espacialidade e impacto corporal, e não tanto por sua vinculação ao tecido codificado de uma gramática musical. Com ele, comenta Pierre Boulez, “o movente e o instante fazem irrupção dentro da música”.

Algo parecido ocorre com as pinturas impressionistas. Sempre é complicado falar de tempo numa arte espacial e de espaço numa arte temporal, mas a geração de Monet dispensou as grandes narrativas em prol da captação da natureza como processo, como devir, como sucessão de instantes precisos e insubstituíveis. Ancorou-se no presente. Também elas produziram uma espécie de “poética do instante” – instantes que deveriam ser evocados menos como descrição ou entendimento intelectual e mais como sensação. A série de pinturas da catedral de Rouen (uma delas ilustra este texto) é um ótimo exemplo. Monet pinta a mesma fachada em diferentes horários do dia, com ligeiras mudanças de ponto de vista. Cria uma espécie de narrativa do instante – o lugar revisitado jamais é o mesmo.

Difícil falar de uma influência direta da pintura sobre a música de Debussy. Quando L’Après-Midi d’Un Faune, sua primeira peça madura, veio à luz, em 1894, o impressionismo já havia sido “ultrapassado” por outras correntes artísticas. O compositor parece ter sido bem mais influenciado pela literatura do seu tempo. De fato, Debussy foi um grande criador de mélodies – o equivalente francês dolied alemão. Foi através da prática de musicar os versos de Verlaine, Mallarmé e Baudelaire (o pai dos simbolistas), de adequar sons e palavras, de mergulhar fundo no trabalho da língua francesa, que ele desenvolveu o que há de mais determinante em seu estilo. Mammì chega a sugerir que “é tentando combinar a modulação contínua de Wagner com as repetições obsessivas de alguns poemas dos Fleurs du Mal (Cinq Poèmes de Baudelaire, 1889), muito mais que por uma súbita influência exótica, que Debussy alcançará um estilo pessoal”. Ou seja: a relação com a palavra foi decisiva no desenvolvimento de sua música.

Proses Lyriques – Claude Debussy (I- De rêve)

Derradeira Primavera – Tom Jobim e Vinícius de Morais, com Gal Costa

Bossa-Nova Totalflex

Uma vez fui parado no Largo da Carioca por uma equipe de reportagem do programa Afinando a Língua, que é apresentado pelo Tony Bellotto no Canal Futura. O programa não é exatamente dedicado à música, antes usa letras musicais para estudar a língua portuguesa. A pergunta que me fizeram: se eu já havia aprendido uma palavra nova ao ouvir uma canção, e qual.

Não sei se a resposta que dei chegou a ser aproveitada. Mas a pergunta serviu para fazer ali mesmo um paralelo de que gostei. Lembrei de Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça, em que se canta:

Fotografei você na minha RolleiFlex
Revelou-se a sua enorme ingratidão

Não tinha a menor idéia do que seria uma RolleiFlex, uma câmera fotográfica profissional e sofisticada,  quando conheci a música. Anos depois, soube também das circunstâncias em que esta música foi composta, como resposta aos críticos da nascente Bossa-Nova, e que Tom e Newton riam às gargalhadas dos versos “mudernos” que iam criando, este em particular.

Anos depois, ouvi Navilouca, do primeiro álbum de Pedro Luís e a Parede, em que ele canta:

Fotografei você na minha DragoFlex
De olhar aceso esperando por mim

Pronto, embatuquei de novo, até descobrir que se tratava de um tipo de cama dobravel, feita de armações de metal, molas e cobertura de lona.

Esta foi a resposta que dei. Agora, se foi aproveitada, talvez tenha sido possível perceber uma sutileza da citação do Pedro Luís. No verso original de Desafinado, a RolleiFlex, estando nas mãos de quem fotografa, tem também uma proximidade semântica com ele, sendo um adjunto do sujeito. Já em Navilouca, a DragoFlex está próxima semanticamente (e fisicamente também) à fotografada, e portanto é adjunto do objeto em termos sintáticos. Isto por causa da troca de metade de uma palavra. E acompanhando a análise sintática, a narrativa amorosa também se inverte: de Bossa-Nova de desencontro amoroso, ainda que farsesca, converte-se em promessa de encontro.

Como também Pedro Luís promove diversos encontros nesta canção, tocando bossa na guitarra, colocando no título a revista de poesia fundada por Torquato Neto e Wally Salomão, que teve um único número que Torquato não chegou a ver – suicidou-se antes. Na letra, na melodia, no arranjo, na interpretação que sobe uma oitava e passa ao grito na segunda vez, Pedro Luís faz da Bossa-Nova pedra rolando. Se o Tony Bellotto se interessar, fica a dica.

É pra você, é o Chico Buarque

Uma vez ouvi do José Miguel Wisnik uma curiosa anotação sobre a obra de Chico Buarque. Ele tratou da atualização do Chico como cronista do cotidiano fazendo a relação de três canções de épocas diferentes que tem como elemento importante o mesmo objeto: o telefone. Em cada uma delas, são traçadas relações diversas entre o aparelho e os personagens das canções, mas sempre ilustrando a capacidade do Chico de se utilizar desta atualização das relações de forma dramática, funcional nos enredos que canta.

Bye Bye, Brasil, dele com Roberto Menescal e feita em 1978 para o filme homônimo de Cacá Diegues, é inteiramente construída sobre um diálogo – na verdade um monólogo – telefônico. A ligação é um DDD feita de um orelhão com fichas, ressaltando e ironizando, no espírito do filme, a propaganda de um Brasil grande e integrado feita pelo governo militar.

Anos Dourados, composta com Tom Jobim em 1986 para a série homônima da Rede Globo (mas a letra não ficou pronta a tempo), tem toda a trama da letra partindo de uma mensagem deixada na secretária eletrônica da ex-amante, depois de anos. Nesta, a crítica política ou social é deixada um pouco de lado, embora se possa fazer uma ilação de classe social – em 86, não era tão comum ter secretária eletrônica, pois nem mesmo telefones eram tão assessíveis. Mas o principal aqui é o aparelho, como na anterior, ressaltando uma distância que, se em Bye Bye Brasil era física, agora é, digamos, psicológica.

Iracema voou, apenas de Chico, composta em 1998 para o álbum As Cidades, tem no telefone um coadjuvante, em contraste com as outras duas. Mas um coadjuvante de luxo. Iracema, ex-empregada doméstica emigrada para os EUA, faz ligações DDI a cobrar para o ex-patrão. Aqui, volta a ironia fina de Chico a retratar uma questão social, a ida de brasileiros para o chamado primeiro mundo, onde vivem clandestinos das sobras do capitalismo desenvolvido – e ainda assim melhor do que aqui. O contraste civilizatório é expresso pelo anagrama Iracema/ América, e o telefone então, em vez de ser o símbolo de um afastamento, é, ao contrario, o meio real de uma reaproximação com sua cultura, seu passado, sua origem.

Wisnik, na época em que o ouvi fazer estas considerações (muito mais resumidas que aqui, onde as desenvolvi), não tinha como imaginar onde iriam as novas tecnologias, uma vez que celulares ainda eram uma relativa novidade. Mas as três canções de Chico cobrem um período de vinte anos – e já se passaram mais oito. Está na época de ele fazer uma canção que use os celulares como elemento, fazendo mais uma vez a atualização da crônica de seu tempo. Mal posso esperar para saber como será.