Vai ver, não entendemos mesmo os mitos ou Ceci n’est pas un multivers

Imagine um mundo em que todas as coisas só pudessem ser medidas em unidades exatas, sem decimais, sem extensões intermediárias. Em que uma distância pudesse ser de um metro ou dois, mas nunca um e meio; ou mesmo dez ou vinte centímetros, mas nunca 13, 15 ou 18. Em que sequer a possibilidade de um objeto com estas dimensões fosse aventada. Conseguiu? Seria um universo estranho, talvez parecido com o jogo Minecraft. Algo impensável ou inadmissível, que reduziria tudo a uma enorme pobreza de possibilidades, correto?

Pois isto ocorre em uma outra instância da vida, que não é a das dimensões físicas, mas a musical. Virtualmente toda a música consumida pela enorme maioria da população ocidental, em especial a música popular, foi criada segundo o pensamento acima, ou seja, segundo uma divisão específica do som que muito raramente é desafiada. A escala de doze notas da música ocidental tornou-se o padrão devido a um processo histórico que vai desde a Grécia antiga, passando pelos cantos gregorianos medievais, e se consolida com Bach e seus contemporâneos. Não é uma escolha sem razão de ser, calcada nos harmônicos gerados pela emissão das notas, ressonâncias com base matemática que aprendemos a considerar agradáveis ao ouvido. Mas o continuum das alturas musicais admite outras possibilidades. E se, em vez de doze, forem treze as divisões da distância chamada oitava, que vai de dó a dó? E se forem 15 notas? A distância entre elas diminuirá, os intervalos serão outros, os acordes… compositores da chamada música de concerto têm explorado estas variações há décadas. E na música popular?

Este é o desafio a que se propôs o Lois Lancaster. Ele tem antecedentes pessoais: sua participação como a voz principal da banda Zumbi do Mato o credencia. Porém, o trabalho do Zumbi era de desconstrução (analisei duas de suas músicas aqui). Já em Mar, céu do chão, nome deste álbum, Lois se propõe a um trabalho de reconstrução – mas uma reconstrução em seus próprios termos. A única referência em termos de composição no Brasil que lhe poderia servir – e serve, de algum modo, é o trabalho de Arrigo Barnabé, que gerou alguns álbuns históricos, em especial Clara Crocodilo. Mas a música de Arrigo, embora tremendamente disruptiva, tem como base inicial as experiências dodecafônicas de Schoenberg, que reorganizam a escala de 12 notas mudando sua hierarquia, mas sem lhes acrescentar outras. O caminho que Lois percorre, percorre só.

E desde o título e os primeiros versos da primeira faixa – Uma berceuse – Lois já faz como que um resumo de suas intenções: Mar, céu do chão é uma sentença que, sinteticamente, reorganiza o espaço do mundo, como na cena do filme A Origem em que, dentro de um sonho, uma personagem levanta o chão adiante tornando-o vertical, mas ainda assim percorrível pelos automóveis e pessoas. O reposicionamento do mar neste título desafia o ouvinte antes mesmo de iniciada a audição: a imagem de um mar invertido sobre nossas cabeças ameaçadoramente é a que apresenta o álbum, não fosse a cor do mar resultado direto do reflexo do céu. Ou, no dizer do próprio Lois:

O mar é o tema desse álbum – o elemento água, espalhado em todo um planeta pós-utópico, em um semblante, ou mesmo pressentindo o estado de superfluido como um portal para algum universo Paralelo Ultra DIMensional, lar de uma criatura que chamaremos por conveniência de Marcelo. O sentido do álbum o tem por referência e fulcro.

A menção ao Marcelo parece pouco mais que uma blague de Lois ao ser lida descolada da escuta do álbum. Mas nele está concentrada a noção desestabilizadora que percorre o álbum – ou melhor dizendo, reestabilizadora. Pois, as primeiras palavras cantadas por Lois são justamente: Em que eu consisto? Onde me estabilizo? As perguntas da abertura de Uma berceuse abrem também o portal para que o ouvinte possa se desestabelecer e reestabelecer num mundo sob nova direção, ao menos por 36 minutos. Mais adiante, segue a letra:

E atiro, atiro! BANG, BANG, teje morto!
Mas ele trocara de lugar com sua sombra
E esta se confundira em dez na penumbra.
Na certa, foi apenas Deus que escreveu torto.

A noção de Deus escrevendo torto, como numa geometria não euclidiana, é exatamente a que perpassa todo o álbum. E é a ela que o ouvinte de Mar, céu do chão vai ter de se adaptar. A estranheza inicial é inevitável a quem não estiver familiarizado – mesmo um ouvinte antigo do Zumbi perceberá a diferença. Por mais que a sintaxe característica de Lois esteja presente em intervalos inesperados e ligações entre assuntos aparentemente díspares, aqui há uma certa organização implícita e subjacente à fluidez da água – sejam as correntes marítimas, seja o ciclo das marés.

E para se inserir nesta ordem, mais que entender, é preciso imergir na escuta. A principal escala usada por Lois, a de Bohlen-Pierce, tem 13 notas, mas pode ser mais apropriadamente chamada de macrotonal do que micro tonal, pois esta divisão em 13 se dá não sobre a oitava, ou seja, o intervalo de dó a dó, mas sobre o intervalo de uma oitava mais uma quinta (na verdade o princípio dela é de usar uma proporção 3:1 no lugar da 2:1 da escala tradicional, o que faz com que mesmo este intervalo seja ligeiramente diferente. Mas não faz sentido entrar nestas tecnicalidades). Isto faz com que o intervalo mais básico nesta escala não seja a oitava, mas o que se chama tritava – um dó2 e um sol3, por exemplo, enquanto o intervalo tradicional de oitava simplesmente não existirá, já que a nota que seria o dó3 não é parte da escala, tendo no entanto notas próximas antes e depois.

Confuso? Tem mais. Algumas faixas usam escalas de 15, 16 notas, e até mesmo uma escala de 7 notas como as tradicionais, porém organizada de forma, no dizer de Lois, anti-diatônica, invertendo intervalos de tom e semitom e vice-versa e usada em Hino do Canadá (dos brasileiros). O resultado será um estranhamento tão grande quanto qualquer uma das demais. Acontece que, na verdade, toda esta explicação no fundo é ociosa, porque é na escuta que estas relações complexas se resolvem. Quando o ouvinte consegue ultrapassar a barreira da primeira escuta, a recompensa será como o entendimento de um quadro cubista sem a necessidade de transpô-lo para a tridimensionalidade convencional. A simultaneidade de dimensões está lá, posta, não é preciso mais nada além de fruir.

E há pelo menos uma característica de Mar, céu do chão que ajuda o ouvinte nesta imersão, fornecendo-lhe algo familiar em que se apoiar: pois trata-se inequivocamente de um álbum de música pop, no sentido real do termo, sem pegadinha. As canções de Lois têm refrões – em muitos casos refrões chiclete e, após o ouvido ajustado, até cantaroláveis, como os de Água mal tomada e O meu nome tava escrito errado e Amigo observador. Como que para compensar as dificuldades harmônicas e melódicas enfrentadas pelo ouvinte, Lois trata de fornecer padrões de repetição que lhe deem outras chances de assimilar o que ouve – esta sim, possivelmente uma lição aprendida de Arrigo Barnabé.

Tanto que ao menos uma das faixas do álbum não tem Lois em sua autoria nem sequer foi composta em alguma escala alterada, antes tem um formato muito tradicional. Lois regrava Homem ao mar, de Kassin, gravada por ele no álbum Futurismo (de Kassin + 2, sendo os outros dois Moreno Veloso e Domênico Lancellotti), mas, segundo Lois, remetendo primordialmente à versão anterior do grupo Acabou la Tequila, integrado por Kassin. E o que acontece é a curiosa transposição da canção de Kassin, composta segundo as regras da tonalidade estritas, mas a escala EDO 7. E o resultado consegue a proeza de unir o estranhamento da escala com a pegada pop da composição, pois o refrão permanece não apenas reconhecível, mas também acompanhável como um refrão deve ser. O Homem ao mar de Kassin agora é o Homem ao céu do chão de Lois.

Louco (Ela era seu mundo) é uma recriação do samba de quase mesmo nome (no título original, o verbo ser está no presente) de Wilson Batista e Henrique de Almeida gravado em 1946 por Araci de Almeida, e apropria-se de seu refrão para, nas novas estrofes intermediárias, descrever este mundo – e trata-se de um mundo onde, entre outras coisas, a música popular é toda em Bohlen-Pierce! Aqui, Lois faz com o refrão original não apenas a transposição para outra escala, mas também o transpõe, digamos assim, sintaticamente. Assim, o original:

Louco, pelas ruas ele andava
E o coitado chorava
Transformou-se até num vagabundo
Louco, para ele a vida não valia nada
Para ele a mulher amada
Era seu mundo

É sintetizado em

Louco, ela era seu mundo!
Para ela, ele não valia nada,
Mas para ele, ela era seu mundo.

Lois, então faz a passagem do mundo tridimensional para o mundo de Marcelo (aliás citado na letra) em três níveis: transfigurando o refrão do samba (que originalmente não incluía a opinião da mulher amada sobre seu apaixonado); na própria passagem deste refrão para a escala Bohlen-Pierce; e finalmente, na descrição do mundo de Marcelo no restante de letra, em estrofes como:

Seu mundo com escorpiões de vinte patas
Uma atmosfera verde e prata
E um computador deprê a bordo na nave mãe

Seu mundo onde a raça inteligente
Parece uma espécie de serpente
Contendo três sexos diferentes, diferentes!

No meio de tudo isso, há espaço para canções com temas, como o próprio Lois classifica, menos abstratos. Hino do Canadá (dos brasileiros) é uma sátira à emigração de classe média, classificada como retirantes (uma faixa que, pela temática e ironia e mutatis mutandi, caberia também num álbum do Zumbi do Mato), e Amigo Observador, composta sobre letra de Nem Queiroz, é a descrição bastante precisa de um dia de show na cena rock independente e suburbana do Rio de Janeiro, tocada por entusiastas sem grana. Nesta última, não falta uma dose de ironia mesclada ao carinho natural (já que Lois, via Zumbi e outras bandas como os Elefantes Terríveis, conhece bem tanto a precariedade desta cena quanto o amor com que seus integrantes a mantém.

No fundo, estas duas canções se conectam ao restante do álbum pelo estranhamento que oferecem, derivados de uma visão externa – num caso evidente, na crítica aos recém-chegados ao Condomínio do tamanho de um país; e no outro por um ardil mais sutil, que é provavelmente a única contribuição de Lois à letra: o refrão que é também o título. Pois quem é o Amigo observador que se intromete intercalando as estrofes? Talvez Lois, um pé dentro e um pé fora da narrativa, enxergando seus pequenos ridículos; talvez Marcelo, o ser interdimensional que, convenhamos, será um alter ego do próprio Lois, e aí neste caso demostrando a pequenez de tudo isso como quem observa de outra galáxia aquela tarde no bairro do Caju. Certo é que a entrada do refrão a cada uma das estrofes narradas como que desmonta a narrativa e força o ouvinte a enxergar tudo por um outro ângulo – um ou mais, já que são várias vozes em contraponto que o cantam – que não se sabe bem qual seria, que confunde e não leva a conclusões: apenas observa de outra, ou várias outras dimensões.

Mar, céu do chão termina de forma inesperada, com um poema recitado por Rebecca Moure – apenas umas das seis vozes que se somam à de Lois ao longo do álbum. Bezerros beberrões e controle de multidões parece querer ampliar a pergunta inicial do álbum – Em que eu consisto?, levando-a ao coletivo ao explorar a fórmula Pessoas serão essas?

Pessoas serão essas completos estranhos?
Pessoas serão essas abstrações em contraluz inclinadas a se debater forte ante o vórtex pelo desoriente que a neblina encortinou?
Pessoas por acaso seriam essas e não aquelas?
E por que?

E mais adiante:

Mas… que diabos, o que aquele outro grupo avançando pelos flancos?
Pessoas serão essas da gangue dos Tamoios?
Pessoas serão essas confessos assassinos assinalando os réus de todas as eras?
Pessoas serão essas nós no futuro?
Outros no passado?
Ou ambos ao mesmo tempo?

E de súbito a viagem interdimensional proposta por Lois parece inesperadamente pessoal. Ainda mais quando ele arremata:

Ouça-se você cavando fundo,
Um enxerido no antanho,
Ouça-se você, condenado por bravura pelos erros dos covardes,
Ouça-se você tirando essa onda toda,
Apalpe-se você
E descubra-se pelado.

Não, não se trata aqui de tentar encontrar um sentido oculto e individual para todo este périplo. Não estamos falando de Tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Mas é possível, ainda assim, enxergar na trajetória de Lois um pouco do que estes versos descrevem. A decisão de passar da quase anarquia musical total do Zumbi do Mato para as formas mais estruturadas das escalas micro e macrotonais correspondem, de certa forma, a um passo lógico na busca estética de Lois. A crítica avassaladora e multidirecionada do Zumbi, que acumulava informações até o absurdo – uma espécie de reductio ad absurdum na contramão – é sucedida por uma técnica que, sem impedir o sarcasmo característico de suas letras, estabelece implicitamente uma alternativa ao que é criticado. Um outro mundo é possível, diria um utópico, ao que Lois talvez respondesse – muitos outros mundos, todos até. Lois responde à própria pergunta: Em que eu consisto? Onde me estabilizo? propondo diversas possibilidades centralizadas na figura de Marcelo, o nome arbitrário que concentra em si tudo o que pode ser. Estabilidades um tanto fluidas e díspares – em uma delas um nome escrito errado pode mudar tudo, em outra uma água mal tomada pode te matar – e em ao menos uma delas o mar será o céu do chão. Lois (ou Marcelo) convida. Cabe ao ouvinte dar a mão a ele e mergulhar.

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Um comentário em “Vai ver, não entendemos mesmo os mitos ou Ceci n’est pas un multivers

  1. João disse:

    Você é muito bom ,parabéns, continue.

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