Folclore. Folclore?

É sempre bonito ver quando alguém consegue cantar um tema assim chamado folclórico incorporando-o ao seu repertório sem rupturas. É sinal de que seus  pés estão bem fincados no chão, o que em música popular é fundamental. Mesmo a composição mais elaborada precisa manter este fio terra desimpedido, ou correrá o risco de se tornar mera teorização vazia, discussão intelectualizada – ou seja, vai deixando de ser arte, ou pelo menos arte popular.

Além disso, adoro comparar gravações. Gosto de ver como cada artista consegue trazer um tema escolhido para o seu universo musical, adaptando e adaptando-se, e muitas vezes revelando elementos fundamentais de seu trabalho que permanecem diluidos em outras músicas. Eventualmente, duas gravações da mesma música se distanciam enormemente, o que, sendo uma canção de domínio público, ao mesmo tempo é muito natural e pode ser espantoso.

Déa Trancoso é uma cantora mineira que mergulha fundo nas tradições populares. Gravou o seu primeiro CD, Tum Tum Tum em 2007 a partir do repertório musical do Vale do Jequitinhonha.

Wado é curitibano radicado em Alagoas, o que já dá uma boa medida de seu cosmopolitismo, e também de sua capacidade de misturar infuências. Gravou A Farsa do Samba Nublado, com a banda Realismo Fantástico, em 2004.

Grande Poder – com Déa Trancoso

Grande Poder – com Wado e o Realismo Fantástico

Mas há algo que considero talvez ainda mais interessante que isto: é quando o artista cria algo que tem ao mesmo tempo as características estéticas do seu trabalho, uma elaboração formal que dialogue com seus contemporâneos (ou com mestres), e uma identificação tal com a arte popular que pode mesmo vir a se confundir com o repertório folclórico. Volpi, nas artes plásticas, conseguiu isso, a meu ver. No campo da música brasileira, ninguém o fez melhor que Dorival.

Roda Pião – Dorival Caymmi

Roda Pião – Azymuth

Em tempo: Azymuth, trio de instrumentistas brasileiros radicados nos EUA, em atividade desde 1970 (!)

O cantor e compositor carioca Edu Krieger conta que um dia estava passando em frente a uma escola municipal, quando ouviu música no pátio, e se achegou ao portão para ouvir. Qual não foi sua surpresa ao reconhecer que uma ciranda sua estava sendo ensinada na aula de música. Ele ainda estava  gravando seu primeiro álbum, mas a canção já fora gravada por mais de uma cantora, como Rita de Cássia e Maria Rita. Edu esperou a aula acabar, pediu licença para falar com a professora e perguntou de onde ela conhecia a música. A professora então “informou” a ele que a canção era folclórica! Neste momento, Edu decidiu incluir a música no seu primeiro disco, antes que ela deixasse de ser dele e virasse folclórica…

Ciranda do Mundo – com Edu Krieger e Rodrigo Maranhão

Ciranda do Mundo – com Maria Rita

P.S. Deixo para o final o esclarecimento, bem no espírito deste texto: a canção Grande Poder não é de domínio público, tem autor. E este é Mestre Verdelinho, um dos maiores coqueiros e repentistas de Alagoas, perito no pandeiro e no ganzá. Mestre Verdelinho faleceu dia 18 de março de 2010. A ele, um dos muitos que realizaram a fusão perfeita da arte popular, dedico este post.

3 comentários em “Folclore. Folclore?

  1. MARIO ALMEIDA disse:

    Tenho todos os discos dela. Encomendei por email e ela me enviou. Naquela época era assim. Hoje ouço tudo o que tem no SpotFy

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  2. tuliovillaca disse:

    Oi, Júlia. Folgo, antes de tudo, em saber que estou tendo audiência na na Capitania Geral do Maranhão e Grão Pará! (na verdade, tenho um grande amigo em Imperatriz, mas nem sei se ele tem tempo de ler). Fico mais feliz ainda em saber que estas mal traçadas linhas estão sendo úteis em alguma coisa.
    Olha, sobre as versões, acho importante lembrar que, embora a gente faça esta diferenciação automática entre “tradicional” e “moderno”, não é bem assim, a gravação da Déa é mais que moderna (esta palavra velha), é contemporânea, ou pós-contemporânea, sei lá. Não é regressista nem engessadora, é “mais pra frente”, como dizia um amigo meu. Então, tomemos cuidado para não cair nessa armadilha reducionista.
    Sobre as questões do teatro, acho que você não citou o Kazuo à toa, já que ele fundamentalmente pesquisou um gestual de dança e teatro, que é bem o que você está preocurando. Já ouvi falar difusamente de pesquisas de um gestual brasileiro, você deve conhecer melhor que eu. Será que o caminho não é por aí, no sentido de uma construção entre isto e linguagens contemporâneas? Era disso que eu falava nas canções que coloquei. (pitacos do metido que sou. Mas você perguntou, ou não perguntou?)
    Fora isso, abracíssimos. E aguarde que te mando uma proposta que passou pela cachola. Chega, senão o comentário vira post.

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  3. Júlia Peredo Sarmento disse:

    Pô Túlio!
    Que lindeza. Sou tua fã!
    Foi ótimo ter encontrado esse teu artigo porque estou o tempo inteiro me perguntando onde e como as tradições desse novo lugar onde me encontro (Ceará) podem atravessar meu pensamento e fazer na arte que domino que a do Teatro!
    No Rio essa discussão da tradição está mais dissolvida, no meu entender. A identidade do Rio é tão cosmopolita quanto qualquer outra cidade do globo e as pessoas transitão bem entre samba e funk sem, em nenhum momento se perguntar se aquilo é ou não tradição. Aqui é diferente. Temos a região do Cariri que é o bolsão produtor de cultura da região. Bandas cabaçais e de pifano, reisados, tambor de criola, os vagueiros e por aí vai. Eles lidam com tudo isso de forma mais enraizada no pensamento de tradição. Não sei se me fiz entender, mas o caso é que também quero investigar esse papo de folclore, tradição, engessamento e liberdade. Maravilhoso Wado e Azimuth!
    Beijo e muita merda
    Júlia
    PS. Deixa a Luna ser impregnada! Qaundo vc menos esperar ela estará fazendo opções mais conscientes! Hahahahahaha!
    PS2. Não sei se vc sabe mas Kazuo Ono morreu no dia 2 à tarde. Bem não sei porque te digo isso, mas sei que vc sabe que era um cara muito importante e como vc é cheio de informações, aqui está mais uma.

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