A melodia do rap – Criolo

No encarte de seu álbum de 1992, que tem por nome um símbolo que logo depois se tornaria seu nome, Prince lista as faixas chamando-as The jams. Segundo a Wikipedia, em música popular, como o jazz, jam significa tocar sem saber o que vem à frente, de improvisação. E com efeito, parte do repertório do álbum tinha formatos diversos do da canção tradicional – o que não era exatamente novidade para Prince, acostumado a cruzar fronteiras musicais e misturar formatos de há muito. A New Power Generation Band, que o acompanhava, incluía dois rappers, e diversas faixas tinham raps entremeados, quando não eram faladas pelo próprio Prince.

Começo contando isso porque foi o que primeiro me veio à cabeça como forma de compreender o comentário de João de Carvalho, do blog A Canção e seus sentidos

Caro Túlio, não sei se acho muito frutífero tratar do lado musical do rap pelo viés de um conceito tão restrito (e limitado históricamente) como a melodia… não percebo uma negação da melodia como vc desenvolveu e sim uma busca por outro domínio da musicalidade – que transcende o ritmo: o flow!. Talvez seja uma frescura conceitual minha, mas acho que faz diferença no balanço final… Creio que quando escutamos James Brown (por ele que o Paulo virou Mano Brown), e percebemos toda a dinâmica que levou ao surgimento do rap, tanto a atuação dos Racionais aparece como mais orgânica como a do Emicida se revela como mais um tijolo. Penso que é fundamental escutar as inovações de flow de figuras como o Sabotage e o Black Alien, por exemplo, ou, ainda mais próximo do Emicida, do Kamau. Fora isso, parabéns por ter encarado este tema! Curti bastante suas reflexões – principalmente o caminho final (conclusão) deste segundo post! Grande abraço!

A crítica do João, que em seu blog explora consistentemente o universo do rap (ao contrário deste, que o adentra pela primeira vez) me fez pensar um bocado. Não exatamente no sentido de me desfazer do que escrevi, e que mantenho, como uma forma de compreender a dinâmica do rap do ponto de vista de uma história da música brasileira mainstream, com a qual ela inevitavelmente se relaciona (e onde novamente pretendo chegar neste texto). Mas sim no sentido de que, ao lado desta visão, é preciso também ter a perspectiva interna sobre o assunto. E, se pretendo tratar do aspecto estritamente musical do rap, ao lado de pensar sua melodia (ou não-melodia, como concluí nos outros artigos) na sua relação com a forma tradicional, preciso pensar também na sua forma intrínseca, dentro da composição. E esta se traduz na palavra que João usou: o flow. Que raio é isso? Pesco duas definições que me parecem satisfatórias:

Flow é a fluidez q a letra se encontra com o ritmo, ou seja, o domínio do ritmo da letra de acordo com as batidas da música.
Flow, ou levada, é a maneira que o rapper encaixa seus versos na batida. Cada rapper tem um jeito de fazer isso.

Por estas definições, percebe-se que o flow é exatamente a relação entre ritmo e poesia, os dois componentes fundamentais do rap. Relação que pode ser traçada de diversas maneiras e estilos, incluindo variações de velocidade e distribuição das acentuações rítmicas das tônicas das palavras em relação ao compasso e indo desde uma rima tradicional no fim de cada verso, em versos de comprimento iguais, até rimas internas em versos irregulares, no contratempo do ritmo. Neste sentido, a inovação da divisão alterada que João assinala ter sido feita pelos Racionais MCs (num andamento em geral mais lento) foi radicalizada por raps como Emicida, um estilista do improviso formado em disputas de MCs. Segue um video com alguns exemplos relevantes de flow de diversos rappers brasileiros, incluindo os dos Racionais e Criolo – mas excluindo Emicida na seleção do autor… Nele é possível fazer a comparação clara entre os estilos de cada um.

Tendo em mente estas definições, é possível reler retroativamente os dois primeiros artigos desta série, com o sinal invertido, por assim dizer: onde eu falava de uma negação da série histórica da música brasileira na forma de uma ruptura, é possível pensar numa afirmação diversa, de uma outra corrente, esta subterrânea, uma outra tradição com raízes tão profundas quanto e, até certo ponto, as mesmas. O fato de os Racionais iniciarem o álbum que lhes deu visibilidade além do gueto, Sobrevivendo no Inferno, com uma canção de Jorge Ben, Jorge da Capadócia, já diz algo sobre isso, como também a enorme lista de artistas e músicas sampleadas por eles, indicam que nada ali começou ontem, e que a ruptura estética do rap se dá menos por uma inovação recente e sim por uma mudança externa da cultura do país, que permitiu de algum modo que ele viesse à tona e chegasse a outros públicos.

E esta chegada a outros públicos, se traz em si uma dimensão sociológica que já vem sendo explorada com propriedade por vários, tem também uma dimensão estética e estilistica e efeitos de influência mútua entre estas duas correntes musicais que, com raras exceções, mantiveram historicamente distância. Assim como a MPB tradicional, elaborada por e para a classe média, assume elementos da música negra que por muitos anos permaneceram estilizados, o rap faz seu próprio caminho de aproximação com a tradição cancioneira. A negação da melodia é virada do avesso, e a tradição paralela do flow começa a buscar pontos de contato. Pontos que, em termos estéticos, também são da partida comum óbvia às duas tradições: a voz falada. Mas que também podem ser encontrados no entendimento das funções históricas de cada uma destas vertentes.

Calice – de Gilberto Gil e Chico Buarque – versão de Criolo – resposta de Chico

A ditadura segue, meu amigo Milton
A repressão segue, meu amigo Chico
Me chamam Criolo, o meu berço é o rap
Mas não existem fronteiras pra minha poesia

O paralelo feito por Criolo explicitando a herança da ditadura na insegurança das ruas e na manutenção das desigualdades, atualizando uma canção emblemática do protesto contra o regime militar, traça para o rap um caminho diverso do rompimento com uma classe média que apoiou esta ditadura em marchas pela Família. Em vez disso, ele se alinha com a outra parcela desta mesma classe média, a que sacrificou seus filhos numa luta armada sem esperança. Você não gosta de mim, mas sua filha gosta, cantou Chico com pseudônimo para não ser censurado. A classe C, Nova Classe Média, ou, seja o nome que receba dos sociólogos, a parcela da população brasileira que nos últimos 10 anos ascendeu ligeiramente com as políticas afirmativas, o aumento real do salário mínimo e a expansão do emprego, ao tornar-se mercado, leva a música do gueto de onde veio a a novos lugares.

Estas transformações sociais se fazem acompanhar por mudanças estéticas e musicais. Os próprios Racionais, ao longo do tempo, repensam sua temática. O processo de aproximação da música que representa esta parcela da população a ter voz com a voz institucionalizada inclui mimeses e reconhecimentos de parte a parte. De Racionais a Emicida, muda-se ligeiramente o foco do discurso. Se os Racionais se apresentam como os bardos do submundo, Emicida, sem negar sua origem um só segundo, é capaz de discursar sobre uma gama mais variada de assuntos, e a sonoridade geral de seus acompanhamentos será menos agressiva.

Com Criolo esta passagem dá mais um largo passo, incorporando sonoridades alheias, mas prezando o contexto em que elas surgem (Bogotá, a primeira faixa de seu álbum Nó na Orelha, é um afrobeat, ritmo estabelecido por Fela Kuti que teve um papel importante como música de combate político na Nigéria). Ao mesmo tempo, boa parte das faixas deste álbum parecem procurar uma espécie de termo de compromisso entre o flow e a melodia. Caso, por exemplo, de Subirusdoistiozim, com um desenho melódico repetitivo em que o destaque é da letra, uma divisão rítmica similar à do rap, porém mais solidificada. Por outro lado, mesmo nos raps estritos como Sucrilhos, o flow particular de Criolo insinua uma melodia de forma mais clara que em boa parte dos demais rappers, pelo fato extrapolar o monocórdio ao permitir-se inflexões grave/agudo maiores que da maioria dos rappers.

Seria possível aqui fazer um paralelo entre a ida do rap à melodia de Criolo e a passagem da fala ao canto das liturgias medievais, que estabeleceram o código musical vigente (para quem acha a comparação forçada, vá ao primeiro artigo desta série) Porém, no caso de Criolo, o ponto de partida real não é a fala, e sim já uma estilização sua – o rap. Além disso, seria mais apropriado falar em um trânsito entre eles, contrariando a ideia de uma evolução. Criolo faz uma aproximação entre flow e melodia, vai e volta no caminho entre elas, ao invés simplesmente alternar. Assim como em algumas melodias, é possível perceber suas acentuações características, tanto quanto quase é possível cantar Sucrilhos, em que ele alterna registro agudo e grave ao longo das estrofes.

E por falar em Sucrilhos, há ainda um ponto de contato entre este álbum de Criolo e a nova/velha classe média para onde o rap se expandiu, que caminha lado a lado com a diversificação de estilos que inclui reaggae e um flerte com o brega. É o movimento simultâneo das citações intelectualizadas e o desfazer-se desta mesma intelectualidade. Assim, Bogotá cita em seus versos a Pasárgada de Manuel Bandeira, a própria Sucrilhos cita Um Índio, de Caetano Veloso, e morde e assopra a intelectualidade:

Cientista social, Casas Bahia e tragédia,
Gostam de favelado mais que Nutella
(…)
Di Cavalcanti, Oiticica e Frida Kahlo
Têm o mesmo valor que a benzedeira do bairro

Criolo ecoa em seu verso a frase atribuída a Joãosinho Trinta (na verdade do jornalista Elio Gaspari, que a atribuiu a Joãosinho) Pobre gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual. Há um pouco de desdém e um pouco de quem desdenha quer comprar nestas referências. Como se Criolo ao mesmo tempo que as relativizasse fizesse questão de mostrar que as conhece, num jogo duplo de aproximação/repulsão. Se já se disse que a música popular no Brasil assumiu para si funções de investigação filosófica que em outras culturas seriam acadêmicas, o rap traz em si o estranhamento desta função auto-outorgada, mas também a ambição de, a seu modo muito particular, ter o mesmo alcance. Paralelamente a uma população que tem a chegada à faculdade ampliada (ainda que com uma edução deficiente), ao lado da tímida ascensão econômica, a música desta classe é ao mesmo tempo afirmação de origem e mimese do objetivo, e é adotada por uma classe média anterior pelos mesmos motivos, ao se apresentar tanto palatável quanto autêntica.

Pretensioso tentar prever os caminhos a serem seguidos pelo rap, após ter permanecido subterrâneo, entretanto tão vigoroso, por tantos anos. Porém, a história da MPB tem sido desde seu início um processo de contínuo alargamento de fronteiras, recebendo gradativamente novos estilos, novos paradigmas, novas turmas, assim como a conservadora e frequentemente preconceituosa classe média brasileira aceita aos poucos os migrantes, os negros, reconcilia-se com o samba, com o brega, recicla a influência externa pelo BRock, e agora aproxima-se de uma outra galera. Isto em absoluto significa uma descaracterização do rap, mas é possível prever sua exploração comercial, como se deu com o pagode, o forró, o sertanejo – o que não exclui a manutenção de grandes criadores tornados tradicionais e seu público, assim como ocorreu nos outros estilos. Voltando à versão de Cálice e sua resposta, há que se notar a delicadeza de Chico ao cantar ter entendido a versão de Criolo como um “bem vindo ao clube” (do rap), quando também é possível dizer também que se dá o movimento contrário, com Criolo batendo na porta do clube da MPB. Mas no fundo é pura bobagem especular quem absorve quem aqui, não se trata disso. Trata-se de notar que o rap não chegou para ficar, ele já está aí há muito tempo, e agora amplia sua liberdade para ser o que quiser. E quem ainda não tinha ouvido, que comece logo a tirar o atraso.

Nó na orelha

Duas de 5 – Cóccix-ência

2 comentários em “A melodia do rap – Criolo

  1. Alexandre Rosa disse:

    Olá Túlio, boa noite.
    Gostei muito deste seu texto que me foi indicado por meu professor Walter Garcia, do curso que faço na pós-graduação do IEB da usp. Parabéns por sua análise e por seu interesse no rap nacional.

    Gostaria apenas de conversar com você sobre a sua afirmação que diz ter sido o álbum “Sobrevivendo no Inferno” quem “deu visibilidade” ao Racionais para “além do gueto”. Há um álbum anterior a este – Raio X Brasil – que, a meu ver, foi o responsável pela ascensão do Racionais a um patamar nacional, em 1993.

    Deste disco, duas músicas fizeram enorme sucesso: ‘Homem na estrada” e “Fim de semana no parque” que tocaram nas principais rádios brasileiras – Transamérica e Jovem Pan (sem pagar o famoso jaba) – e que alcançaram boa porção do território brasileiro.

    Já o Sobrevivendo no inferno veio ratificar o que já havia sido postulado como o maior fenômeno musical de massas dos anos 90. Deste álbum, de 1997, duas músicas fizeram bastante sucesso “Capítulo 4, versículo 3” e “Diário de um detento”, mas essas músicas não tocaram nas rádios comerciais, salvo na 105, 1 FM, que tem uma programação exclusiva para o rap.

    “Diário de um detento” fez sucesso na MTV em forma de video-clipe, ganhando, inclusive, o principal prêmio do Vídeo Music Brasil em 1998 (escolha da audiência). Neste mesmo álbum há um rap, “Qual mentira vou acreditar” que esculacha a Transamérica descaradamente…

    O que se deu com o Sobrevivendo no Inferno foi o seguinte: além da MTV, o grande veículo de divulgação foram os rádios dos carros. Isso mesmo. O pessoal da periferia que frequentava o centro de São Paulo, a rua Augusta, alguns lugares de Pinheiros foi o responsável por disseminar “Capítulo 4, versículo 3”, que não demorou a cair nas graças da “playboizada” e daí a coisa se espalhou pra valer.

    Me lembro, que no meu bairro, em Diadema, de cada 10 carros que passavam, pelo menos uns 8 estavam tocando essa música, fora as casas, os butecos, as quadras, etc. No verão de 1998 este disco arrebentou no litoral paulista (Santos, Praia Grande, Mongaguá, Itanhaém, etc., ao lado do É o Tcham e do Cia. do Pagode, aquele da “boquinha da garrafa”…) E isso também era na periferia inteira! A divulgação deste disco foi mais “horizontal” do que o Raio X Brasil, mas foi este, com “Homem na estrada” e “Fim de semana no parque” quem projetou o Racionais apara “além do gueto”.

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    • Alexandre, primeiro, muito obrigado pela informação. Eu sou do Rio, e a onda Racionais me atingiu no Sobrevivendo no Inferno, em boa parte devido à MTV (embora a Transamérica exista no Rio – a Jovem Pan não sei se existia aqui à época), mas de qualquer forma valeria a pena fazer uma análise mais aprofundada de como se deu a popularização da música deles ao longo dos álbuns, se é que já não há. Mas fica o seu adendo importante. E segundo, tomo a liberdade de pedir que dê um abraço da minha parte no Walter Garcia, que não conheço, e lhe diga que sou seu fã (rs). E fique com um abraço também.

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