A melodia do rap – Emicida

Num excelente artigo para a revista digital de cultura Celeuma, o pesquisador Walter Garcia partiu de João Gilberto, objeto de seu livro Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto, e ao chegar em Chico Buarque, continuador natural da tradiçõo da Bossa-Nova, tomou um desvio para traçar uma ponte até os Racionais MCs. Ao traçar as linhas mestras da Bossa, resumiu:

1.no trabalho de Tom Jobim, “o predomínio absoluto da linha melódica” sobre outros parâmetros musicais – harmonia, arranjo, orquestração; 2.no trabalho de João Gilberto, o “horizonte ideal” de seu canto: “um ponto em que seja suficiente falar com perfeição para que a linha melódica brote espontaneamente da palavra, uma vez encontrada a inflexão e a cor exata de cada sílaba”; 3.ainda no trabalho de João Gilberto, o pulso musical que, ao relativizar a “oposição forte/fraco”, configuraria “uma pulsação doméstica, o correr indefinido das horas em que ficamos em casa”.

Muito bem, sintetizando muito para termos um ponto de partida, a Bossa-nova estiliza o samba, que por sua vez se estruturara como célula rítmica estável a partir de uma profusão de divisões que se resumia (mas não se limitava) ao paradigma do tresillo descrito por Carlos Sandroni no livro Feitiço Decente. É esta estruturação/estilização que permite construir sobre ela o edifício melódico/harmônico de Tom Jobim, e também a João Gilberto, firmemente apoiado na divisão complexa/concisa que criou, estabelecer a infinidade de variações entre sua voz e a batida de seu violão. Lorenzo Mammi, no já clássico artigo João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova, parte da premissa-chavão (mas nem por isso falsa) da Bossa como uma manifestação da classe média carioca. Estabelece-se então uma espécie de consenso de classes em que o samba, assimilado e digerido como o ritmo nacional, é alçado a uma condição estética de construção de um projeto de país, uma utopia, uma… promessa de felicidade. Walter aqui remete-se a Sérgio Buarque de Hollanda e ao tipo do homem cordial, protótipo do brasileiro, que desconhece “qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo”. A matéria histórica em que se assenta a cordialidade é a supremacia dos domínios rurais sobre os centros urbanos, o que significa dizer que a ética cordial – a supremacia das relações afetivas, das vontades particulares,da opinião tradicional sobre os princípios neutros e abstratos, sobre as normas antiparticularistas de organização social – dá prova da “persistência dos velhos padrões coloniais” (citando Walter que cita Sérgio). Pois bem: exatamente este acordo cordial que o rap vai quebrar, e é isto que seu som mostra distintamente. Tecnicamente falando, a não melodia do rap é um ato político que abre espaço para a liberdade rítmica. A voz de Emicida (e já explico porque o tomo como objeto deste segundo texto) atua no ritmo como uma espécie de repique. A voz repica tempos fracos do compasso acumulando síncopes sobre o tempo quadrado da bateria eletrônica. O improviso – e o desafio – não é só de letra, mas de domínio do tempo. Este é o ponto a ser discutido. A música oriental nega a harmonia para desenvolver a melodia microtonal (o funk carioca, por caminhos muitos diferentes, partilha esta escolha). O rap, mais radical, nega a melodia, ou faz a não-melodia (mas aceita ocasionalmente a harmonia, porém desfuncionalizada, que não desenvolve papel preponderante ao não ser justificada pela melodia) para que o ritmo floresça. Walter Garcia, neste artigo, trata de como os Racionais fazem a acentuação tônica sobre os tempos fracos do compasso – como um surdo de escola de samba também faz. Porém, Emicida leva mais longe este jogo, variando a acentuação como numa dança, de forma mais radical que os Racionais, algo que se evidencia ela simples audição – tudo soa menos quadrado, há uma malemolência que não é só rítmica, mas também formal, e de ideia. Neste ponto, um encontro estilístico entre João e não tanto Racionais, mas Emicida. João se esmerou meticulosamente na divisão rítmica. A relação entre a batida de seu violão e a divisão de sua voz é o grande segredo da Bossa-Nova. A música dos Racionais não tem a divisão complexa de Emicida (embora sua divisão seja também plena de implicações). É como se não-melodia dos Racionais fosse a preparação necessária para a divisão complexa de Emicida. Como que para compensar esta divisão complexa (que tira um pouco da atenção da letra pela estilização, enquanto os Racionais optam pela não estilização rítmica em favor absoluto da letra, uma urgência de se fazer ouvir que sacrifica tudo pela mensagem), Emicida se permite esta estilização. Como compensação pela divisão irregular de sua fala, recorre ao refrão cantado – por Wilson das Neves em Trepadeira, por Pitty em Hoje Cedo (faixas do álbum de Emicida O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui), tomando um caminho timidamente pop, como uma concessão ao ouvinte, mas também como consequência desta mesma estilização. Sua sua música se complexifica também pelo contraste entre estes dois caminhos opostos e simultâneos. Isto é uma aproximação com a MPB? Sim, mas também um aprofundamento natural do próprio Rap. Aqui percebo uma diferença fundamental entre Racionais e Emicida no modo de contar suas histórias. O que os Racionais MCs tratam como princípio, regra geral mesmo ao relatarem experiências pessoais, Emicida se permite tratar efetivamente no nível da vivência. Sua primeira pessoa é reconhecível como ele próprio, não a persona que os raps dos Racionais apresentam de forma épica, quase mítica. Se o que torna os Racionais especiais é justamente a capacidade de transformar em relatos transcendentes as histórias terríveis da Sobrevivência no Inferno – para citar o título de seu álbum mais conhecido, por outro lado Emicida tem como fazer o retorno à narrativa do caso particular como que numa exemplificação de linhas filosóficas enunciadas pelos Racionais, e isso exatamente por se sustentar nelas. A perda do pai contada de forma pungente em Crisântemo, o invejoso contumaz protagonista de Zoião, a mina falsa de Trepadeira, são histórias palpáveis, reais e intransferíveis, mas também gerais a ponto de gerar empatia em dois públicos: o que não sabe nada das quebradas pode se identificar com as ideias gerais; e o que ouviu Racionais e sabe das quebradas, e vai saber da significação destas histórias dentro destes lugares, ressignificados pelo entorno. Walter Garcia afirmou em entrevista:

IHU On-Line – Em que medida o seu estudo sobre João Gilberto, trazido no livro Bim Bom, contribui para o estudo da música dos Racionais MC’s? Como é percorrer o caminho que vai da bossa nova de João Gilberto ao rap dos Racionais MC’s? Walter Garcia – Não sei avaliar se a minha dissertação de mestrado sobre João Gilberto , depois publicada em livro, contribui ou não para o estudo dos Racionais MC’s . Mas penso que não há exatamente um caminho da “bossa nova” ao “rap”. Aliás, como não é nada fácil lidar com esses rótulos, seria melhor afirmar que não vejo um caminho que vá de João Gilberto aos Racionais MC’s. Penso, sim, que se formaram dois sistemas na canção brasileira de mercado (remeto-me à noção de sistema trabalhada por Antonio Candido na literatura, adaptando-a evidentemente às condições de realização da canção popular). Num desses sistemas, João Gilberto ocupa o lugar central. Noutro, o Racionais MC’s ocupa o lugar central.

Simbolicamente, é mesmo possível considerar o projeto musical dos Racionais como uma oposição feroz ao projeto MPB, pautado na melodia/harmonia de Tom Jobim. Porém, na sua não melodia há o eco de João Gilberto por negação, como um caminho de retorno: de um ponto em que seja suficiente falar com perfeição para que a linha melódica brote espontaneamente da palavra passa-se a outro ponto em que o falar impede propositalmente e peremptoriamente o surgimento desta melodia, como forma não apenas de realçar a letra, mas também de realçar exatamente este impedimento, um não elemento que se torna protagonista da música. São pontos opostos, porém estranhamente próximos. E através desta negação da melodia/harmonia, faz também a contraposição à música moldada pela e para a classe média, sua tomada de posição contra o consenso de classes que manteve uma delas submersa mesmo ao utilizar seus elementos para enriquecer-se esteticamente, a denúncia de que a promessa de felicidade que a Bossa Nova simbolizou não foi nem de longe cumprida para todos. Tomada de posição que se torna mais chocante exatamente pela insuspeita proximidade com um dos elementos básicos deste consenso, a relativização da oposição forte/fraco. Relativização mantida musicalmente mas negada socialmente. Aqui, um excurso necessário sobre Jorge Benjor: é fato que os Racionais sempre fizeram questão de frisar sua, não diria, filiação, mas ligação com a música de Jorge Ben. À parte interpretações sobre os pontos de contato estilísticos e musicais entre ambos e que mereceriam um artigo específico, há que se lembrar que, quando Ben surgiu no cenário da música brasileira, havia o programa Fino da Bossa, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, e o da Jovem Guarda, e foi neste último que Jorge Ben foi acolhido, pois o primeiro recusou-se a recebê-lo. Assim, há de início um estranhamento entre a Bossa-Nova e Jorge Ben, como que um reconhecimento de que não partiam da mesma matriz, a percepção de vocabulários que não dialogavam. Obviamente, ao longo do tempo, com o esgarçamento progressivo da sigla MPB e a inclusão de vertentes diversas (inclusive de boa parte da Jovem Guarda), esta situação se diluiu. Mas os Racionais em sua radicalidade, nos vêm lembrar desta divergência na raiz, aprofundando-a em sua música. O que percebo na música de Emicida representa talvez o princípio de um caminho de assimilação do rap à música brasileira, depois do desafio terrível lançado pelos Racionais MCs. Emicida segue na negação da melodia (abrindo no entanto caminho para ela no refrão eventual), mas diversifica a quebrada rítmica, reaproximando-se da música brasileira forjada a partir da Bossa por um caminho em que sua habilidade lhe garante segurança, ao mesmo tempo radicalizando o ritmo e flexibilizando seu uso. Por outro viés, pode-se ver o sintoma desta nuance nas duas polêmicas principais em que ele se envolveu nos últimos anos: sua prisão depois de um show em 2012 por ter sido acusado de incitar a violência contra a polícia, e a reação das feministas em 2013 à música Trepadeira. Escrevi em 2012 numa rede social:

É mesmo sintomático que o rapper Emicida tenha sido preso por cantar uma música, bem no dia 13 de maio. A frase que motivou sua prisão contestava a ação da polícia mineira na desocupação de um terreno ocupado por sem-terra. Aqui está: “Levanta o seu dedo do meio para a polícia que desocupa as famílias mais humildes, levanta o seu dedo do meio para os políticos que não respeitam a população e vem com ‘noiz’ nessa aqui, ó. Mandando todos eles se f…, certo, BH? A rua é ‘noiz'”. Lido o trecho, fica claro que ele nem sequer está ofendendo a instituição policial, ou coisa parecida, mas unicamente se referindo à ação. Emicida explicitava, como disseram Caetano e Gil, “como é que pretos, pobres e mulatos / E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”. A polícia concorda ao discordar do Emicida, agindo com ele exatamente como ele a acusou de agir com os sem-terra. O que não deixa de ser sinal de coerência.

A atitude contestatória de Emicida neste episódio não fica nada a dever à dos Racionais em termos de coerência – inclusive ao recusar-se a assinar o boletim de ocorrência que distorcia suas palavras, não fazendo de forma alguma o jogo do repressor. E no entanto, Trepadeira foi acusada pelos realizadores da Marcha das Vadias de repercutir o discurso hegemônico que deprecia a mulher sexualmente livre e justificar a violência com base no comportamento dela. Na letra, Emicida afirma que a mulher em questão Merece era uma surra de espada de São Jorge / um chá de comigo ninguém pode. O interessante é que este pretenso vacilo de Emicida se dá justamente numa faixa em que o ritmo não é hip-hop, mas samba (o samba que a Bossa-Nova resumiu, idealizou, transformou em consenso, projetou uma utopia de país etc.), em que o sambista veterano Wilson das Neves é convidado especial e canta a faixa junto com Emicida. É como se à aproximação com um universo de maior flexibilidade rítmica correspondesse também uma flexibilidade de posição pessoal, uma concessão à ética cordial, de fundo emotivo – e que, repetindo Sergio Buarque de Hollanda, revela em si, por sob camadas e camadas históricas, a persistência dos velhos padrões coloniais. Emicida se justificou com relação às críticas, inclusive se desculpando, mas não deixou de cantar a música. Trata-se, porém, de algo bem mais complexo que uma traição dos ideais ou uma rendição ao mercado. As duas posturas de Emicida, de defesa dos sem teto e de um eventual machismo, coexistem exatamente porque sua narrativa é pessoal, não ideal. E porque, ele se coloca, num passo histórico ainda pequeno adiante da ruptura dos Racionais (sem julgamentos estéticos aqui especificamente) no caminho da assimilação do rap pela música brasileira, que vem se alargando concentricamente desde o instante mesmo em que foi concebida como MPB. Sua contradição está implícita no consenso que se estende juntamente com a inclusão econômica ainda tímida promovida pelos últimos governos, e permite que a música feita para recusar seja aceita pelo que recusa. Porque, como reconhece dubiamente (talvez dialeticamente) Emicida na letra de Hoje cedo, A sociedade vende Jesus, porque não ia vender rap?

Triunfo

O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui – álbum completo

3 comentários em “A melodia do rap – Emicida

  1. Leonardo disse:

    Adoro falar de música

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  2. João de Carvalho disse:

    Caro Túlio, não sei se acho muito frutífero tratar do lado musical do rap pelo viés de um conceito tão restrito (e limitado históricamente) como a melodia… não percebo uma negação da melodia como vc desenvolveu e sim uma busca por outro domínio da musicalidade – que transcende o ritmo: o flow!. Talvez seja uma frescura conceitual minha, mas acho que faz diferença no balanço final… Creio que quando escutamos James Brown (por ele que o Paulo virou Mano Brown), e percebemos toda a dinâmica que levou ao surgimento do rap, tanto a atuação dos Racionais aparece como mais orgânica como a do Emicida se revela como mais um tijolo. Penso que é fundamental escutar as inovações de flow de figuras como o Sabotage e o Black Alien, por exemplo, ou, ainda mais próximo do Emicida, do Kamau. Fora isso, parabéns por ter encarado este tema! Curti bastante suas reflexões – principalmente o caminho final (conclusão) deste segundo post! Grande abraço!

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    • João, admito que escolhi um caminho espinhoso, mas foi de propósito, exatamente porque este é um aspecto do rap que sempre foi (erradamente) usado contra ele com a surrada apelação de “isto não é música”, pelo fato de não ter um elemento considerado básico. Minha análise estética do rap via melodia vai paralela à análise sociológica muito mais comum em que o rap aparece no Brasil como uma denúncia da insustentabilidade da aliança de classes da MPB, mantida meio à força por décadas, e que no entanto se sustenta sempre sendo arrombada por um novo movimento e readaptando-se em sua inclusão, como um espelho da sociedade brasileira que vai duramente tentando se tornar mais inclusiva também. Neste sentido, acho que minha análise da melodia se sustenta.
      Dito isto, o conceito de flow é muitíssimo interessante e precisa se mesmo explorado. Tenho a impressão de que ele está para a melodia assim como o riff (que vem do rock) está para a harmonia tradicional, como uma forma diferente de tratar o material, um ponto de partida diverso. Não acho que esta visão anule a outra, mas preciso mesmo tratar disso. Pretendo fazer ainda mais um post sobre o rap, centrado no Criolo, e vou ver como encaixar isso. Obrigado pela contribuição crítica. Abraço.

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