O arco narrativo da MPB ou Influência do Rap

O início é conhecido, contado e cantado, e narrado sob diferentes perspectivas, e esta será apenas uma – ou algumas – delas. Por volta de 1970, o Brasil fazia sua passagem de um país de população eminentemente rural para urbana. A Bossa-Nova já fizera sua síntese de país, tomando o ritmo negro difundido pela Rádio Nacional por todo o Brasil e recodificando-o num viés cosmopolita e moderno. E os festivais de fins dos anos 1960 formam a massa crítica para a consolidação do pensamento que estendia os processos estéticos da Bossa a virtualmente toda e qualquer outra manifestação musical brasileira: frevo, toada, baião, tudo era factível de ser processado pelos procedimentos harmônicos, de arranjo e interpretação com raízes em João Gilberto, em Guerra-Peixe e Villa-Lobos, em Mário de Andrade. E tudo isto direcionado em toda sua potência para o formato canção.

E nessa passagem de rural a urbano o país elabora uma conciliação, ou no dizer do historiador Marcos Napolitano, uma aliança de classes, em que uma classe média que se consolidara sob Juscelino Kubitscheck torna-se a ponta de lança de um projeto de país particularíssimo: moderno, mestiço e tropical – e é para ela, que em muitos casos compunha a população rural duas ou três gerações atrás, que todas estas manifestações rurais são repaginadas. Afinal, as duas canções que podem ser consideradas as fundadoras da MPB, Disparada Ponteio, são letras escritas por citadinos descrevendo na primeira pessoa aventuras de camponeses em seus eus líricos.

Porém, esse modelo tem inseminado dentro de si, no próprio ato de lançamento, a semente de sua dissolução: a Tropicália, nascida no mesmo berço da MPB e sua parte integrante, promove a sua cizânia. Assim como a nascente MPB vai ao interior se haurir, a Tropicália vai ao exterior e promove o primeiro esgarçamento do modelo. A partir daí, as sucessivas aberturas e inclusões de classe média, sejam econômicas ou territoriais, vão se refletir quase literalmente nos movimentos emergentes na música brasileira: Clube da Esquina representado Minas ainda na nascente da MPB; Pessoal do Ceará e Nordeste 70; e representantes de outras regiões como Fafá de Belém, Kleiton e Kledir, Renato Teixeira e outros sotaques, exóticos do ponto de vista do eixo Rio/São Paulo, vão sendo admitidos, num crescendo que chega ao rompimento do Mangue Beat. E do ponto de vista do público, o Rock dos anos 1980 promove a entrada de uma nova geração em cena; o Plano Real abre as portas do mercado para o pagode ao dar a uma população nova o poder aquisitivo para a compra de discos em massa, seguida pelo sertanejo que retoma as cidades, além do axé e o funk carioca, alargando enormemente o espaço do mercado antes ocupado predominantemente por artistas de verve romântico-popular e sinalizando o colapso do padrão MPB estabelecido duas décadas antes. E assim o movimento se alarga desmesuradamente até os tempos atuais, explorando em instâncias cada vez mais vagas os precedentes abertos pela Tropicália e esgarçando continuamente o tecido da MPB para que mais estilos coubessem na cobertura da sigla…

Até que acontece a ruptura do rap, que tem a sua chance no mercado a partir da desestabilização do mercado fonográfico e do balançar das grandes gravadoras, no início do descenso do formato CD, o que permite que suas produções independentes ganhem uma visibilidade antes impossível num mercado estável e dominado pelas chamadas majors. Ou seja, assim como a passagem para o CD abriu espaço para estilos como o pagode (uma manifestação digamos, domesticada, embora não necessariamente menos legítima, das mesmas periferias que gestavam o rap), o início da queda nem tanto do CD, mas da hegemonia da produção, abre uma fresta para que um estilo produzido de forma independente, por protagonistas da classe mais baixa, alce sua produção ao mundo e amplie seu público.

O rap arrebenta o tecido da MPB em dois níveis: antes de mais nada, pela quebra do acordo de classes: depois de assimilar em seu formato as ondas sucessivas que se formavam com dificuldade crescente e em muitos casos relegando estes estilos a um segundo plano forçado, o rap é quem vai denunciar que este consenso não serve mais, e que os procedimentos que nos deram a MPB simplesmente não são capazes de incorporar a narrativa da periferia das cidades. E no nível estético, diretamente ligado ao anterior, o que ocorre é a explosão do formato consagrado da MPB. O rap literalmente dinamita a canção, pois sua narrativa não cabe nela, assim como alguns versos de Jorge Benjor (não por acaso identificado quase como um padrinho pelos Racionais, e não apenas eles) ultrapassavam a métrica de suas próprias canções. O rap vem narrar aquilo que é inenarrável pela canção brasileira de MPB, e ao fazê-lo a põe num dilema de onde ela ainda não saiu.

Nada pode demostrar melhor este contraste que a comparação da produção recente do maior ícone da MPB vivo, Chico Buarque, e a obra principal dos maiores representantes do rap, Racionais Mc’s. Chico retrata a periferia com profundo respeito e compreensão, mas narrando os fatos a partir da visão de sua cobertura na Zona Sul, como na magistral As Caravanas, no choro-canção Subúrbio, em que este é designado todo o tempo pelo advérbio de distanciamento “lá”, ou mesmo no baião Os Ratos, em que se comisera e se assombra com a figura do miserável. Enquanto isso, a letra de Diário de um Detento, ponto central do álbum Sobrevivendo no Inferno, foi construída coletivamente pelos presos e sobreviventes do Carandiru junto com os Racionais, conforme conta Acauam Oliveira em seu ensaio de introdução ao livro que reúne as letras do grupo. Pela sua própria existência, essa produção como que denuncia retroativamente Ponteio Disparada como o que hoje é tratado muitas vezes por apropriação cultural, ou mesmo como roubos dos lugares de fala dos cantadores que efetivamente teriam algo a contar.

Um outro exemplo: a corajosa Nara Leão, no show Opinião, em que apresentava as figuras do sambista do morro Zé Kéti e o nordestino João do Vale à população da metrópole carioca, recitava em meio à canção Carcará, de autoria deste último:

“Em 1950 mais de dois milhões de nordestinos viviam fora dos seus estados natais. 10% da população do Ceará emigrou. 13% do Piauí! 15% da Bahia!! 17% de Alagoas!”

Por mais que estejam presentes no palco um migrante e um favelado cujos avós possivelmente também foram migrantes, é preciso que a menina branca, corajosa sim, mas que ela tome a palavra para dizer isto em nome deles, num show, revolucionário em sua época.

Pois na abertura de Capítulo 4, versículo 3, também de Sobrevivendo no Inferno, os Racionais, ao contrário, cedem a palavra ao também rapper Primo Preto, que diz:

“60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo”

Aqui não são mais necessários intermediários. Os Racionais, sem mágoa nem nada pessoal, como que dispensam uma nova Nara Leão.

O rap recusa a condensação da canção, em última instância recusa a própria canção e sua estrutura como representante de um conciliação de classes que não lhe contempla: ao contrário, esparrama sua lírica em versos sobre versos, ao mesmo tempo que recusa a estilização melódico-harmônica em favor de uma microtonalidade de retorno à fala que, segundo a teoria de Luiz Tatit, que serviu de  base para todo um modelo de análise cancional, dera origem a esta melodia. Não se trata, porém, de má regressão, e sim de estilização em outra direção, e do uso da base rítmico-climática em um pressuposto também muito diverso da progressão harmônica, em que a base se estabelece não num começo-meio-e-fim da canção, mas numa circularidade do tempo que permite justamente à narrativa se estender e ser conduzida pela poesia. Se o samba, a partir da difusão da Rádio Nacional a todo o país e da estilização feita por João Gilberto, tornou-se de musica de uma parcela oprimida da população (“Batuque na cozinha sinhá não qué”) a estilo representativo da própria brasilidade, o rap assume a voz da classe atingida por eventos como o Massacre do Carandiru, a Chacina da Candelária e a de Vigário Geral, conforme novamente lembra Acauam Oliveira. O rap surge reinstaurando a divisão e recusando – ao menos num primeiro momento – a assimilação.

Depois, com o passar do tempo, começam as negociações de parte a parte, explicitadas na versão de Criolo, em que adapta Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil, fazendo a passagem da denúncia da repressão da ditadura militar para a policial (também militar), e a resposta de Chico num show – Chico que, de certa forma, previra tudo isto em entrevista de 2004 à Folha de São Paulo em que, de passagem, especulou sobre o fim do formato canção, sendo repercutido por anos a fio em debates jornalísticos e acadêmicos. Outros movimentos de aproximação vão frequentemente na direção do samba, este ritmo que foi o símbolo da conciliação mestiça nacional, como Marcelo D2 Em busca da batida perfeita ou Emicida juntando-se a Wilson das Neves. Ainda assim, a própria natureza estética do rap é criada para dificultar essa assimilação, ao partir de um pressuposto diverso: como comportar dentro da canção um formato que foi criado para estraçalhá-la? Este é o dilema dos criadores contemporâneos.

E dilema amplificado – ou seria mais apropriado dizer, abafado – quando o mercado se reorganiza após o impacto da queda da venda de discos com a chegada da internet, parece ter restringido ainda mais o espaço da MPB nas gravadoras, empurrando os artistas para a produção independente e se fixando somente naquilo que tenha um valor comercial massivo, deixando o espaço independente para a produção que recolheu os restos da MPB. Marcos Napolitano cita uma afirmação de Tom Jobim, em entrevista ao jornal O Globo em 1962 por ocasião do show da Bossa Nova no Carnegie Hall: “Já não vamos recorrer aos costumes típicos do subdesenvolvimento. Vamos passar da fase da agricultura para a fase da indústria.” Tom se referia tanto diretamente a uma produção musical mais sofisticada quanto a uma indústria fonográfica disposta a investir nessa música. Pois hoje o que há por parte dessa mesma indústria é, contrariando seu nome, um manifesto retorno não apenas à agricultura extensiva, mas à monocultura.

A produção recente de canção no Brasil se divide, de um lado, no retorno de alguns dos muitos recalcados pela MPB ao longo de sua hegemonia, capitaneados pelo sertanejo, agora metamorfoseado num monstro de monocultura que, no entanto, vai se enxertando de axé, funk, pagode e de outras manifestações urbanas de mercado ou não, e com o algoritmo a seu serviço em substituição ao jabá; e do outro, a produção investigativa pós-Mangue Beat, que não toca nem nas rádios de massa nem nas pretensamente de MPB, cujo repertório parou no meio dos anos 1990. Essa produção é a que procura caminhos para a canção de forma estilhaçada, seja em sua manifestação mais barroca, como Thiago Amud, novas formas de regionalização como Siba, Makely Ká ou Déa Trancoso, reinvestigação de vertentes iniciadas mas não inteiramente desenvolvidas pela MPB como os afro-sambas (Metá-metá) ou o samba de Adoniram e Nelson Cavaquinho (Rodrigo Campos, Rômulo Fróes) ou o desenvolvimento de formas composicionais calcadas no timbre como ponto de elaboração, com resultados que vão do experimental (Negro Léo) à proximidade com o pop (Curumim, Wado) ou mesmo a experimentações na desagregação da forma mesma da canção, no mote dado por Los Hermanos que José Miguel Wisnik classifica como canções expandidas. Ou chegando a achegar-se a determinadas vertentes desprezadas pela MPB e reabilitá-las, como o brega romântico de Odair José e congêneres influenciando bandas como o Cidadão Instigado. Todos trabalhos interessantíssimos e com enorme potência, apontando caminhos diversos. Mas de modo geral, ainda há um diálogo difícil com o rap, em que pesem as já mencionadas (e outras) tentativas de aproximação.

E hoje, diante da ascensão surpreendente e pela via do voto de um autoritarismo que se acreditou por anos já vencido e deixado para trás, porém repaginado e com novas armas de comunicação e mercado, como a canção pode reassumir o protagonismo, ao mesmo tempo fazendo o jogo deste mercado e suplantando-o como na década de 70, manifestando-se contra o autoritarismo sem ser dentro de uma conciliação de classes que de certa forma também assegurava sua hegemonia? Como conseguir esse efeito mobilizador sem necessariamente ser panfletário, ser popular e mercadológico “furando a bolha” sem perder a densidade artística, sem perder a legitimidade do eu lírico plural e sem deixar de ser investigativo na forma? Quem está apontando caminhos na reestruturação da canção?

Este artigo não se arvora a dar essa resposta, assim como Isaac Newton não informou as causas da gravidade, limitando-se a descrevê-la. Mas aponta, em meio à multiplicidade que ainda permanece de nossa música, dois fenômenos antes de músicas ou trabalhos, que trazem algo de inovador antes mesmo do composicional ou do estético, uma postura de pesquisa de novos parâmetros de criação artística de um modo mais amplo, algo subjacente ao trabalho de composição e que tem como resultado uma música que também ultrapassa os limites de seu formato. Não por acaso, ambos os exemplos ultrapassam largamente a esfera meramente fonográfica, sendo na apresentação ao vivo onde efetivamente se realizam, e tendo conseguido, ambos, uma popularidade que ultrapassou bolhas e é capaz de mobilizar em diversos níveis sem descontinuidade. Falo do samba da mangueira de 2019, História pra ninar gente grande, e de todo o trabalho do grupo Baiana System.

O samba da Mangueira foi um risco corrido e assumido pela escola. Como todo samba-enredo, é fruto de uma pesquisa e parte de um desfile que é a realização brasileira da obra de arte total sonhada por Wagner. Mas este samba especificamente, além da decisão de narrar a história do Brasil do ponto de vista dos que não estão nos retratos oficiais, contém em si diversas transgressões às estruturas composicionais de um samba tradicional, com harmonias inesperadas, um desenvolvimento melódico incomum ao gênero, e que no entanto funcionou exemplarmente na avenida e gerou desconforto no Brasil oficial ao ponto de o presidente da República ter tentado desqualificá-lo nas redes sociais.

Mas o samba da Mangueira, evidentemente, contava com o arcabouço e a popularidade de uma escola que já cantou essa história não oficial muitas vezes, como em 1988, quando questionava a efetividade da Abolição da Escravatura em “100 Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão”. Falemos então do Baiana System, surgido no pós-axé – embora este continue vivíssimo – e realizando uma complexa fusão entre inúmeras das manifestações de rua não apenas de Salvador, e sem renegar nenhuma: o samba de roda de Dona Edith do Prato, mas também seu filho É o Tchan; afoxé, reggae, influências caribenhas e árabes, e o Sound System que lhe emprestou o nome, mas que poderia ser também as paredes de som e festas de aparelhagem de Belém e do Nordeste, como do funk carioca – e mais o rap, representado por BNegão, quase um membro honorário do grupo. Um híbrido de híbridos a serviço de uma música com refrãos de alta voltagem poética e política, capazes de desvelar, ou lembrar, como a dança e a própria ocupação da cidade em um show ou no carnaval podem ser atos poderosos de rebeldia e afirmação – pois é ao vivo que canções como PlaysomCapim Guiné e Duas Cidades se mostram mais potentes, alinhadas com seu discurso recorrente de que a cidade é do povo… diria Castro Alves, como o céu é do condor. A música do Baiana System atualiza a união estético/política almejada pela MPB em sua nascente, porém hoje não mais orientando o carnaval, como descreveu ironicamente Caetano Veloso, mas derrubando o mais possível a separação de palco e plateia, como aprendeu (não somente) com o rap.

Estes são apenas dois exemplos que não apontam necessariamente caminhos estéticos a serem seguidos, e sim algo anterior a isto, não procedimental, mas de alguma forma ético antes do estético, mas com um impacto gigantesco artisticamente e no público. São demonstrações de vitalidade de uma produção artística capaz de conciliar, como a da MPB clássica, popularidade, investigação e posicionamento. São caminhos possíveis a serem percorridos pela canção, que, após ter escancarada a fragilidade do acordo que a manteve hegemônica por décadas e ter chegado ao fim de seu arco narrativo de país, hoje procura novamente seu lugar e novas soluções para si, aprendendo com o estilo que nasceu à sua sombra e, como exemplificam os cada vez mais comuns refrãos de raps emprestados de canções dos anos 1960/70, eventualmente, alimentando-o de volta. Sem necessidade de novas siglas, mas múltipla como o país que retratou e retrata.

P.S. Agradeço ao Acauam Oliveira não apenas pelo diálogo proporcionado pela sua introdução ao livro Sobrevivendo no Inferno, como pela leitura atenta e contributiva para este artigo.

P.P.S. Este artigo foi publicado originalmente no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social, a convite do pesquisador Pedro Cazes, a quem também agradeço.


Referências

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a Canção – engajamento político e indústria cultural  na MPB (1959/1969). São Paulo: Annablume/FAPESP, 2001

OLIVEIRA, Acauam. O evangelho marginal dos Racionais Mc’s In: Sobrevivendo no Inferno: Racionais Mc’s. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2018

O TEMPO e o artista – entrevista de Chico Buarque. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 dez. 2004

VILLAÇA, Túlio Ceci. Sobre a Canção – e seu entorno e o que ela pode se tornar. Curitiba: Appris, 2020

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