O surgimento do Amazônico-futurismo

Não domino o conceito de Afrofuturismo, aviso de saída. Mas sei que se trata de um conceito complexo que envolve bem mais que apenas uma estética: o Afrofuturismo é uma afirmação civilizatória, o estabelecimento de uma alternativa espaço-temporal à exploração de um continente que, narrando-se em futuros alternativos, estabelece pontes com o presente e propõe também alternativas de futuro reais, possíveis, estabelecendo também linhas de continuidade entre a tradição e a modernidade, reafirmando culturas tidas como inferiores e colocando-as em disputa palmo a palmo com as dominantes. Repito, conheço pouco mais do que isso sobre o Afrofuturismo, mas dentro deste entendimento cujas limitações reconheço – embora por si já abarque tanto -, a escuta do álbum Amazônia Subterrânea, de Thiago Thiago de Mello, me sugeriu imediatamente a transposição deste conceito para a Amazônia e o estabelecimento da linha mestra, a inauguração, do que seria então o Amazônico-futurismo.

Amazônia Subterrânea é fruto de uma longa maturação, que incluiu a gravação de outro álbum quase um embrião deste. Em 2017 ele gravou nos EUA com o percussionista (brasileiro) Sergio Krakowski e outros músicos o álbum Amazônia Underground, que compartilha com Amazônia Subterrânea cinco composições. Seu repertório foi sendo forjado ao longo de anos – as primeiras composições são de 2011, a maioria entre 2014 e 2015 – que incluíram pesquisa e vivência, já que Thiago é um caboclo, um filho da Amazônia embora nascido no Rio de Janeiro – e também do poeta Thiago de Mello, amazonense de Barreirinha e possivelmente o último representante da terceira geração modernista, a geração de 45, de características fortemente regionalistas – que o digam Guimarães Rosa e João Cabral de Mello Neto. Thiago Thiago ancora-se declaradamente nestas origens. Porém, tão importante quanto as influências poderosas que escolhe e recolhe em sua história é o que ele faz com elas. E tudo o que Amazônia Subterrânea não é e recusa-se a ser é um mero repetidor de tradições, embora elas estejam todas lá, tão potentes a ponto de em certos momentos gerarem um estranhamento imenso no ouvinte, como se se tratasse não apenas de outro país que se desvela, mas também de outra língua a que se escuta. Afinal, versos como Filha de Boiúna/ Com Sucuriju/ A índia Tikuna/ Mana de Norato/ É a Boiaçu não são exatamente elementares. Há toda uma mitologia envolvida nisto, e menos conhecida para nós brasileiros que a grega ou a nórdica ou mesmo a africana.

Por tudo isto, a sensação de mergulho em – ou na – Amazônia Subterrânea é imensa, e o próprio título do álbum, já delineado desde Amazônia Underground, não disfarça. Nem sempre um morador do sudeste como eu, por mais interessado em cultura brasileira, sou capaz de saber do que se trata objetivamente nas letras de Thiago (o filho – há também os poemas musicados do pai, dos quais falarei adiante). Em alguns casos, resta embarcar na sonoridade das palavras como quem sobe o rio confiando no barqueiro. Neste sentido, a escuta de Amazônia Subterrânea é como o mergulho em um mundo quase conhecido, como ouvir uma língua de sonoridade próxima à nossa mas com significados muito diversos. A sensação de estranhamento da proximidade é inerente à escuta do álbum. Algo muito próximo de nós, mas que se perde em velocidade acelerada, a cada dia vai se tornando mais ininteligível, que se perde no passado.

E também por isso faz certamente diferença saber, por exemplo, que Ajuricaba, com quem o protagonista da épica Cangaço caboclo é comparado de passagem, foi o líder dos manaôs que no século XVIII resistiu à ferozmente à chegada dos portugueses e preferiu a morte à escravidão. Como este termo há dúzias ao longo das 12 canções, o que dá uma dimensão d0 imenso da cultura que se adentra, densa como a própria floresta. Por isso, faz falta a um entendimento mais imediato do álbum o didatismo de um glossário no encarte, impossível em tempos de streaming, mas que se fez utilíssimo no álbum de Sergio Santos Áfrico, em que as letra de Paulo Cesar Pinheiro desvendavam tradições africanas cumprindo um trajeto de releitura e modernização similar ao que vemos aqui (se você não conhece Áfrico, vá ouvi-lo.) De certa forma, são álbuns irmãos em seu trabalho de deslevo e suas apresentações arrojadas esteticamente, e o fato de Áfrico ser de 2002 é sinal também de o quanto Amazônia Subterrânea é um temporão há muito necessário.

Pois Amazônia Subterrânea tem a tarefa auto-imposta de tomar para si todo este universo e trazê-lo para a superfície, mas não se trata apenas de um deslocamento no espaço, mas também no tempo. Mas também não necessariamente no tempo real, cronológico, mas no tempo do imaginário, porque o que ela toma para si é exatamente este imaginário. Neste momento do texto tenho enorme dificuldade em achar a palavra exata para descrever o que o processo estético promove no imaginário aqui. Não se trata de forma alguma de uma atualização: as histórias estão todas aqui no presente, hoje, elas existem, estão vivas. Porém são revigoradas e reapresentadas por Thiago com um arrojo que as impinge não só nos ouvidos, mas as torna prementes, presentes, futuras. Não vejo definição melhor: Thiago futuriza a Amazônia.

E o faz de dois modos, ou por meio de dois procedimentos principais fortemente integrados entre si: a forma das composições e os arranjos, e em ambos instaurar uma tensão permanente. Ir à Amazônia Subterrânea não é um passeio turístico; é floresta adentro, e os riscos inerentes a ela estão em todo o seu fabulário. Ora o curupira pode fazê-lo se perder e não achar o caminho de volta, ora a onça, a rajada, a temida, a pintada! pode surgir em seu caminho. E assim como o que é contado, os caminhos harmônicos de Thiago, sem irem na direção de uma sofisticação jazzística, tratam de não oferecer de pronto sua resolução, ainda que para melodias simples.

Um excelente exemplo desta tensão está em Certezas inacreditáveis: quase impossível não pular por dentro ao longo da faixa, que alia um ritmo acelerado apresentando os elementos da mata em caleidoscópio e um crescendo que desemboca num refrão ainda mais feroz, tática que se repete aliás: em várias das canções o climax do refrão é cuidadosamente preparado ser irresistível, demostrando uma arquitetura precisa de composição. Em A Onça, por exemplo, esta preparação se dá com uma harmonia em suspenso acompanhada da emulação do compasso unário (típico de diversas manifestações indígenas) ao fundo nos versos o esturro da fera vai roncar / tem bicho lá fora a ronronar / enfeitiçada a onça foi / pele rajada / caçada foi!, quando ocorre a entrada triunfal da guitarra.

E no refrão, e não apenas no refrão, a guitarra. Pode parecer piada tratar o assunto nesses termos mais de 50 anos depois da passeata que combateu a introdução da guitarra elétrica na música brasileira, mas o fato é que a fusão de sonoridades que Thiago faz aqui não é trivial. Não se trata simplesmente de uma versão turbinada de ritmos indígenas, mas de uma fusão estudada, em que os riff de Diogo Sili ajustam-se em contracantos à voz do Thiago e integrada à intrincada e detalhista percussão de Bernardo Aguiar (sendo Bernardo e Diogo também os produtores do álbum), seguindo uma trilha desbravada em boa parte por Chico Science e Nação Zumbi em seus álbuns Da lama ao caos e Afrociberdelia – e neste segundo ressoam também no título os ecos do Afrofuturismo aplicado ao maracatu.

Assim, em O vento leva a canoa, o arranjo feroz à base de um riff de guitarra contrasta com a melodia que se estende como o vento no rio, movendo-se sobre as águas; em Confesso que tenho medo o riff ataca de pronto com a voz de Thiago como uma ameaça que ataca; porém em outras como O cheiro da Marirana o crescendo do arranjo conduz a uma madrugada de estrelas que não tem nada de contemplativa; assim também em Estrela d’água. A integração rítmica de guitarra, percussão e o violão de Thiago, este sempre com desenhos em contraponto, formam um conjunto de poliritmias. Thiago não tem medo da dança, e sua melodia também está sempre a serviço. Não há guinadas e sinuosidades, mas funcionalidade, que pode ser derivada também do recolhimento das histórias, ditos e termos feito por Thiago com caboclos e sertanejos. Ele lida com a palavra falada, a ponto de em ao menos três momentos passar a ela, com a narrativa de interregno em A onça, a introdução dando voz a um caboclo para Certezas inacreditáveis, e o poema recitado por Thiago pai em O vento leva a canoa. Nos três casos, mesmo no que é apenas uma introdução, a passagem voz falada/cantada se dá com naturalidade, inclusive pela voz dura, rascante, potente de Thiago, uma voz que traz em si a credibilidade para cantar estas histórias.

O que nos leva aos quatro poemas de Thiago de Mello, pai, e as escolhas feitas pelo filho para musicá-los. Thiago lida com os poemas do pai com liberdade, e permite-se uma transcrição melódica que provavelmente o autor não teria sonhado. Aqui, a passagem da poesia para a prosódia da canção se dá com demarcações de território: o Thiago pai frequentemente completa uma frase em mais de um verso, técnica de construção poética chamada enjambement, e o filho, ao musicar, muitas vezes prefere deixar a frase incompleta e tornar ao início da estrofe, com um efeito inesperado. Assim é em Confesso que tenho medo:

Confesso que tenho medo
Não é da fera felina
Macia, franzindo o cenho
Nem da aparição do anjo
Terrível, de riso ambíguo
É o medo de ver de novo
Úmido gume da lâmina
Que me abriu vida ao meio

Em que, ao chegar ao antepenúltimo verso, É o medo de ver de novo, em vez de prosseguir, ele volta ao início, deixando a oração incompleta. O mesmo ocorre na última faixa, Me desprendi do sol, um soneto musicado. Ao chegar à terceira estrofe,

Navego sem temor. Desce serena
a mão deste crepúsculo que entrega
o sal da sua sombra. Me arde a pena

Thiago filho igualmente abandona a sequência no segundo verso para voltar ao início da canção, e o complemento o sal da sua sombra só é cantado mais adiante. Um desastre sintático? Mas não é o que acontece, pois a canção não é uma ciência exata. Na prática, estas interrupções inesperadas ajudam a instaurar a tensão permanente dos arranjos, adiam a conclusão para promover a reiteração, e com isto fortalecem a compreensão da letra em vez de impedir. Mantêm a tensão, a atenção, dentro da reiteração.

Por sinal que os poemas de Thiago de Mello abrem, fecham e fornecem parte da espinha dorsal do álbum. A canção de abertura, O Cheiro da Marirana, é o poema de volta para casa do pai, tanto para o Brasil quanto para a Amazônia, vindo do exílio da ditadura militar, e no álbum serve como senha para o encontro do filho com este universo e com o pai, e como introdução para o ouvinte.

Mas nenhuma das faixas de Amazônia Subterrânea tem a ambição de promover este choque de universos tanto quanto Cangaço Caboblo, um épico brasileiro da estirpe e do fôlego de A hora e a vez de Augusto Matraga (esta um conto/filme), ou Faroeste Caboclo, ou Domingo no Parque. A saga do caboclo que vai ao litoral, conquista o estrangeiro e o mundo dos brancos, e ao voltar revolta-se contra a miséria de sua gente causada por estes mesmos brancos onde foi reconhecido, e torna-se então um revolucionário criminalizado, esta jornada do anti-herói é também a de um alter ego às avessas do ouvinte, pois se este foi convidado a adentrar este mundo da floresta, o protagonista da canção faz o caminho inverso para só depois voltar. A estrutura de várias partes sem refrão, quase uma rapsódia, conduz a história por mais de um climax, e não falta no desfecho, assim como nas canções de Renato Russo e Gilberto Gil, a volta de uma aceleração do ritmo após o encerramento da trama, como uma coda necessária para a catarse final. Não é uma história fácil de acompanhar. Tem a característica elíptica destas narrativas, em que a lenda apresenta lacunas a serem preenchidas pela imaginação – ou não seriam lendas. Mas é talvez a canção responsável pela conexão com o ouvinte, ao apresentar o único eu lírico que sai de dentro do espelho, ainda que para lá voltar.

E ladeando Cangaço Caboclo estão as duas canções que dão as definições finais ao álbum. Última Tradição é como que a declaração de princípios do álbum, e seu eu lírico é nada menos que, digamos, o espírito da Amazônia:

Não quero ser mais a última tradição
Nem o novo fetiche da modernidade
Só que se respeite quando eu digo que não
Que meu chão não é o que se pisa na cidade
Sou antigo, e persigo ainda vivo
Como lenda, que não deixa de fazer sentido

A Última Tradição faz na negativa a síntese passado / futuro que o álbum busca, recusando-se tanto a parar no tempo quanto a entrar na roleta da efemeridade em troca de um presente instantâneo – em vez disso, jogando o passado profundo para adiante, apostando adiante. E a última canção, Me desprendi do sol, mais um poema de Thiago pai musicado por Thiago filho, apresenta a síntese positiva desta passagem de passado para futuro. Se em Última Tradição há o lamento Minha velha casa hoje é um museu, aqui o verso chave, além do que tornou-se o título na leitura de Thiago filho, é Navego sem temor  (e O vento leva a canoa, disse logo antes em outro poema tornado canção). E se a outra canção apresenta-se quase como a única que não traz as guitarras como responsáveis pelo crescendo, substituídas pelas flautas de Carlos Malta, a que encerra o álbum já chega cavalgando a distorção, potente, apontando para o futuro.

Pois Thiago de Mello é a antítese de um passadista, ao contrário, sua poesia é eivada de utopia, e é para este futuro que Thiago Thiago envia a Amazônia. Sem perder de vista a realidade enfrentada pelo protagonista de Cangaço Caboclo (que pode ser também um alter ego hiperbólico do próprio Thiago), como no  interregno de A Onça, em que, depois de narrar a proeza de Bartola enfrentando a fera, completa como um soco no estômago:

Uns anos depois, Bartola morreu. Foi de apendicite.  Porque no interior do Brasil é assim. Os caboclos até afugentam os seres da mata, mas morrem de doenças miseráveis!

E apesar disto, o que Amazônia Subterrânea faz é enxergar este mundo com o olhar de quem saiu dele e voltou, e trazer para ele tudo, sem medo de o dizimar, mas para o fortalecer. Assim, há no repertório do álbum um pouco de realismo fantástico, ou de ciberpunk, com também rock progressivo, batidas eletrônicas – e tudo isto a serviço da expressão de um universo tão enorme que – para dar mais um exemplo – até mesmo uma canção de amor perdido como Vingança de Cunhã não é uma canção de amor, mas sim uma canção sobre este universo, como todas as demais. A história de amor aqui, como quase todas as histórias cantadas no álbum, parece apenas um pretexto para imergir o ouvinte num ambiente específico que é a grande estrela, onde para qualquer lado que se olhe há algo de muito novo, algo que está mudando neste momento e vai continuar a mudar. Ou como declama Thiago pai, em outra das intervenções faladas que contracenam com as canções e as completam, Mudar em movimento, mas sem deixar de ser o mesmo ser que muda, como o rio.

Obrigado a Jocê Rodrigues, cuja ótima matéria sobre o Amazônia Subterrânea por ocasião de seu lançamento me serviu como uma das fontes deste artigo.

Um comentário em “O surgimento do Amazônico-futurismo

  1. Anna Braga disse:

    Não restam sentidos que não tenham sido conquistados!
    “Amazonia Subterrânea” é sensacional!!

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