As muitas vidas da camponesa de Guantánamo

Guantanamera é uma canção de duas encarnações, ou talvez mais. Teve o estranho destino de ver atribuídos tantos significados alheios a si própria, e isto depois de uma história de criação que também tem camadas sobre camadas de significados, tempo e história – história que acaba por se confundir com a do país de que se tornou um hino informal, país que teve e tem também um destino invulgar: Cuba.

Guantanamera não é exatamente composta, antes vai se formando devagar, e sempre de forma algo indistinta. Há mais de uma possibilidade para a origem da guajira, ritmo tradicional cubano. Suas raízes, sob o nome punto cubano, punto guajiro ou simplesmente punto, remontam à música andaluza do século XVII. Na virada do século XX, de mistura com a música dos criollos (filhos de espanhóis nascidos nas América), era um ternário tocado por trovadores em instrumentos de cordas dedilhadas como o tres, com temas em geral sobre a vida no campo. Mais tarde, por volta dos anos 1930, o ritmo cruza com o son (ritmo mais urbano, um dos que originou a salsa), e a guajira muda para um 4/4 mais dançante (um bom exemplo é a canção de mesmo nome gravada por Carlos Santana), porém mantendo a temática rural e privilegiando ainda os instrumentos de cordas em vez dos de sopros característicos do son e seus descendentes.

O sítio da Associação Cultural Guantanamera, criada por brasileiros, diz:

O nome guajiro como sinônimo do campesino cubano vem da época em que os conquistadores espanhóis, depois de dizimar a população indígena e ainda sem os escravos negros, recorreram aos índios da região de La Guajira, entre a Venezuela e a Colômbia, para trabalhar no campo.

Portanto, a palavra guajira (no feminino) em Cuba então tem o significado de camponesa, que se estendeu ao nome do estilo. O sítio da Associação prossegue:

Não se sabe exatamente quando surgiu La Guantanamera. É uma manifestação folclórica do povo campesino. Sua origem é a cidade de Guantánamo, onde está a base naval dos Estados Unidos. O título da canção La Guantanamera significa mulher de Guantánamo.
Joseíto Fernández, conhecido trovador havaneiro, foi o primeiro cantador de guajiras que disseminou La Guantanamera na ilha. Em um programa de rádio da década de 40, chamado La Guantanamera – cujos temas eram escolhidos nas páginas policiais dos jornais – alternavam-se partes cantadas com a dramatização de crimes.
Ao concluir cada parte, repetia-se o coro: “Guantanamera, guajira guantanamera…”. O programa ficou tão popular que o povo adotou a frase “me cantó una Guantanamera…”, para falar que alguém contou um fato triste.

Outra fonte, para a qual não achei confirmação, afirma:

La Guantanamera fué compuesta (primeros cuatro compases, o estribillo) por el Guantanamero Herminio Garcia Wilson un sábado de Julio de 1929. La lleva a La Habana el Cuarteto Cubano (“Pipi” Corona, Juan Limonta, Rigoberto Hechavarría “Maduro” y Joaquín Garcia) que la usaban como tema de presentación. En la Habana, Cheo Marquetti le hace arreglos, pasando de son a guajira, la adopta Joseíto Fernández y con Nela Cruz “La Calandria”la popularizan,1945, desde el programa radial “Sucesos del día”.

Porém, estas versões algo difusas tem algo em comum: neste momento da história de Guantanamera, não há ainda exatamente Guantanamera. Há um refrão popular de apenas duas palavras, que já concentra em si e evoca um passado de colonização espanhola e trabalho escravo, uma ancestralidade já tão incorporada que sustenta em si a transmissão das notícias do dia-a-dia. Só então, a partir de todos estes substratos, surgiria uma canção.

A maior parte dos estudiosos da música da ilha diz que Joseíto Fernández (1908-79) foi o primeiro a cantar e gravar a Poesía I dos Versos Sencillos, publicados em 1891 por José Martí, com a melodia de La Guantanamera. Mas é importante observar que Joseíto Fernández não teve nada a ver com a melodia nem com o texto da La Guantanamera como conhecemos atualmente.
Já o musicólogo cubano Tony Evora diz que a incorporação de alguns versos dos Versos Sencillos deve-se a uma versão do compositor espanhol Julián Orbón (1925-91). Orbón foi professor do cubano Héctor Angulo na Manhattan School of Music de Nova Iorque. Héctor mostrou a versão de Orbón ao cantor norteamericano Pete Seeger que a difundiu.

Aqui, cabe falar então de José Martí, intelectual, poeta e um dos maiores heróis cubanos, organizador da última guerra de independência de Cuba contra a Espanha – Cuba foi a última colônia espanhola na América, foram mais de 30 anos de guerra pela independência -, e martir desta mesma guerra. Uma guerra que acabou com a derrota da Espanha e a entrada oportunista dos Estados Unidos quando já estava decidida, tomando seu lugar como colonizadores. Os EUA permaneceram na ilha por mais de dez anos, até 1908, quando se retiraram – mas não sem antes assegurarem a instalação da Base militar de Guantánamo (até hoje o governo americano paga um aluguel de 4.085 dólares por ano, 37 centavos por Km2, que o governo cubano se recusa a receber) e o direito de intervir na ilha pelos próximos 60 anos – o que fizeram em 1912, e mais tarde novamente de forma indireta, ao apoiar a ditadura de Fulgencio Batista.

Os Versos Sencillos, escritos antes da guerra, não eram nenhuma incitação à revolta ou à revolução, mas sim um grande poema de amor à mulher e à patria passando pelos filhos e pela natureza – portanto, bem de acordo com a característica camponeza da guajira. Ainda assim, a história pessoal de seu criador e a própria história de Cuba se imiscuiram no significado da canção recém-formada por estes meandros circunstanciais, tornando-a também uma canção que falava de independência, de afirmação de uma nacionalidade ainda nascente e cambiante. Mas ainda faltavam algumas reviravoltas.

Em 1959, o ditador Fulgêncio Batista é deposto, contra todas as expectativas, por um grupo de guerrilheiros comandado por Fidel Castro. O novo governo é naturalmente anti-colonialista, mas não anti-EUA, onde Fidel chega a ir se explicar e afirmar textualmente: não somos comunistas. Porém, os interesses dos EUA, materializados nas oligarquias cubanas que foram apeadas do poder, foram contrariados, o que os leva a cortar relações diplomáticas com Cuba, decretar um embargo comercial extensivo a todos os aliados dos EUA (ou seja, todo o bloco capitalista do Ocidente) e tentar invadir a ilha em 1961 (o famoso fracasso da Invasão da Baia dos Porcos), entre outras vezes.

Cuba, empobrecida e em convulsão social, precisava desesperadamente de ajuda internacional, e eis que o mundo fechava suas portas a ela. Mas não todo o mundo. A União Soviética, uma ditadura comunista, ao ver os EUA sendo desalojados de uma ilha no seu quintal, percebem a oportunidade geopolítica que se apresenta, e estendem a mão ao governo recém-implantando. Cuba agarra-se a esta tábua de salvação que lhe permite ao mesmo tempo continuar desafiandoo país que a subordinara depois de libertá-la, e levar adiante uma experiência de país até então inédita – e torna-se socialista.

Enquanto tudo isto acontecia, nos próprios EUA, uma revolução bastante diversa ocorria também. Uma juventude interessada em uma nova música, mas também em um novo mundo, uma nova política, surgia e começava a se manifestar. Em 1964 Bob Dylan cantaria: os tempos estão mudando. Esta juventude americana não tem orgulho do papel dos EUA, por exemplo, na Guerra do Vietnã (1959-1975), como também nos patrocínios a ditadores nas América Central e do Sul. É quando Pete Seeger, pesquisador, compositor e ativista americano (uma ironia da História), divulga a canção – ou melhor, uma das muitas versões correntes da canção, pois mesmo os versos de Martí usados costumavam variar – nos EUA, ela é gravada pelo grupo The Sandpipers, e alcança o primeiro lugar nas paradas de sucesso em 1966.

Novamente Guantanamera tinha o significado de seus versos modificado à sua revelia, pelas cambalhotas da História. Foi gravada por ícones da canção de protesto como Joan Baez, tornou-se uma espécie de hino de Cuba para cubanos e não-cubanos. Agora, somado ao significado idílico de uma canção camponesa, à luta deste mesmo camponês contra poderes externos, à mágoa por uma parte de seu território abrigar uma base militar estrangeira, acrescentou-se também a afirmação de uma forma particular de viver, não apenas para os habitantes deste país, mas para muitos que torciam por ele como pela realização de uma utopia.

Utopia que não resistiu às próximas guinadas da História. Entre 1985 e 1991, a União Soviética desmoronou e o comunismo ditatorial que a conduzira e sustentara o sonho cubano desmanchou-se. Cuba passou a se equilibrar sobre uma corda bamba, tendo conseguido imensos avanços sociais, erradicando o analfabetismo e implantando um serviço de saúde exemplar, mas permanecendo em sistema de partido único, com perseguições e execuções políticas, e com uma economia que não se desenvolveu, ainda fortemente rural, dependente de exportações à URSS e, mais recentemente, do turismo. Hoje vai tentando abrir sua economia aos poucos, de modo a não ser invadida por empresas estrangeiras e tornar-se novamente uma colônia comercial de outros países, e é bombardeada diariamente pela imprensa e diplomacia internacionais, que preferem tratar dela a qualquer ditadura na África Central.

E para onde vai Cuba? Seu futuro é incerto, a despeito das declarações oficiais. O país desenvolveu sua nacionalidade aos trancos e barrancos ao longo do século XX, e Guantanamera foi refletindo este desenvolvimento no seu próprio, passando de canto de lavradores a hino político, sem deixar de ser, no fundo, o que sempre foi, mesmo antes de receber a poesia de José Martí: uma canção que fala da mulher, da pátria, da natureza e dos filhos a quem se deixará esta terra. Ao cantar o refrão guajira guantanamera, canta-se o amor à mulher camponesa, ao estilo musical dos antepassados (e por extensão à riquíssima cultura cubana), ao território cubano expropriado pelo estrangeiro, à toda a ilha e seu povo, seu sofrimento e suas histórias. Guantanamera é a soma de todos estes sentidos que lhe foram acrescentados pelo tempo, e é maior do que a soma deles. Porque cada uma desta épocas históricas, colonial, ditatorial, socialista, revolucionária, passou ou passará, e Cuba permaneceu e permanecerá. E certamente Guantanamera a acompanhará.

com Compay Segundo

com Zé Rodrix, numa belíssima versão vocal. (Zé adorava rítmos caribenhos, e alguns anos depois compôs outra guajira, mais bem humorada, que nomeou seu álbum de 1978: Soy Latino Americano)

E para finalizar, recomendo este artigo, do antropólogo George Zarur: A Narrativa Épica e a Identidade Nacional Cubana.

14 comentários em “As muitas vidas da camponesa de Guantánamo

  1. Jurandir disse:

    Um hino que será eternamente cantado e bem referenciado; uma trajetória de luta abrangente.

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  2. Tiago Zappaz disse:

    Muito interessante e informativo. Obrigado!

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  3. Cibele Gorete Silva disse:

    Que texto maravilhoso. A história surpreende e emociona. Hino de amor e patriotismo. Viva la resistência!!!

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  4. wladir Danielli disse:

    Viva Cuba e a revolução.

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  5. Maravilhoso trabalho.

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  6. Zeca Dicaze disse:

    Obrigado. Amanhã é aniversário de José Martí (1853). Grande homem!

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  7. Entre as várias versões há que mais me deleita é cantada por “La Índia de Oriente”Não encontrei
    a letra dela.Talvez alguém possa me ajudar.Ficaria muito grato.Miecislau

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  8. Linda letra e linda música!
    Em Cuba foi composta essa maravilhosa obra-prima musical (Guantanamera) e lá foi escrita uma das mais espetaculares novelas de todos os tempos (O Direito de Nascer).

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  9. Sergio Antonio Lopes disse:

    Simplesmente, espetacular essa letra e música,muito legal, sou saudoso por natureza, e essas melodias mechem comigo,parabens.

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  10. Gustavo Lopes disse:

    Muito bom!
    Que seja acessível e público, o quanto possível!!!

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  11. Muito interessante!! Excelente trabalho!!

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  12. Belo trabalho, bastante informativo e com muitos dados históricos de alta relevância.

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  13. O artigo é muito bom: explicativo, com muitas informações de conho cultural, político, com bem disse épico.
    Agradecido pelo apoio na pesquisa que venho fazendo sobre a musica cubana.

    Francisco Cassiano Sousa.

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  14. gui disse:

    maravilhoso!!! Bom trabalho!

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