O círculo do tempo e do sentido

De todos os subgrupos e subclassificações criados dentro da MPB ao longo da segunda metade do século XX, nenhuma faz menos sentido ou é mais arbitrária que a dos Malditos. Um grupo de compositores e cantores unidos por nada além da dificuldade das gravadoras – não deles – em enquadrá-los como produto e vendê-los. Trabalhos fora do padrão de consumo médio, mas sem outras características em comum, nomes tão diversos quanto Jorge Mautner, Luiz Melodia, Jards Macalé, Sérgio Sampaio, Ednardo, e mais Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e Walter Franco. E no entanto, obras investigativas que influenciaram direta ou indiretamente muitos dos compositores e músicos com mais popularidade que eles.

O caso de Walter é exemplar. Depois de uma aparição surpreendente no VII Festival Internacional da Canção da Rede Globo, em 1972, com a canção Cabeça, ele assinou contrato com a gravadora Continental, com produção de Walter Silva e Rogério Duprat. Cabeça é uma espécie de poema concreto tridimensional e sonoro, estabelecendo uma polifonia de vozes sobre o verso O que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir irmão / ou não. Segundo o depoimento de Duprat, integrante do júri do festival, havia a tendência de dar o primeiro prêmio a Walter, apesar das reações negativas do público. Mas uma entrevista de Nara Leão, também jurada, criticando o regime militar, provocou a dissolução do júri e sua substituição por outros integrantes que deram o prêmio à mais palatável (embora também genial) Fio Maravilha, de Jorge Ben.

Certo é que Walter grava seu primeiro álbum, Ou não, em 1973, seguindo a cartilha arrojada que o levara até ali. E, entre 11 faixas, além de Cabeça, grava também Me deixe mudo. Mas um momento: para fins deste artigo, será mais útil conhecer Me deixe mudo em outra gravação do Walter, feita já em 1980.

A gravação de Me deixe mudo para o álbum Vela Aberta é num formato, digamos, convencional e quase dançante, e nos serve aqui para apresentar a forma primordial da canção, bastante simples: duas estrofes de oito versos cada e organizados dois a dois, harmonia com apenas três acordes. No entanto, a letra enigmática, cheia de imperativos negativos, se presta a algumas interpretações. Nela, menos é mais.

Não me pergunte
Não me responda
Não me procure
E não se esconda
Não diga nada
Saiba de tudo
Fique calada
Me deixe mudo

Seja no canto
Seja no centro
Fique por fora
Fique por dentro
Seja o avesso
Seja metade
Se for começo
Fique à vontade

Walter era um estudioso do Tao. O Tao Te Ching, ou Livro do Caminho e da Virtude, é um dos pilares do pensamento oriental, influenciando decisivamente tanto o surgimento do Taoismo quanto do Zen, e, entre seus ensinamentos, dois temas se repetem: o cíclico e o vazio. Me deixe mudo, como muitas outras canções de Walter Franco, está impregnada destes dois temas. Os pares de versos com opostos (às vezes inesperados, como avesso/metade) ressoam a noção de yin/yang, em especial na segunda parte, e, na primeira, a oposição ocorre entre o que se diz e o que se sabe. Não diga nada / Saiba de tudo é a oposição que será a chave mestra de sentido aqui: a compreensão se dá para além da linguagem.

Aliás, a segunda parte, já sem as negativas, permite uma dupla leitura: os três primeiros pares de versos, lidos a partir da chave condicional do penúltimo verso, podem não ser os imperativos que aparentam ser, e sim alternativas: neste caso, tanto faz ser no canto ou no centro, ficar por fora ou por dentro. Uma sutil mudança de sentido, passando da ordem específica à liberdade de escolha (e encerrada pelo verso fique à vontade). Outra vez uma oposição yin/yang, agora ente as estrofes.

Porém, a gravação convencional feita em 1980 acrescenta pouco em sentido ao que é cantado. Já a interpretação dada em 1973, no álbum Ou não, une forma e conteúdo radicalmente.

Me deixe mudo, nesta primeira versão, literalmente surge a partir do silêncio. (P.S. O Rafael Mori, que fez o excelente 365 Canções Brasileiras, me corrigiu trazendo a real primeira versão da canção, num compacto de 1972. Está no comentário abaixo do artigo, valeu, Rafael.) O poeta concreto Augusto de Campos a classificou (e também a Cabeça) como a explosão da letra em estilhaços de poesia e a sua implosão nos ocos do silêncio. E considerou especificamente Me deixe mudo como a canção com maior registro de silêncio já feita no Brasil. Tanto o canto de Walter quanto os violões e baixo de acompanhamento e uma percussão pontual surgem aos poucos, entrecortados em toques avulsos de cordas, fonemas soltos – que no entanto seguem rigorosamente a letra e a harmonia da música, porém são apresentados de tal forma isolados que o ouvido a princípio não consegue fazer a gestalt de uma estrutura.

Entretanto, gradativamente, os trechos tocados/cantados se tornam mais numerosos e extensos, as junções entre eles começam a se fazer ouvir, e a canção então se organiza ao longo de quase sete minutos, apresentando-se inteira por algumas vezes. E então, no seu minuto final, faz seu caminho inverso, tornando a se esvanecer devagar, sem perder sua estrutura, mas com o desaparecimento gradual de suas partes, de volta ao silêncio primordial.

O ótimo artigo O Silêncio em espirais: Walter Franco, do pesquisador Sílvio Stessuk, faz uma análise de Me deixe mudo que foi um dos subsídios para esta, e nele Sílvio destaca algumas passagens do Tao Te Ching. Vejamos esta, sua parte 11, na tradução um tanto literal utilizada por ele:

Trinta raios convergentes no centro
Tem uma roda,
Mas somente os vácuos entre os raios
É que facultam o seu movimento.

O oleiro faz um vaso, manipulando a argila,
Mas é o oco do vaso que lhe dá utilidade.

Paredes são massas com portas e janelas,
Mas somente o vácuo entre as massas
Lhes dá utilidade.

Assim são as coisas físicas,
Que parecem ser o principal,
Mas o seu valor está no metafísico.

Ou, numa tradução menos direta de que gosto mais:

Trinta raios convergem ao vazio do centro da roda
Através dessa não-existência
Existe a utilidade do veículo

A argila é trabalhada na forma de vasos
Através da não-existência
Existe a utilidade do objeto

Portas e janelas são abertas na construção da casa
Através da não-existência
Existe a utilidade da casa

Assim, da existência vem o valor
E da não-existência, a utilidade

O sentido de Me deixe mudo está nos espaços vazios entre seus sons. Walter desenha sua canção emergindo do silêncio e a ele retornando, articulando-se a partir do caos primordial e a ele retornando. Como a linguagem emerge do pensamento e a ele retorna.

Então, em 1974, Chico Buarque gravou um álbum em que cantava apenas outros compositores, Sinal Fechado. Na verdade, cantava uma de seu alter ego Julinho de Adelaide, criado para escapar à censura, e contribuíra com alguns versos para Lígia, de Tom Jobim, mas pediu para não ser incluído como autor para poder gravá-la neste álbum. Mas o que importa aqui é que Chico deu sua versão para Me deixe mudo.

Não faria sentido que a regravação de Chico repetisse a forma muito particular encontrada por Walter para apresentar Me deixe mudo. Por outro lado, a apresentação formal de Walter, até por seu radicalismo, parece insuperável. Como apresentar a canção de uma forma mais convencional, porém sem perder (ou não perder muito) do extremo alinhamento conseguido por Walter entre a canção e sua interpretação? Chico encontra uma forma simples e eficaz: o fade.

O fade (seja in ou out) é o recurs usado em gravações de estúdio que aumenta, ou mais frequentemente diminui gradualmente o volume da gravação, em geral num instrumental ou na repetição de um refrão, de modo que ela não tenha um término exato, com um acorde final, e sim vá se evolando aos poucos. É muito comum em gravações comerciais, inclusive as de Chico. A novidade aqui não é o fade-out, encerrando a canção, e sim o fade-in. Com ele, a canção emerge do silêncio tanto quanto no caso de Walter, mas não pela articulação progressiva dos fonemas e notas, e sim pelo aumento gradativo do volume. É um ovo de Colombo que permite a manutenção da densidade poética e formal, mas de uma maneira muito mais palatável para o ouvinte comum – como que a transposição do procedimento formal de Walter, da interpretação orgânica para o efeito técnico, do homem para a máquina.

Mas espere. Há uma diferença crucial entre a gravação de Chico e a de Walter, uma diferença insuspeita. Chico – assim como Walter em 1980 – canta a letra de Me deixe mudo em perfeita conformidade com a melodia: o primeiro verso na primeira frase melódica, o segundo com a segunda, e assim por diante. E não deveria ser assim?

Pois não é assim que Walter canta em Ou não. Walter desloca o primeiro verso e começa pelo segundo – mas com a primeira frase melódica. E assim canta com o deslocamento da letra até a última melodia, que é cantada com o primeiro verso, e emenda no reinício do processo. Na gravação de Walter, Me deixe mudo nunca tem fim, porque, quando o último verso é cantado, ainda falta encerrar a melodia, e quando a melodia é encerrada, a letra já se reiniciou. Este descompasso – e poucas vezes esta palavra foi aplicada tão a propósito – força a canção a recomeçar, recomeçar, recomeçar, girar sobre si mesma. E a canção se alinha ao outro ensinamento do Tao, a natureza cíclica de tudo. Ao desalinhar letra e melodia, Walter aumenta o poder simbólico da interpretação e reforça a impressão dada pelo início e fim da gravação: é como se Me deixe mudo soasse continuamente no silêncio e, por um breve tempo, se fizesse audível

Chico não canta a canção assim. Não tenho informação de como ele soube que o alinhamento de letra e melodia de Me deixe mudo era diferente da gravação. Possivelmente pelo próprio Walter. Certo é que ele decide não seguir a forma da gravação existente e prefere cantar letra e melodia pari passu, como Walter cantará também em sua segunda gravação.

Mas isso não significa que esta possibilidade tenha passado em branco por Chico. Pois no ano seguinte, 1976, em seu álbum Meus caros amigos, Chico surge com o samba Corrente.

Corrente é um samba metalinguístico, feito para comentar o estado atual do samba (e de resto tem um teor político que permeia quase toda a obra do Chico nesta época). Porém, com uma característica muito particular em sua estrutura formal. A grande letra de Chico é composta por 16 versos alinhados dois a dois, e é cantada duas vezes: na primeira, perfeitamente alinhada com a melodia; e na segunda, com o deslocamento de um verso!

Porém, o objetivo de Chico ao promover este deslocamento é muito diferente do de Walter. Ao contrário dele, Chico não pretende estabelecer a sensação de continuidade e provocar a repetição da canção. O que ele faz, com o realinhamento dos versos, é provocar uma inversão de sentido: o verso que era cantado acompanhando o anterior passa a ser cantado acompanhado do seguinte, e na nova junção, tem seu sentido passado de uma conotação positiva para negativa. Fácil perceber isso comparando os quatro versos finais em cada passagem:

Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente

Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente

Que se torna, com o deslocamento do verso superior para se tornar o último:

Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo

Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho

Assim, o que era a constatação de que o samba está bem melhorado se torna o lamento pelo fato de a multidão não sambar contente – e aqui segue a crítica política embutida com sutileza suficiente para não ser notada pelo panóptico da ditadura. O estratagema formal de Chico se torna ainda um pouco mais intrincado pelo fato de o primeiro verso da letra ser similar ao último, e por isso quando ocorre a repetição com deslocamento, é mais difícil ao ouvinte perceber de primeira o que aconteceu. A confusão se completa na terceira repetição, em que as duas versões da letra são cantadas sobrepostas. Depois de afirmar e negar, Chico embaralha novamente as cartas, e ouça quem tiver ouvidos de ouvir.

Afirmar que Chico Buarque inspirou-se na gravação de Walter Franco para Me deixe mudo na composição de Corrente é algo a que este artigo não se atreve. Ele limita-se a assinalar as relações formais entre estas gravações separadas por apenas três anos e relacionadas ente si pela versão de Chico para Me deixe mudo. As conclusões deixo para o leitor, e como dizia um outro bardo, o resto é silêncio.