A melodia do rap – Racionais MCs

Relutei muito em escrever sobre rap, não por considerá-lo fora da alçada deste blog, mas por um motivo simples: não queria falar bobagem. O rap é um fenômeno complicadíssimo e de uma vitalidade exuberante, e também uma forma musical, mais até do que apenas um estilo, que se tornou autônoma. Por outro lado, praticamente tudo o que já li ou ouvi sobre rap até hoje, independente de seu valor como crítica, tende para um de dois caminhos: ou trata do assunto privilegiando a visão sociológica, que obviamente é fundamental no entendimento aqui, mas subordinando a ela toda a questão estética, ou, ao realizar a análise do rap, trata quase exclusivamente da letra, que, embora sem dúvida o ponto de maior destaque no rap, não pode ser entendida sem a relação com os elementos estritamente musicais – porque afinal de contas, e é sempre bom repetir, rap é música.

Portanto, tudo o que eu não queria era cair nesta armadilha de deixar de lado a análise musical, que é o que me proponho a fazer aqui. E para isso precisava encontrar um fio que me permitisse achar um caminho no labirinto. Foi o que aconteceu ao ler um post de Leonardo Davino, do blog Lendo Canção, no Facebook:

O rap dispara o pensamento a cerca da perda do reconhecimento daquilo que pré-entendemos como sendo “canção” – este ícone da gaia ciência brasileira. Quando, diante da audição de um rap, estranhamos e perguntamos “isso é canção?”, “isso é música”? o rap já cumpriu sua “missão”: desinstalou a certeza, nublou as verdades genealogicamente construídas, cravou a dúvida, deu o nó na orelha da memória afetiva.

E nos comentários, um de Roncalli Dantas Pinheiro:

Leo, tem um texto de Paul Zumthor de 1983, escrito antes da explosão do rap americano. Em que ele trata da fronteira da canção.
Coloco um trechinho do texto:
“Por onde passa a fronteira? O meio cultural condiciona o sentimento que cada um tem de suas diferenças. O que a voz de um griô africano profere não é, para seu grupo étnico, nem fala, nem canto, mas enunciação às vezes atraente e misteriosa, por onde transitam forças talvez perigosas. Os blues, que na prática popular, por oposição aos outros são chamados de talkings, constituem um discurso de ritmo acentual forte, passando imperceptivelmente a episódios cantados, certamente distintos do falar comum (…) O que aqui passa por canto, em outro lugar será fala, barulho.
(…) As liturgias medievais utilizavam uma escala semelhante, limitando contudo a extensão do primeiro termo, recitatio, ao dito poetizado por um ritmo artificial.
O dito da poesia oral, assim marcado, se encontra em continuidade com o recitativo e este difere do canto somente pela amplitude. De um a outro se produzem deslizamentos(…) A etnografia me levaria a supor que em toda poesia oral pressupoe-se o canto e que todo gênero poético oral é também gênero musical, ainda que os usuários assim não os reconheça. (…) Na Africa, o que os viajantes europeus chamaram griôs e apresentaram como músicos, foram designados pelos árabes com uma palavra que designa poeta. (…) A natureza da mutação que se opera entre som e linguagem, no instante que emerge o monumento poético.”

E foi este o fio que achei. O que tento fazer aqui é uma análise de um aspecto que é comumente negligenciado na potência comunicativa do rap, seu caráter musical, o uso dos elementos estritamente musicais por parte dele. Diante da acusação comum de que ele seria uma música pobre, em que esta parte musical seria excessivamente simplificada e/ou de má qualidade, cumpre tentar ultrapassar por um momento a justificação histórica/política/social e também a avaliação poética, para trazê-las novamente mais adiante, talvez mesmo revigoradas e fortalecidas pela crítica estética. Pois um ponto de partida teórico de que parto aqui é que a obra de arte será tão mais efetiva na relação com a realidade quanto mais tem sua crítica calcada na estética – e ao contrário, a obra que se declara com objetivo político antes do estético perde sua força política, ao invés de ganhá-la. O rap tem uma tremenda força política, mas esta é haurida a partir de uma tremenda força estética, que não é exclusivamente poética, mas musical. E é dela que tratamos.

Portanto, seguindo o fio, e sintetizando: se a música ocidental se organiza historicamente a partir da repetição e repetição de textos, com suas entonações da recitação radicalizadas e estilizadas e estruturadas ao longo de séculos, a canção é uma aplicação direta desta estilização, de suas regras mais simples num formato conciso e no desafio de dizer o máximo com o mínimo – o que levou, em pouco mais de um século, a momentos sublimes em que, ao contrário do que se poderia esperar, conseguiu-se chegar a uma estilização em que o formato canção como que superou a si mesmo e suas limitações.

E chegamos ao rap, surgido exatamente num momento em que este formato canção já mostrou-se capaz de ir muito longe, e talvez por isso mesmo tenha deixado para trás alguma coisa que precisa se resgatada. Este resgate se dá em muitos sentidos, inclusive o político, ao assumir o ponto de vista do despossuído, do morador da periferia, e fazê-lo protagonista, e da poética que traz no discurso cru e discursivo uma infinidade de desdobramentos e sutilezas – metáforas densas e refinadas, no dizer de Marcos Lacerda, que debateu comigo alguns trechos deste artigo antes de sua publicação. Mas também o musical.

O rap (delimitando: falo do rap brasileiro, ou melhor dizendo, do hip-hop gestado em São Paulo. Falar do rap em termos mundiais seria uma irresponsabilidade) toma em relação a isto um caminho que a crítica fácil considerará regressivo, porém diverso, por exemplo, do funk carioca, que sofre críticas similares. Neste, a estilização situa-se no que o Tom Zé detectou como sendo a melodia microtonal, que permanece altamente estilizada, embora, em certa medida, mais próxima da fala. O caminho do rap paulista (tomo aqui os Racionais MCs como paradigma) toma caminho diverso e bem mais radical, opondo ao cromatismo (movimento da melodia por semitons) da canção sofisticada (e aqui o paradigma, por sua vez, é a Bossa-Nova, que forjou a canção brasileira moderna) o monocromático, o monocórdio. A linha reta anti-natural (a linguagem falada é então natural? Não, sabemos, mas é naturalizada. Discussão extensa, mas parto deste princípio aqui) vai no sentido oposto da estilização da fala em melodia, agredindo e negando a melodia, e assim, aparentemente mais próxima da fala, na verdade distancia-se bem mais dela que a melodia tradicional. Para o desavisado ou o que espera uma linha de continuidade com a tradição cancionista, o rap é monótono (ou seja, tem um tom só), o que não deixa de fazer sentido.

Esta espécie de negação da melodia é acompanhada por uma metrificação rítmica particular que também é estilização da fala, encaixando-a na regularidade musical em alta velocidade, criando uma ação hipnótica, e chamando obviamente a atenção para a letra. A letra do rap, que mereceria uma análise á parte, e na verdade já recebeu algumas. Porém, a negação melódica leva à letra não pelo seu desaparecimento, mas pela sua realização pelo avesso. Correndo o risco de cair no lugar comum, como uma forma desesperada de se fazer ouvir. Quando enfim a a dimensão sociológica ganha vulto, quando toma sentido a forma de destacar a voz da periferia, da quebrada, invertendo a seta da melodia como uma atitude política, como quem faz a anti-Bossa-Nova, a anti-canção brasileira,a anti-voz da classe média, agora voz da população que não teve voz nessa canção, ao longo de tanto tempo. Ou, como afirma Walter Garcia, os Racionais e João Gilberto seriam dois polos da música brasileira, espécie de antípodas – e no entanto, e justo por isso, não podem deixar de dialogar.

E aí vem o famoso discurso do “Isso não é música!”, vindo exatamente de quem cultivou esta canção. Por este olhar, o rap é mesmo a negação da música, ou ao menos de uma certa música. Ou mais especificamente, esta reação se explica, sem se justificar, pelo fato de o rap partir, para sua realização, de elementos extra-musicais, elementos que não são estritamente ou explicitamente musicais, ou mesmo da negação de elementos musicais – no caso, como foi dito, particularmente a melodia. Mais recentemente, o rap tem iniciado mais ou menos timidamente um caminho de volta ao universo da melodia, flexbilizando o monocórdio, abrindo mão da linha reta da entonação que foi dominante durante anos (às vezes em voz baixa e soturna, às vezes em grito agressivo) em prol de uma variação maior do desenho da fala. Isto acompanha uma assimilação do universo do rap à música brasileira, cujo paradigma talvez seja o diálogo de Criolo e Chico Buarque, construído a partir da paródia de Criolo a Cálice e da réplica de Chico na forma de um pequeno rap. (Tratei da comparação entre estes dois universos aqui.)É possível traçar um paralelo entre esta aproximação estética e uma revisão, feita pelos Racionais MCs, de algumas de suas composições mais antigas, como Da ponte pra cá, cujo refrão assinalava a divisão da cidade: o mundo é diferente da ponte pra cá. Hoje, Mano Brown afirma, em entrevista a uma publicação sobre rap:

A pior coisa que eu criei foi este estigma, que eu nem sei se eu criei, mas sou responsável, que até o RAP carrega certo estigma, acho que foi a pior coisa que eu criei. Ter uma certa ignorância e uma cegueira também, eu não tolero algumas coisas. Eu sou da outra geração, então quando a gente criou o símbolo do Racionais, no fim dos anos 80, era um outro mundo. A dívida externa não tinha sido paga. Não tinha eleito o Lula ainda, não tinha Metrô no Capão, um monte de coisa não tinha acontecido, não tinha eleito um presidente negro nos EUA, o Barack Obama. O Brasil não tinha uma presidente mulher, não tinha nem asfalto na nossa quebrada. Quando criamos o Racionais, era um outro mundo, então não tem como você esticar o chiclete 25 anos falando das mesmas coisas como se elas não tivessem mudado. Seria mentira, ia tá maquiando uma realidade, que a nova geração está aí para mostrar. (…) Então, de 88 pra cá são 24 anos, o mundo mudou muito, a música tem que acompanhar a mente do jovem, tem que ir até a massa, até a mente da massa

Faltou falar de uma comparação muito comum e utilizada para legitimar o rap como uma possibilidade válida para a arte brasileira (e não uma interferência externa ou uma forma importada) é feita com formas de cultura regional como o repente, de que o canto falado e o improviso são constituintes básicos. Atrevo-me a discutir esta afirmação em duas frentes: primeiro, ao discordar da ideia de que seria necessária uma legitimação para o rap, no sentido de que ele só seria uma forma válida de manifestação artística no Brasil se tivesse origem autóctone. Este ponto de vista, que tem no crítico José Ramos Tinhorão seu principal defensor, se levado às últimas consequências, invalidaria Tropicália e Bossa-Nova como movimentos legítimos (como Tinhorão afirma abertamente), mas também o samba e praticamente todos os estilos musicais nacionais (mas Tinhorão não chega a encampar isto). O que torna um estilo legítimo em termos de nacionalidade não é sua origem, mas sua utilização no contexto da nacionalidade, levando-o inclusive a adquirir características próprias, que o rap nacional tem indiscutivelmente, adquiridas de forma absolutamente diversas do repente e outras manifestações musicais. O processo deste abrasileiramento do rap merece uma análise à parte, mas é algo que assistimos, e não apenas no encontro com a linha musical vinda da Bossa-Nova a que aludi, mas também segundo tradições do soul nacional e mesmo encontrando-se com o samba.

O segundo ponto é sobre a comparação em si, que a meu ver não se sustenta. Apesar das possíveis similitudes apontadas entre eles, há uma diferença fundamental entre rap e repente que os põe em lugares diferentes. Falando sucintamente, o repente vem antes da canção, o rap vem depois. O repente, de origem rural, em sua formação histórica (mesmo sem entrar em detalhes etnográficos), não vai se basear na canção, que não existia como tal (mas obviamente formas ABA existiam), e sim nas trovas medievais trazidas pelo colonizador, formatos de tradição oral muito antigos. Já o rap também vai, desde o início e mesmo sem partir dela, disputar espaço com a canção no imaginário popular, dialogar com ela ainda que por negação, pelo simples fato de lhe ser posterior. O repente no caminho de ida, o rap no caminho de volta. O rap como um passo atrás que é um passo à frente. Onde vai dar, é bom não saber, para melhor nos surpreender.

Da ponte pra cá- Racionais MCs

Mente do Vilão – Racionais MCs

3 comentários em “A melodia do rap – Racionais MCs

  1. […] de canção popular – sobre isso, há ótimos posts no blog Sobre a Canção, sendo um deles direcionado especificamente à música dos Racionais […]

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  2. Leonardo Davino disse:

    Túlio, excelente texto. Demorei a ler porque sabia que precisaria de atenção. E, de fato. Os pontos e argumentos apresentados são muito estimulantes, diante dos muitos discursos repetitivos sobre o rap que temos visto por aí. Parabéns! Vamos conversando, que o tema precisa de muitas novas investidas, como as suas. Abraço.

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  3. Rafael Mori disse:

    Excelente post. O rap nacional, a partir da década de 1990 produziu artistas muito importantes, que certamente exerceram um impacto na música brasileira, dos estratos mais – MPB, samba – ou menos – rock nacional – “legitimados”. Ao menos três nomes poderiam ser citados entre estes grandes expoentes do estilo, e que conseguiram algum reconhecimento fora de seu contexto de origem (periferias): os Racionais MCs, o Pavilhão 9 e Gabriel, O Pensador. Não sei porque o Câmbio Negro não emplacou… Daria pra colocar também o Planet Hemp nesta lista, se bem que eles não faziam rap; era “rap-rock n’ roll-hardcore-psicodelia-e-ragga”.
    Interessante também suas colocações sobre como o rap brasileiro se apropria da entonação da palavra falada (questão importantíssima, do ponto de vista da Semiótica da Canção de Luiz Tatit). E esta “implosão da melodia”, se podemos nomear assim, também não poderia ser observada em outros artistas também destacados nos anos 1990? Veja-se o caso dos primeiros Raimundos (“Puteiro Em João Pessoa”, “Rapante”) e Skank (“Amolação”), Rappa (“Miséria S/A”)… Aquele esgotamento da canção, a que Chico se referiu na famigerada entrevista de 1994, não teria feito daquela década o momento em que a não-melodia enfim encontrou algum espaço para proliferar?
    Até a Legião Urbana se rendeu ao rap com “Perfeição”. Os Paralamas do Sucesso também, com “Tribunal De Bar” e “Luís Inácio (300 Picaretas)”. Os Titãs, com “Miséria”. Fernanda Abreu se destacou cantando rap…
    Uma questão, Túlio: onde entraria Jair Rodrigues, com “Deixa Isso Pra Lá”, nessa história?

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