Uma outra canção de exílios

Uma canção pode ter várias encarnações. Composta ou gravada num determinado contexto histórico, pode voltar à tona anos depois, num contexto diferente, ou correlato, na mesma gravação ou em outra que a releia e posicione perante o novo cenário. Em alguns casos, datada a princípio, tem uma segunda chance de mostrar perenidade para além da especificidade que a motivou. E em outros a canção já tinha em si esta capacidade de ultrapassar a significação imediata, mas precisou desta segunda exposição para isto ficasse mais claro a mais gente.

O período da ditadura militar brasileira foi pródigo em canções assim. Muitas serviram a seu tempo dignamente com metáforas e alusões que se esforçavam ao mesmo tempo por se fazer compreender e passar despercebidas. Tratavam do tempo presente, dos homens presentes, da vida presente, como disse Drummond em tempos de guerra, bem antes. E não se preocupavam muito com a própria sobrevivência como canções. No entanto outras, abaixo da casca de decifração direta, guardavam sementes de outras leituras, porque não se limitava a tratar do drama de sua época, que já era tremendo, mas o identificavam com questões ainda mais amplas, que dizem respeito a qualquer época, qualquer país, qualquer homem.

Vapor Barato, de Jards Macalé e Waly salomão, foi composta em 1970 e gravada por Gal Costa em 1971, no álbum Fa-tal – Gal a todo vapor, correspondente ao show de mesmo nome dirigido por Waly, que marcou a carreira da cantora. A canção foi feita em circunstâncias políticas e culturais muito difíceis, de repressão política duríssima, no período que foi intitulado Anos de Chumbo e que teve como resposta de uma parte da juventude o desbunde, uma reação de quem não suportava o que via à volta e voltava-se para valores espirituais; não se encontrava na cultura vigente e inventava uma contracultura.

A canção está impregnada destes fatos. Mas ela sobrevive a eles, recusando-se a ser um mero documento de uma época. De maneira quase casual, ela ressurgiu aplicada a uma nova circunstância histórica, e assim evidenciou-se a sua transcendência a estas circunstâncias. Vapor Barato trata da busca humana de um lugar no mundo, e do exílio deste lugar. Como o escritor italiano Primo Levi, que no título do livro que conta sua experiência no campo de concentração nazista de Auschwitz, pergunta: É isso um homem?, transformando num questionamento existencial sua vivência pessoal, Wally Salomão (á época Sailormoon), antes de falar de sua experiência objetiva, fala do seu exílio interno, de um país que o abandonava em vez de ser abandonado. Ele conta:

Começamos a trabalhar exatamente naquele período que marcava um vazio depois do AI-5, depois de tudo o que foi o tropicalismo em 1968 e que foi cortado violentamente no final daquele ano. 69 começava como um período de esmagamento total, vindo de cima, do poder. A gente conversava muito e eu ficava incitando Macalé a quebrar os vínculos com remanescentes da bossa nova ou então com a música de concerto, com aquele perfeccionismo. Insistia na necessidade dele criar um espaço próprio. Isso era fundamental naquele momento – uma voz que continuasse cantando e mantivesse acesa a chama. Nessa época escrevi e Macalé musicou Vapor Barato, de letra oposta à tendência liricista e nebulosa que predominava. Era direta, frontal, dizendo o que era possível naquele momento de desencanto.

Waly não conta duas coisas. Primeiro, que o personagem auto-descrito na letra tem muito de Balbino, o maluco da praça da cidade baiana de Jequié, natal de Waly, que vagava com a indumentária exata enumerada na canção, incluindo os anéis de bijuteria ou brinquedo. Waly aproveitou a lembrança de infância para a composição. E Waly também não conta, mas Macalé sim, que Waly foi preso e torturado no presídio de Carandiru. Vapor Barato nasceu daí. Os lancinantes oito minutos e meio da gravação de Gal Costa são o lamento de quem se perde de um país. Assim, a vestimenta exótica de Balbino passa a emitir mensagens (nem tão) cifradas: calças vermelhas, casaco de general, o recado é óbvio. E no entanto, está longe de explicar tudo.

Gal – 1971, álbum Fa-tal

A estrutura de Vapor Barato é franciscana. Tom menor, quatro acordes descendentes em direção à dominante, e é tudo. Jards diz que todo mundo tocava a canção à época. A melodia segue a direção dos acordes, descendente, linear, cansada, quase falada, subindo apenas no último acorde para preparar o retorno à tônica e a frase seguinte, num passo a passo desalentado, extenuado. Até chegar ao refrão.

O refrão, de duas palavras. O refrão, elementar, cru, estrangeiro, rompendo a barreira do agudo e despejando dor. Todo o desalento da letra da canção aqui se transforma em torrente, como um uivo para a lua – e Gal, efetivamente, no fim da música abandona a letra e se lança em vocalizes que são quase uivos, contrastando com os scats nasais, comedidos do início. Como também ao cantar eu quero esquecê-la / eu preciso, em que o quase grito da segunda frase contradiz a primeira e mostra o esforço violento deste esquecimento forçado, contra a vontade, necessário como forma de sobrevivência. Gal canta a canção duas vezes, a primeira acompanhada apenas por um violão batido com fúria, da maneira mais elementar, o contrário do Jards Macalé profundamente influenciado por João Gilberto. E na segunda vez um trio bluesly passa a soar. Blues, canto de exílio. Toda a solidão do mundo ressoa.

Corta para 1995. O cineasta Walter Salles filma Terra Estrangeira, com a atriz Fernanda Torres. Fernanda, num intervalo das filmagens, começa a cantarolar uma canção. Walter Salles decide incorporá-la ao filme, daquele jeito mesmo, cantada à capela pela personagem dela. E nos créditos pôs a gravação integral de Gal Costa.

O enredo de Terra Estrangeira se passa em 1990, logo após a ascenção de Collor à presidência, e o confisco do dinheiro das cadernetas de poupança, as economias e a esperança de boa parte da população. No momento maior da volta da democracia, uma fraude tinha lugar, e o país adiava o encontro consigo mesmo. No filme, personagens premidos pela crise econômica emigram para Portugal. Os versos de Vapor Barato voltam a fazer sentido quase literal: eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus.

Em 1996, a canção é gravada pelo grupo O Rappa, em seu segundo álbum, Rappa Mundi.

A versão do Rappa segue por um caminho diverso ao de Gal. A quase lassidão da primeira gravação dá lugar a um vigor condizente com a postura combativa do grupo. Até dentro da mesma frase, a ênfase muda: antes, eu estou tão cansado. Agora, mas não pra dizer que eu não acredito mais em você. Falcão se permite menos voos vocais que Gal, amarra mais a melodia, calca o pé na levada da bateria de Yuka, base da música do Rappa. Sob a sintaxe do reggae em substituição ao blues, mudam também as significações imediatas: o discurso pode ser de um filho que sai de casa, aquele velho navio adquire possibilidades diversas. O título, que fora citado por Caetano na canção Fora de ordem nomeando um mero serviçal do narcotráfico, integra-se também à letra de formas inesperadas.

A visão do Rappa não se compara com a de Gal. Nem deve. Pois o que torna possível a gravação do Rappa, de certa forma, é o retorno da gravação de Gal em Terra estrangeira. A atualização histórica de Vapor Barato no filme de Walter Salles foi mais que isso – pois o filme é menos uma crônica histórica que uma busca existencial -, foi o reconhecimento da permanência da canção para além de contextos particulares, ou aplicável a inúmeros contextos, gerais ou pessoais, como as boas obras de arte. Zeca Baleiro, pouco depois, a mesclou com a sua À flor da pele, com a familiaridade de quem relê uma carta antiga.

A sobreposição de contextos e significados em Vapor Barato, no lugar de esconder sua universalidade subjacente, a expõe. Vapor Barato não precisava do resgate de Walter Salles (ela tinha sido sequestrada? detesto esta expressão) para ser a soberba canção que é. Não foi ela a beneficiada, e sim nossa escuta que se renovou e se renova a cada momento histórico ou pessoal, ao reconhecer a polissemia que torna rica uma obra de arte. Este segundo olhar sobre ela permite vislumbrar a possibilidade de ainda muitos olhares. Que venham outros.

Brinde: aqui e aqui, uma interessantíssima interpretação astrológica de Vapor Brato, relacionando-a inclusive com o mapa astrológico do Brasil.

20 comentários em “Uma outra canção de exílios

  1. Gilvanei Pereira Bispo disse:

    Cara, tenho que te dar parabéns. Texto incrível, impecável!

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  2. Afonso disse:

    Análise incompleta e carregada de ideologia, que não cita referências basilares. Omite o personagem principal da música, o errante Balbino, que andava pela cidade de Jequié-BA com calças vermelhas, casaco, que se achava um general, cheio de anéis nos dedos. O navio é uma construção na cidade que abriga o Rotary Club ainda hoje.

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    • Olá, Afonso. Confesso que durante a pesquisa para escrever o artigo, não encontrei absolutamente nenhuma referência ao Balbino ou a Jequié, afora o Waly ser de lá. Ele mesmo não faz nenhuma menção a isto ao falar da música. Mesmo agora, ao fazer uma busca no Google, achei apenas este link, de o que imagino ser outro jequiense – .http://www.charlesmeira.com.br/2018/06/no-ritmo-do-compasso-e-da-bandinha.html . Isto não me faz absolutamente duvidar de você, porque a informação que você traz é interessantíssima. Você é de Jequié? Pode dar mais detalhes do assunto? Com eles, posso fazer um adendo ao texto, tornando-o mais completo.

      Já sobre a análise ser carregada de ideologia… o foco da minha análise é menos a origem da canção e mais sua trajetória, e desta parte não mudo uma vírgula. Toda análise é passível de contradição e crítica, claro, mas toda análise também é ideológica em algum ponto, não caio na esparrela de imaginar que há neutralidade de visão, como os Escola sem Partido da vida pregam ideologicamente. Se puder apontar onde no texto alguma ideologia específica prejudica a análise, agradeço. Críticas fundamentadas são sempre bem vindas. Abraço.

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    • Elizabeth disse:

      O texto, muito bem escrito, cita o errants Balbino e com destaque.

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  3. Maria Aldora Cruz disse:

    Muito cantada exaustivamente pelo meu grupo de teatro, na década de 70,em Belém do Pará ,onde era tudo proibido!

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  4. sergio disse:

    It´s a pity that all these tremendous songs and text it did pass only as a “nice and danced Brasilian song”I modestly think that Brazilian music are fantastic in music and lyrics itself.The language barriere between Spanish and Portuguese are huge, even though we normally also thinks that both are romantic languages wich are so close to each others.Unfortunally it´s not true,Spanish and Portuguese are complex languages!!!

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  5. Talitha disse:

    Parabéns pela análise.. Sou fã das duas versões!!

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  6. Você escreve muito bem. Adorei.

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  7. Adoro a Gal,mas eu prefiro ela cantando em estúdio.

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  8. Análise genial,como sempre.

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  9. JC disse:

    Muito bom vcs todos parabéns.. Os jovens brasileiros precisam CONHECER NOSSA REAL HISTÓRIA…

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  10. Marilia disse:

    Revelador. Adorei ter parado aqui depois de uma noite de leitura. Grata.

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  11. Caro Túlio Villaça,
    que post espetacular esse seu. Sabe que me lembrei dessa música linda do Jards/Salomão hoje. Não consegui sossegar enquanto não escrevi um post falando sobre ela. Quando estava terminando de redigir o texto para o meu post, resolvi dar um google para checar uma data e acabei chegando a esta sua postagem. Gostei tanto dela que quase desisti de postar a minha. A menção à prisão de W Salomão e a lembrança de Primo Levi são delicadas pérolas no post. Parabéns.
    A propósito dessa vibe da ditadura no Brasil você sabia que aquela música do Chico Buarque chamada ‘Mulheres de Atenas’ é uma parceria com o Augusto Boal e que foi feita para uma montagem da peça Lisístrata, de Aristófanes?
    Pois é, essa é a mesma peça que inspirou um comentário de um deputado (Marcio Moreira Alves) em 1968, que mudou a história do Brasil. Se você não conhecia essa história, acho que vai gostar da dica:

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    • Olá, Welington. Obrigado pelos elogios, dá força pra gente continuar. Não conhecia todas estas referências, sabia que Mulheres de Atenas era para uma peça do Boal, mas não da relação com o Márcio (um dos pequenos grandes heróis nacionais, na minha opinião). Isso dá um caldo, obrigado.

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  12. Zappa disse:

    Não consegui encontrar e ouvir Vapor Barato em sua a gravação original de 1971 com Gal Costa. Lamento que a internet não priorize as gravações originais. Quem quiser ouvir Zeca Boleiro ou Rappa que ouça, mas impô-los é sacanagem. A gravação de Gal, quarenta anos depois, ainda é vanguardista. Saudações!

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    • Zappa, a gravação original está neste post, no primeiro vídeo. Este conceito de gravação original é meio discutível, na minha opinião, mas concordo plenamente que a gravação da Gal é imbatível. Abraços.

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  13. Ricardo Maciel disse:

    Verdade. Mas não é impóssível. Um pouco de poesia concreta também, né. Rs. Ok, avisado, próxima vez comento próprio post. Até!

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  14. Olha, Ricardo, eu conheço e adoro este livro, leio para minha filha e tudo, mas realmente não havia me ocorrido esta relação. Não chego a ter certeza da referência, mas o jogo de palavras é o mesmo, claro. E mesmo que ele não tenha pensado nisso, ora, alguém pensou, e a obra de arte é isso mesmo, cria relações à revelia. Obrigado pela leitura. Abraços.
    P.S. você podia ter comentado no próprio post, eu respondo lá também.

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  15. Ricardo Maciel disse:

    Túlio, meu comentário é sobre post antigo. Me parace clara a referência, em “Rock’n Raul”, ao livro infantil “Chapeuzinho amarelo” (1979) de Chico buarque. Na história, Chapeuzinho, já sem medo do lobo, utilizando-se do poder da palavra, faz do lobo bolo e só não o devora por não ser do seu sabor preferido. Uma brincadeira de Caetano e referência à antropofagia. Quando da feitura da música, há já algum tempo tanto Caetano quanto Chico viam sendo duramente criticados por Lobão por não participarem ou apoiarem o “movimento”, encabeçado pelo próprio, que então acontecia pela numeração dos cds. Abraço!

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