Duas faces de uma canção menor

Em sua autobiografia Rita Lee comenta suscintamente sobre o álbum Tropicália ou Panis et Circencis, mas sem deixar de lhe dar a devida importância:

O disco Tropicália foi minha definitiva desvirginada na neo-MPB – Música Planetária Brasileira. Farra boa quando a gangue se encontrava para escolher quem gravaria o quê. A genial foto da capa foi apenas uma amostra da nossa audácia.

E a este se segue o primeiro álbum da banda, sobre o qual ela conta:

Na cola dos baianos, o destino dos Mutas ganhava novos desafios. Surgiu o convite da gravadora Philips para um primeiro LP solo. Pernas pra que te quero, bora buscar repertório. Gil e Caetano deram o mapa de como fazer letra e música em português, além de nos presentearem com Panis et circences, cuja composição em apenas 15 minutos eu, deslumbrada, testemunhei.

Já Caetano Veloso dedica um grande capítulo de seu Verdade Tropical ao álbum Tropicália ou Panis et circences, e se fala pouco sobre a canção, dedica um bocado de texto a seu erro de latim na escolha do título, e o significado deste erro.

Eu tinha feito e dado para Gil musicar uma letra a que pus o nome de Panis et circencis. Pensei em usar isso como subtítulo do disco que se chamaria – assumindo o título usurpado pela canção à obra de Oiticica como nome geral do movimento (mas, naturalmente, rejeitando o ismo) Tropicália. Não fui verificar (àquela altura nem saberia onde) se a expressão panis et circencis estava na forma latina correta. (…) (Na verdade, a forma em que a expressão se fez famosa é panis et circences, esta última palavra sendo um adjetivo que, no plural, substantiva-se no significado de coisas de circo). Afinal, em meio à iconoclastia tropicalista, a reverência às letras clássicas era a última das exigências a ocorrer a alguém. Mas o reconhecimento íntimo de que a intenção seria a de sobrepor à colagem pop de uma letra de música banal – e agora de um disco de canções pop – uma citação latina (ademais muitíssimo conhecida) cuja correção deveria contribuir para o efeito de contraste, empresta uma dimensão de atroz ridículo ao momento de reflexão devotado à questão. Havia, no entanto, orgulho nesse desleixo. (…) Eu me identificava com essa exibição de desprendimento intelectual. (…) Tropicália ou Panis et circencis (o mau latim – que Décio Pignatari, nos anos 70, já chamava de delicioso provincianismo de vanguarda – agora soa cheio de charme histórico), nosso disco-manifesto, saiu em 68 (…)

Quando o disco ficou pronto, eu exultava com o êxito conceitual, mas o que me parecia um relativo avanço técnico soava como um retrocesso aos ouvidos de Gil. De todo modo, para Zé Agrippino, apenas a faixa dos Mutantes (o tratamento que eles deram à minha parceria com Gil Panis et circencis) saia do limbo do subdesenvolvimento.

Do modo como Caetano se refere a ela, é fácil deduzir que ele considera Panis et circences uma obra menor. Panis et Circences é uma canção feita para preencher um espaço num álbum coletivo que se afigurava a partira da pretensão de Caetano Veloso de fazer um manifesto do movimento insurgente que ele e Gil estabeleciam. É, no entanto, uma canção nascida menor na comparação com outras decisivas neste movimento como Alegria, alegria e Domingo no parque. No entanto, se alguma canção está no lugar certo e na hora certa, é esta. É curioso como uma canção considerada menor por um de seus próprios autores (e provavelmente também por Gil, que só voltou a apresentá-la em shows quase 45 anos depois, em seu Concerto de cordas e máquinas de ritmo) esteja posicionada estrategicamente em dois marcos da música brasileira: como subtítulo do álbum Tropicália e abrindo o primeiro álbum dos Mutantes. Difícil acreditar que o que tenha levado até aí seja o mero acaso e não suas qualidades. No mínimo, trata-se de uma canção que dizia o que precisava ser dito naquele momento. Porém, obra menor que seja, datada ela está muito longe de estar.

Estruturalmente, é mesmo uma canção simples. Sua melodia é singela, uma ascendente que escala o acorde da harmonia triádica para repousar instavelmente na nona, mergulhar e ascender novamente, sucessivamente – a parte dois é basicamente uma variação suavizada deste tema. Traz mesmo em si o espírito de ter sido feita em 15 minutos, em que pese a enorme fluência de Gil para criar melodias. A letra também tem este espírito, escrita à base de associações livres e descrevendo ações de liberdade – panos, leões e tigres soltos, plantas crescendo e buscando o sol, mesmo o assassinato do amor como uma libertação -, e a liberdade destas associações serve de contraste com a imagem das pessoas na sala de jantar. Se esta imagem domina a canção, o seu contraste é o que a estrutura esteticamente, permitindo toda a liberdade literária das estrofes, com a amarra segura dos versos finais. Paradoxalmente, são estes versos que, ancorando as estrofes, dão coesão à composição.

Mas é útil ouvir a gravação dos Mutantes antes de prosseguirmos.

Nem o álbum Tropicália nem o dos Mutantes, ambos de 1968, trazem créditos de músicos, embora evidentemente saiba-se que arranjo de Panis et Circences (usarei esta grafia, preferida pelos autores e por Rita) é de Rogério Duprat e que os integrantes do grupo se encarregam da maior parte da instrumentação. A versão do álbum dos Mutantes (que traria também do Tropicália as canções Batmacumba e Baby, estas em versões diferentes por terem sido gravadas por outras pessoas no álbum) é aproveitada quase ipse literis, com pouquíssimas diferenças, sendo a mais notável a inserção, como abertura, do prefixo do Repórter Esso, o consagrado programa jornalístico do rádio (correspondente nos dias atuais a usar o prefixo do Jornal Nacional ou do Plantão da Globo), cortado abruptamente para entrada do arranjo original. Como Panis et circences é a primeira faixa, a salva de metais característica do informativo serve como introdução também do álbum e da própria banda, anunciando sua chegada com pompa e alarde. Porém, o corte no meio da cadência e sua substituição pelo andamento mais lento da introdução original como que desmoralizam esta pompa. Este recurso do corte sonoro inesperado, usado de forma algo humorística, se repetirá em outras canções dos Mutantes e nesta própria mais adiante.

O andamento escolhido pelos Mutantes para sua gravação, de um andante marcado, imprime um tom entre o majestoso e o jocoso à canção, acrescido do arranjo de Rogério Duprat com os metais graves marcando o contratempo como passos pesados e desajeitados. Tudo neste arranjo, desde o trompete épico à maneira de Penny Lane dos Beatles (provável influência para os autores), à flauta quase primaveril da segunda parte, têm implícito algo de zombeteiro à linguagem que apresentam.

Panis et circences não tem propriamente um refrão, e sim um formato AAB, mas com a particularidade de que tanto as duas estrofes A quanto a B terminam nos mesmos versos: Mas as pessoas da sala de jantar / estão ocupadas em nascer / e morrer. Para além do contraste já mencionado acima, um elemento a mais foi introduzido na gravação dos Mutantes, sem que se saiba se já fazia parte da composição de Caetano e Gil: a repetição da primeira frase. As pessoas da sala de jantar / são as pessoas da sala de jantar. Este proto-refrão passa a ter a duplicata da mesma expressão no sujeito e no complemento, igualando as pessoas da sala de jantar a elas mesmas, trazendo implícito o tom idiomático de um sinal de desânimo com o que elas são, algo típico do português coloquial e quase impossível de traduzir em outros termos.

Em vários aspectos de sua gravação, os Mutantes dizem mata onde Caetano e Gil dizem esfola, reforçando até extremos em termos sonoros o que é sugerido pela composição. Este é um dos casos em que isto se dá: Se nas primeiras duas estrofes (partes A) eles executam os versos finais como (provavelmente) foram compostos, sem repetições, na terceira vez (a parte B), os mesmos versos são entoados quatro vezes, numa reiteração circular que se aproxima perigosamente de perder o sentido, como se a autossuficiência de ser as pessoas da sala de jantar bastasse por si, numa espécie de carteirada existencial.

A extensão da estrofe pela repetição do penúltimo verso, como se sua estrutura fosse modular, prepara o ouvinte para a passagem seguinte. Após um efeito de estúdio em que a velocidade da gravação é diminuída até parar, como se tudo se derretesse (os equipamentos, foram efetivamente desligados), o verso-chave da canção passa a ser repetido com uma melodia mais linear, acelerando contínua e desvairadamente. São 10 repetições tautológicas até na décima primeira passar-se a um aaaaaaaah que pode ser de mergulho na alucinação ou no desespero, e que é – novamente – cortado de supetão para a entrada em cena dos próprios protagonistas destes versos, não mais musicalmente, mas em som ambiente.

Pois deste corte caímos em plena sala de jantar e sua ambiência sonora completa – mastigações, tilintar de copos e talheres, pequenas falas de obviedades e, ao fundo, Danúbio Azul, de Strauss, provavelmente a mais conhecida valsa da história e trilha sonora dos salões mais cafonas, símbolo supremo do kitsch. Interessante notar que esta mesma valsa seria usada – e recuperada em sua beleza original – por Stanley Kubrick em seu filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço, também de 1968 e que serviria por sua vez como inspiração parcial para a canção 2001, de Tom Zé e Rita Lee, que seria gravada pelos Mutantes em seu álbum seguinte e inclusive parodiaria outra peça usada por Kubrick em seu filme – mas agora a nada kitsch Lux Aeterna, de György Ligeti (analiso esta canção em outro artigo deste blog).

O recurso de simplesmente interromper a música para a inserção dos sons que são, em última instância ou em espírito, descritos pela canção, é outro dos estratagemas usados amiúde pelos Mutantes, e que tanto pode ser interpretado como uma incursão na música de vanguarda quanto uma literalização que, afinal, corre o risco de suplantar e dispensar a linguagem musical. Também não seria a última vez em que recorreriam a este artifício: sua gravação de Chão de Estrelas, o clássico seresteiro, traria para dentro da gravação tiros, helicópteros, sons circences, escorregões e muito mais, espinafrando com a canção até desmoralizá-la. Porém, se em Chão de Estrelas estas sonoplastias são sobrepostas ao arranjo, aqui o arranjo desaparece, e o que há é só e somente só a sala de jantar, sem mais nada. Estamos entre o arrojo absoluto e a obviedade absoluta. Os Mutantes, em sua primeira gravação, vão ao extremo da linguagem musical até a deixarem de lado, ou para trás.

Já o grupo vocal Boca Livre, ao regravar Panis et circences em 1983, tomou caminho radicalmente diferente.

Panis et circences também abre o quarto álbum do Boca Livre, mas as coincidências param por aqui. O contraste entre estas duas visões de uma mesma composição é tão gigantesco que custa crer que seja a mesma. Tudo que para os Mutantes era ácido, para o Boca Livre é delicado. Tudo que ia ao limite da música para aqueles, para estes é estritamente musical e se basta. O arranjo de Maurício Maestro (outra vez a ficha técnica é escassa, mas sem dúvida ele toca o baixo, Lourenço Baeta faz o solo de flauta e provavelmente David Tygel uma viola caipira ou violão) é regular como um relógio, impressão reforçada pelos numerosos staccatos em diversos instrumentos, dos violões e baixo às cordas. Quiçá emulando o tique-taque do relógio da sala de jantar, como um símbolo do tempo passando inutilmente e se esvaindo em vão para estas pessoas ocupadas em nascer e morrer… regularidade que chega ao ponto de dispensar as repetições do proto-refrão que são uma das marcas da primeira gravação. Em vez disso, na do Boca o verso é sempre cantado duas vezes, em todas as suas aparições, inclusive na última, em que parece suplicar para ser bisado e bisado…

Entretanto, a maior diferença entre estas duas visões da mesma canção, e que possivelmente é a determinante de todas as demais decisões tomadas por estes dois grupos de músicos, é a de qual é o eu lírico da canção. Pois, se o Boca Livre assume o ponto de vista objetivo, do narrador da letra em primeira pessoa que se apresenta logo no primeiro verso em oposição às pessoas na sala de jantar, os Mutantes escolhem o caminho mais sinuoso e subjetivo, e, ao criarem uma interpretação que reforça a cada passo o que é dito na letra, embora refiram-se às pessoas na sala de jantar na terceira pessoa (como está na letra, afinal), cantam assumindo em boa parte suas personas, de forma totalmente contraditória – e no entanto esta contradição enriquece a canção por seu próprio caráter. Se o registro interpretativo do Boca Livre é o de alguém que recusa-se a compactuar com elas, o dos Mutantes parece ser, desde o arrastado da introdução até o derretimento sonoro do efeito já descrito, o de alguém que até tenta escapar mentalmente da mesmice, da mediocridade, mas é puxado de volta para ela por seus pares, por seu ambiente, por algo de que não consegue escapar.

Desta diferença é possível derivar todas as características de uma e outra gravação. A dos Mutantes é uma montagem de estúdio cheia de artificialidades; a do Boca Livre é de músicos tocando junto. A atmosfera da gravação dos Mutantes é sufocante, dentro da sala de jantar possivelmente esfumaçada; a do Boca é uma atmosfera de ao ar livre, até otimista, de quem dá graças a Deus por não estar preso na sala de jantar. E o ápice da versão dos Mutantes se dá justamente quando a canção é abandonada e, não tendo mais as amarras da letra, eles assumem totalmente o discurso das pessoas da sala de jantar (Passa o sal, por favor), tornam-se elas – e não quase vestígio da paródia, do exagero que caracteriza investidas posteriores do grupo. O que há é o som ambiente de um jantar, nada menos. Neste momento os Mutantes efetivamente mutam, assumem a persona dos retratados pela canção, e ao fazerem isto, o eu lírico descrito por eles submerge na pequenez de que não conseguiu escapar, a canção é derrotada pelas pessoas da sala de jantar, e esta derrota é aquilo que leva a mensagem da canção até o ouvinte.

Enquanto isso, na versão do Boca Livre, a canção é a grande vitoriosa. Até porque, sem utilizar artifícios que não sejam estritamente musicais, o grupo cuida de apresentar a canção e permitir que ela fale por si. Pode-se dizer que os Mutantes reforçam à exaustão o que a canção diz, mas não necessariamente a própria canção, enquanto o Boca Livre reforça a canção, e assim também reforça o que ela diz. A versão do Boca Livre pode ser tida, em uma primeira instância, como conservadora, e certamente o caminho escolhido por ela é menos surpreendente que o dos Mutantes ao seguir em linha reta o que a composição indicava. Mas sua busca de expressividade consegue resultados igualmente excepcionais.

Em certo sentido, os Mutantes, apesar de terem ficado deslumbrados ao assistirem o processo de feitura da canção, a consideraram insuficiente para dizer por si o que tinha para dizer, e por isso a abarrotaram de efeitos, repetições e interrupções até chegarem a anulá-la e substitui-la pelo figurativismo puro, ao passo que o Boca Livre preferiu confiar nela e investiu em sua estrutura, em seus elementos constituintes mais elementares – melodia, ritmo, harmonia, letra e suas relações entre si. Neste sentido, são lados da mesma moeda. Certo é que ambos extraíram, cada um a seu modo, de uma a canção menor o suprassumo do que ela possuía para oferecer. E, ouvindo os resultados destas explorações, não se pode dizer que se trate de uma canção assim tão menor.

Comentário a respeito de Gil e Belchior

Quem conta é o historiador Luiz Antônio Simas (não é necessariamente sua especialidade, mas o título continua valendo) em sua conta no Twitter:

Medo de avião é uma canção que descreve um flerte adolescente e Medo de Avião 2 é o sexo, uma transa nas alturas. Flertaram na primeira e transaram na segunda. A mais linda descrição de uma trepada da MPB, aliás. A história da música é ótima. Belchior fez a letra de Medo de Avião (a primeira) e mandou para Gilberto Gil. Esqueceu, maluco que era, que tinha mandado para Gil ser parceiro e acabou fazendo uma melodia pra letra enviada. Música pronta. Sucesso. Um belo dia, Gil manda a melodia, bem mais rebuscada que a de Belchior, e com uma segunda parte linda pra Belchior letrar. O bigodudo não teve alternativa. Constrangido pelo esquecimento, fez o Medo de Avião 2 e meteu na melodia de Gil alguns dos mais bonitos versos da MPB. No fim das contas, Medo de Avião abriu o disco Era uma vez um homem e seu tempo e Medo de Avião 2 fechou o LP.

O olhar irônico lançado sobre a juventude é um dos leitmotifs da obra de Belchior, não fosse sua canção mais conhecida, Como nossos pais, inteiramente sobre este tema. Embora Medo de avião seja cantada na primeira pessoa, a ironia é inequívoca. Que coisa adolescente, James Dean!, encerra ele a primeira estrofe, mencionando o astro de Juventude transviada (Rebel without a cause no título original). Os elementos principais da narrativa, inclusos todos no primeiro verso, compõem o retrato: o medo fragilizante, infantilizante, e a tensão de segurar a mão de uma mulher pela primeira vez.

Mas há um outro elemento componente desta ironia e igualmente habitual em Belchior, que é o uso de uma sonoridade folk tipicamente norte-americana por parte deste cearense. A influência de Bob Dylan sobre Belchior é confessa, mas os arranjos folk de suas canções frequentemente parecem zombar desta influência levada ao pé da letra também na sonoridade. Se outros músicos desta leva apelidada de Nordeste 70 como o paraibano Zé Ramalho ajustaram esta influência amalgamando-a com as rimas dos cantadores, Belchior, em vez disso, muitas vezes a traz inteira e, por conseguinte, deslocada, para seu cancioneiro. Assim, ao mesmo tempo que Belchior, ao cantar (em primeira pessoa) o enlevo do rapaz enamorado e assustado ri discretamente dele, parece também se divertir em emular o bardo estadunidense enquanto faz a crítica da própria cópia, como igualmente imatura. O ridículo da cópia se incorpora à crítica metalinguisticamente, e a mordacidade à qual, se não falta um certo carinho, este também não deixa de ser um tanto condescendente, se estende do protagonista da canção ao estilo da própria, ambos identificados afinal com o próprio Belchior.

E então, com Medo de avião composta apenas por Belchior, Gil mandou sua versão.

A visão de Gilberto Gil sobre a letra é radicalmente diferente da do parceiro, simplesmente porque Gil leva a sério o romance sugerido e propõe levá-lo adiante. Sua versão desarma todas as bombas de sarcasmo postas por Belchior. O carinho com que sua melodia envolve a história não tem julgamento e ele trata toda a situação quase com nostalgia, como quem compartilha uma lembrança boa.

Mas Gil não se limita a tomar outra direção na leitura da letra de Belchior. Ao enviar uma segunda parte melódica sugerindo a continuação da letra, ele como que aceita a provocação de Belchior e dobra a aposta, desafiando-o a falar sério e virtualmente induzindo que esta segunda parte seja a consumação do romance, quiçá do próprio ato sexual. Pois a letra de Belchior já estava completa contando uma história com começo, meio e fim, o assunto estava encerrado. A única forma de estender a canção seria estendendo também o flerte… até suas consequências.

Harmonicamente falando: a harmonia de Medo de avião é tonal e direta, sem sequer um empréstimo modal ou dominante secundária. Diria até bastante elementar – como um flerte adolescente. Isto não tira a qualidade da composição, antes se mostra adequado à temática e à abordagem. Não se trata de afirmar que seja uma composição pobre, já que, mesmo com estes poucos elementos, cria-se uma canção com melodia bastante rica e que gruda no ouvido, além de se prestar perfeitamente à ironia pretendida. Por outro lado, a ausência de novidades harmônicas impede um desenvolvimento maior, e faz com que a gravação não chegue a dois minutos e meio, pela exaustão da exposição musical. Tudo o que se pretendia dizer é dito, e não há motivo para se estender em repetições que provocariam o cansaço pela reiteração.

Gil percebe a necessidade de um desenvolvimento melódico-harmônico a partir deste mote de letra proposto por Belchior (tanto em termos estritamente musicais quanto em desenvolvimento do enredo, como vemos acima), e na segunda parte que ele propõe estão então os elementos que faltam na primeira. Interessante notar que, na versão de Gil, a parte de letra inicialmente proposta por Belchior recebe dele um tratamento igualmente tonal, com até mesmo funções similares nos mesmos trechos, particularmente a passagem inicial de tônica para sexto grau, virtualmente a mesma em ambas. Porém, Gil trata na segunda parte de desdobrar este tema, e então começa uma série de dominantes secundárias, fora da tonalidade principal, que dão um passeio bem mais largo que o inicial, como que ampliando o arco e preparando igualmente a ampliação do arco narrativo. É este mote que Belchior aproveitará na construção da segunda parte da letra.

E então, correspondente à mudança de tom trazida por Gil, há também uma mudança de tom na letra que Belchior acrescenta. O discurso totalmente autocentrado é substituído por uma comunhão que se consuma: o eu é substituído pelo nós. Belchior aceita o desafio de Gil e se sai brilhantemente, abandonando nesta segunda parte todo o sarcasmo e trocando-o por um equilíbrio delicado entre a carnalidade sexual e o lirismo.

Mas a adequação da letra de Belchior nesta segunda parte não acontece apenas na passagem da visão mais pueril à mais lírica, mas também em termos de construção dos versos: assim, na primeira das segundas partes novas, a mão vai deslizando da outra mão para sedas, cílios, pêlos – e a própria palavra pelos também sofre um deslizamento de significado, passando de preposição a substantivo e ganhando um acento circunflexo no correr do verso; e na segunda nova estrofe ocorre a menção a corpos desafiando a lei da gravidade, num jogo que envolve tanto a própria ação sexual quanto o fato de ocorrer num avião em pleno voo; e em ambos os casos, a letra corre em perfeita concordância com a harmonia que desliza por dominantes fora da tonalidade, como que afastando-se momentaneamente do chão, para retomá-lo adiante no retorno à primeira parte.

Medo de avião e Medo de Avião 2 têm duas citações de canções dos Beatles, ambas de sua fase inicial, dedicada a romances ingênuos – o que evidentemente se coaduna com a visão de Belchior sobre o espírito juvenil. Tratemos primeiro da menos óbvia She loves you. O trecho que Belchior escolhe é tanto uma menção à canção em si quanto a todo o movimento que ganhou nome a partir desta frase, o iêiêiê, e seus rocks inocentes. A exultação de quem escuta o amigo relatar que ela te ama é usada por Belchior para encerrar Medo de avião como a comemoração do rapaz pelo fato de a moça ter permitido a ele segurar sua mão e, simultaneamente, ao trazer todo o universo do iêiêiê para dentro da canção (ou melhor dizendo, explicitar ainda mais um universo que já estava lá), é mais uma mirada zombeteira de Belchior, já na coda de Medo de avião – e apenas nela.

I wanna hold your hand é mencionada nas duas canções – além da descrição do gesto em português, a frase em inglês. Na primeira, apenas em letra, pois a melodia muda em relação à original, e associada ao yeah, yeah, yeah! que a segue. Porém, em Medo de avião 2 a menção, apesar de ainda mais direta, por incluir agora também a melodia, surge recontextualizada pelo ato sexual já descrito antes de chegarmos a ela. Desta vez, letra e melodia originais dos Beatles são trazidas para dentro da canção de Gil e Belchior – e aqui se torna difícil assinalar se a melodia já era de Gil ou se Belchior interferiu nela para ajustar a citação. O fato é que, sem a citação a She loves you, I wanna hold your hand assume o papel de encerramento ao ser cantada pelo coro. E a incorporação total do verso cantado na estrutura da canção, em vez de apenas uma menção na letra ou o encaixe incidental do yeah, yeah, yeah!, acaba correspondendo também como que a um aprofundamento da relação entre as canções das duas duplas – Belchior/Gil e Lennon/McCartney, que antes apenas próximas, passam a efetivamente ter um trecho em comum – uma conjunção carnal, por assim dizer.

Medo de Avião e Medo de avião 2 abrem e fecham o álbum de 1979 de Belchior. A primeira foi um grande sucesso radiofônico, em parte e possivelmente justo por seu ar falsamente adolescente, além da simplicidade de sua forma, capaz de se prestar à assimilação imediata da parte de quem possivelmente nunca notou sua ironia. Medo de Avião 2, menos assobiável (fato raro em Gil, aliás), com seus versos abertamente sexuais, incluindo um dos mais exatos sobre o orgasmo – nós nem pensamos na felicidade – e encerrando o álbum, faz com que a mesma letra inicial ganhe novas cores, até pela escuta das canções que entremeiam as duas, como Comentário a respeito de John e Pequeno perfil de um cidadão comum, permanecendo destinada a quem decidiu prolongar o flerte com a obra de Belchior e acompanhá-lo até aonde ela prometia ir.

João de novo e sempre novo

Lá vem ele falar do João de novo. Verdade, e se reclamarem vai ter um blog só para falar de João. A centralidade de João Gilberto na música brasileira não se dissipa facilmente. A forma absurdamente sintética que ele encontrou de conciliar o formato da composição tradicional com as novas tecnologias de gravação e a modernidade brasileira gerou a partir de si tudo o que se convencionou chamar MPB, e se esta hoje se dissipa no ar, esgarçada em seus limites até se tornar indistinta ao absorver outras e outras influências, ainda assim sempre se pode voltar ao João para entender como este processo se iniciou. Mesmo em trabalhos aparentemente díspares das últimas décadas há o DNA de João. Los Hermanos tem João, Metá Metá tem João (aliás, bom assunto para outro texto). Afora isso, nesses tempos em que o Brasil está no redemoinho é que é ainda mais necessário falar de João. Então falemos de João.

Meu descobrimento particular do João se deu ouvindo o álbum Brasil, de 1981, gravado com Caetano Veloso e Gilberto Gil (Bethânia participa da faixa No tabuleiro da baiana). Brasil é um curso avançado de Bossa-nova, de canção e de… Brasil, em que João é o professor, Caetano e Gil os alunos e nós todos também alunos ouvintes. O formato escolhido por João é mesmo muito próximo ao de uma aula. Boa parte das músicas, em especial Aquarela do Brasil, Milagre e Bahia com H, ganham a mesma estrutura: após uma abertura a três vozes uníssonas, os três se alternam repetindo os mesmos trechos, como um professor dando a lição e em seguida os exercícios de fixação. Para os discípulos, uma aula prática única, e para nós uma oportunidade também única de, didaticamente, entender o que João faz com o que escolhe cantar.

E o que ocorre na escuta desta alternância? Ocorre o entendimento de um dos segredos de João, um ensinamento zen: a voz de João pode mais quanto menos se dá importância. Ela se torna o veículo absoluto da canção, desaparece sob a música para que esta surja em todo seu esplendor. Em tempos de vozes exuberantes e programas de calouros repaginados em que a firula e o grito são capazes de desfigurar completamente uma composição, não custa entender porque muitos dos fãs de discípulos confessos de João afirmam não o suportar, com sua cara de escriturário e sua interpretação sem nenhum excesso. Esta é a aula de João, de uma modéstia absoluta: que o intérprete desapareça para que a canção se desvele, e só assim o intérprete estará realmente fazendo o seu trabalho.

E esta lição vem em ondas sucessivas na audição de Brasil. A cada faixa, Caetano e Gil esforçam-se para seguir o preceito do mestre – pouca voz, pouca potência, nenhuma variação ou improvisação melódica (mas sim na divisão rítmica, sempre dialogando intimamente com a batida do violão), apenas a canção em si, com graus diferentes de êxito. Ao ouvir Caetano, Percebe-se que algo sobra ali de sua identidade pessoal. Caetano escolhe ênfases, deixa sua voz personalíssima conduzir a música e não ser conduzida. O resultado é belo, mas não é completamente a canção, é a canção segundo Caetano – o que pode ser interessantíssimo, mas não é a lição, até porque, para que haja a canção segundo Caetano, é preciso antes o entendimento da canção.

Gil vem em seguida, e a diferença com Caetano é nítida. O próprio Caetano não se cansa de destacar a imensa musicalidade de Gil, superior à sua própria. Gil aproxima-se do âmago da canção em sua leitura, deixando a voz branca e sem vibrato ser atravessada por ela.  Pode parecer que esta é a lição aprendida. Mas então é a vez de João. E aí é que a lição acontece. Pois com ele não há nada que não seja significação da canção em si. a relação letra/melodia/harmonia/ritmo em seu estado mais puro. O ouvido tem a impressão de estar ouvindo a canção tornada cristalina, como ela sempre quis soar. Não há interferência de uma outra personalidade, não porque João não tenha personalidade, mas porque ele humildemente se retira. E o seu modo particular de se retirar é sua grande lição, e é quando o ensinamento zen então se completa. Porque quando João se retira, ouve-se somente a canção, e quando ouve-se somente a canção, é aí que mais se ouve João. E ouvindo de novo estas gravações, no momento por que passa o país, me convenço de novo que, mais que nunca, é preciso ouvir João, para lembrarmos quem somos e o que é verdadeiramente o Brasil.

 

O medo, a vida, a morte

Gilberto Gil passou a maior parte do ano de 2016 com insuficiência renal e hipertensão, problemas relacionados. Precisou ser internado seguidas vezes para exames e tratamento, e ao se apresentar com Caetano Veloso e Anitta na abertura das Olimpíadas do Rio, tinha o rosto inchado das medicações.

Foi a primeira vez em que vieram a público problemas de saúde de Gil. Ele tinha à época 74 anos. Mas a questão da finitude da vida se apresentou a ele bem mais cedo. O jovem Gil já cantava: A morte é rainha que reina sozinha / Não precisa do nosso chamado / Recado / Pra chegar. E na repetição final, a palavra recado é trocada por medo. Nada que de que se espantar, o medo da morte, mesmo que na juventude nos sintamos imortais. Porém, décadas depois, Gil afirmou categoricamente: Não tenho medo da morte.

A primeira gravação de Não tenho medo da morte é a do álbum Banda Larga Cordel, de 2008, ano em que Gil completou 66 anos. Seu mote é a diferenciação conceitual entre a morte como um estado, posterior ao ato individual de morrer, o acontecimento em si.

A persona pública de Gil não dá a impressão de ser vulnerável ao medo. Ao contrário, ele foi intrépido ao longo de suas carreira, gerando com Caetano um movimento inovador na música brasileira, portando-se dignamente diante da prisão e do exílio pela Ditadura Militar, passando do fazer artístico ao político, aceitando o poder e realizando boas coisas com ele, e acima de tudo mantendo sua obra e sua vida sempre em íntima relação. Tudo leva a enxergar um destemido, um intimorato. Porém, esta impressão é desmanchada candidamente pelo próprio Gil. Pois ele não tem medo da morte, mas sim de morrer. Gil, como tudo que é humano, tem medo. Pois o medo também é constituinte indispensável do humano.

Na medicina tradicional chinesa, sete emoções são ligadas a sete órgãos do corpo. O medo particularmente está relacionado às funções renais. Segundo ela, crianças inseguras fazem xixi na cama, pessoas apavoradas perdem o controle da bexiga e se urinam. E o medo constante de toda uma vida, não aceito, mal resolvido ou não digerido psiquicamente, somatiza-se em falhas no funcionamento renal. Exatamente o que aconteceu com Gil.

O arranjo de cordas de Jacques Morelenbaum para Não tenho medo da morte me deixou intrigado desde a primeira vez que ouvi, por me lembrar o de alguma outra canção de Gil, que demorei para identificar. Vasculhei sua discografia de cima a baixo até topar com ela bem debaixo do nariz: um de seus maiores sucessos, Não chore mais. Embora a frase da introdução de Morelembaum seja bem diferente da de Lincoln Olivetti nos anos 1980, algo na sonoridade, os glissandos de ambas, remeteram meus ouvidos imediatamente de uma à outra. Esta relação, por sutil que seja, não deixa de ser carregada de significado. Não chore mais é uma canção de otimismo diante dos anos de chumbo da Ditadura, de boas lembranças sendo o que traz forças para enfrentar a dura realidade. A leveza com que enfrenta o assunto contamina a gravação de Não tenho medo da morte e lhe empresta um pouco de seu otimismo, mesmo diante do inevitável, da iniludível.

Mas este otimismo pode ser algo exagerado, ou mesmo inapropriado. Pois o otimismo diz respeito ao futuro, e trata-se aqui exatamente do fim de todos os futuros. A primeira gravação de Não tenho medo da morte é talvez leve demais, suave demais, não dá à finitude o peso que indubitávelmente tem. Gil teve a chance de mudar o enfoque sobre o assunto no álbum Concerto de cordas & máquinas de ritmo, de 2012. E o fez de forma surpreendente.

Para esta gravação, Gil despojou sua canção de quase tudo. Toda a instrumentação é reduzida a uma percussão esparsa no próprio violão e uma nota – só um bordão, uma vez a cada fim de estrofe. E é só. A própria harmonia se vai. Nudez absoluta. Para falar do momento da morte, aqui Gil literaliza na interpretação o próprio momento em que se está inteiramente só e todo e qualquer assessório é inútil. Do mundo nada se leva, e morrer não tem companhia. O canto soturno das duas primeiras estrofes contribui para a sensação de desolação, mas para as duas seguintes, ele passa à oitava superior. O movimento ascendente deixa escapar, afinal, uma visão positiva, mas que aqui não soa gratuita e sim respaldada pelo movimento anterior. Depois de encarar (esteticamente, oitava abaixo) o aspecto terrível da questão, Gil permite-se, apenas na própria voz, a sugestão de um possível consolo ou esperança.

A letra de Não tenho medo da morte é cristalina, uma pequena dissertação sobre o tema da morte e seu enfrentamento que dispensa maiores explicações. Mas o tema complementar do medo parece ter ficado ainda pendente de desenvolvimento por Gil. E o resultado foi, dois anos depois da primeira gravação de Não tenho medo da morte, o surgimento de seu espelho.

Não tenho medo da vida está no álbum Fé na festa, o que pode ser um bocado enganoso, pois a canção não tem nada de festiva, muito embora seja um xote (sua irmã espelhada também, embora menos evidente no arranjo). As estruturas são idênticas: os versos de abertura da primeira e terceira estrofe são os mesmos, apenas com a óbvia troca da palavra morte por vida. E a temática a princípio é também similar: assim como diferencia a morte do ato de morrer, agora distingue vida em si do viver e seus alfazeres, Porém, ao colocar a questão no espelho, Gil acaba em boa medida também invertendo a abordagem. E se na primeira canção o sentimento resultante era de uma certa serenidade apesar da morte não ser uma escolha, mas uma imposição, aqui, ao tratar a vida igualmente como algo compulsório e o viver com sua carga de sofrimento inerente, o resultado ironicamente acaba sendo bem menos otimista que sua em antecessora. Das quatro estrofes, três terminam retratando o sofrimento como inerente ao ato de viver.

Na época do lançamento do álbum conceitual Quanta, que trata das relações entre religião e ciência, Gil comentou numa entrevista que cuidara de compensar nas composições a aridez dos temas escolhidos. Que, diante da complexidade dos assuntos, preferira canções de estrutura mais direta, mais simples, a ponto de privilegiar rimas em ão, permitindo ao ouvinte focar no que ele tinha a dizer. A dupla de canções Não tenho medo da morte/vida parecem seguir este preceito. A primeira é o desenvolvimento de um raciocínio perfeitamente articulado, a segunda mais disperso, mas em ambos os casos o foco no discurso prevalece sobre a estrutura harmônico-melódica, a prioridade desta é conquistar o ouvido rapidamente, abrindo caminho para o outro. E efetivamente ambas permanecem dentro da tonalidade mais estrita entre primeiro, sexto e quarto graus, e têm melodias sem grandes saltos e repetidas a cada estrofe, sem sequer refrões para interromper o raciocínio que se desenvolve. É como se Gil, capaz de enormes complexidades e já tendo mostrado isto em tantos anos e tantas canções, seguisse agora o exemplo de seu mestre Dorival Caymmi, retratado por ele em Buda Nagô, no sentido da simplicidade – que de certa forma corresponde também a a um estado natural de tranquilidade diante da vida e da morte, de transcendência a elas, que é o que ele busca nestas duas canções, como na vida.

E como o processo se dá paralelamente na vida e na obra, ao trazer Gil sua vida integrada a sua música, o processo prossegue em sua doença e influencia diretamente o que ele canta. Já quase recuperado dos problemas renais e de hipertensão associados, Gil divulgou a gravação caseira (aqui a de um programa de entrevistas) de uma canção feita por ele em homenagem à médica que o tratou fazendo-lhe uma biópsia no coração.

Ela mandou arrancar quatro pedacinhos do meu coração
Depois mandou examinar os quatro pedacinhos
Um para saber se eu sinto medo
Um para saber se eu sinto dor
Um para saber os meus segredos
Um para saber se eu sinto amor

É de se notar que o primeiro dos exames poéticos listados por Gil é justamente o medo. Gil assume abertamente a psicossoma, toma o medo que de sua mente passou a seu corpo e o expurga em verso, invertendo o trajeto do sentimento à matéria e tornando-o em novamente sentimento – mas outro, resultante de uma canção de gratidão. A estrofe que se inicia com medo termina com amor.

Mas a ação mais direta e frontal de Gil contra o medo, não da vida e da morte, mas de viver e morrer, é também a mais singela, para além das considerações filosóficas de suas duas canções-espelho: O ato puro e simples de fazer uma canção para sua bisneta recém-nascida. E Gil, assim como o medo passou ao corpo e depois ao verso, passa da palavra ao ato, mas este ato é também palavra.

Em um antigo anúncio de Natal da Unicef, Gil contava a a história de um rei que conversava com seu filho e herdeiro à janela do castelo, e mostrava a imensidão do reino, até onde a vista alcançava. O príncipe então perguntou: Pai, um dia tudo isto será meu? E a resposta foi: Não, filho. Você, assim como eu, estará apenas tomando emprestado tudo isto a seus filhos.

A decisão de Gil em fazer esta canção em específico neste momento de sua vida, a atitude prática de, próximo da morte, apontar para a vida que se perpetua em seus herdeiros, apostar na renovação da vida como razão para enfrentar abertamente seus medos, viver e morrer, quer dizer algo por si. E a alegria com que Gil faz os últimos acordes da canção, saboreando a cadência harmônica e o acorde final suavemente em suspensão, recusando-se a um final definitivo, dizem ainda mais, sem a necessidade de outras considerações.

Tempo, tempo rei

Tempo. Grandeza física que permite medir a duração ou a separação das coisas mutáveis, numa definição que de meramente física já tem em si muito de filosófica, ao incluir intrínseca – e não poderia ser de outro modo – a ideia da mudança. E no entanto, é tão insuficiente, por não ser capaz de abarcar a infinita variedade humana de percorrê-lo (nem falo das mudanças do conceito dentro da própria física, desde Eistein, que considerava o tempo uma ilusão). Pois tão ou mais importante quanto uma definição específica de algo impossível de segurar ou parar é compreender ao menos um pouco nossa relação com ele.

O tempo é um deus. Ou vários. Cronos, criado pelos gregos padroeiros da civilização ocidental (correspondente ao Saturno para os romanos, temível na astrologia por atuar na desestruturação muitas vezes dolorosa da esfera da vida por onde passa), era filho de Urano, o céu, e Geia, a terra, o mais novo dos Titãs. Tomou o poder castrando o pai a pedido da mãe, e tornou-se o todo poderoso em seu lugar. Para impedir os filhos de ameaçarem seu poder, os devorava. Mas Reia, sua irmã e esposa, o engana dando-lhe uma pedra envolta em lençóis no lugar de seu filho Zeus, que, adulto, destrona o pai e o expulsa do Olimpo, adquirindo com isso a imortalidade, ele e seus irmãos, que se tornam, filhos do Tempo, a corte celestial.

Este percurso mitológico é tão carregado de simbolismos que daria para esquecer as canções em pauta e se dedicar só a ele. Mas é bom lembrar que esta visão do tempo, em que está implícita a ideia da finitude, é uma base fundamental do nosso pensamento (sim, os gregos também têm Kairós, que simboliza uma outra visão de tempo, mas que não permaneceu no nosso imaginário com a mesma força). O Cristianismo, via Santo Agostinho, apropria-se da filosofia grega para falar do Juízo Final, o Fim dos Tempos. E a música ocidental (o salto de pensamento pode parecer abrupto, mas lembremos que a música ocidental foi forjada a partir dos cantos litúrgicos, recitações do texto sagrado que se converteram paulatinamente em som musical) carrega em si a mesma ideia, implícita na própria noção de tonalidade: a viagem partindo de uma acorde de tônica, para se aventurar em tons estranhos até a volta para casa do Filho Pródigo (ou de Ulisses), agora transformado e ressignificado, de Adão expulso do Paraíso, da Humanidade que se reencontrará com o Pai por intermédio do Cristo na redenção final. Afinal, qualquer canção, por profana que seja, historicamente repete em sua estrutura este trajeto. Toda canção é um microcosmo do Tempo.

Mas esta não é a única visão possível do Tempo. Ao lado do tempo finito ocidental, a visão oriental do tempo (faço aqui uma generalização / estigmatização óbvia entre Ocidente e Oriente, e desde já reconheço suas incompletudes. Mas prossigo mesmo assim.) o trata de forma muito diversa; A visão reencarnacionista do budismo e do hinduismo incluem a noção de um tempo cíclico e menos definido, em que a ancestralidade se faz presente agora, em que a repetição não é um mal e sim uma forma de atingir o transcendente. E assim como a música ocidental é um espelho de sua concepção de tempo, a música do Oriente, com seus ragas e mantras, baseia-se na repetição, repetição, repetição, com infinitas e micrométricas (ou microtonais) variações. Não se trata de contar uma história com começo, meio e fim. A seu modo, esta música também repete em sua estrutura o tempo – um outro tempo. Também é um seu microcosmo. E ambas as visões se prestam, em primeira ou última instância, a provocar uma transformação no ouvinte – uma pela vivência, outra pela transcendência. Uma pela história, outra deixando de lado a história.

As canções de que trato aqui trazem em si diálogos entre dois tempos, o finito e o cíclico, assim como a dupla significação orixá / tempo propriamente dito perpassa ambas. Pois o Tempo a que elas se referem pode ser Cronos, o ocidental, mas é efetivamente Iroko. Ou Loko. Ou Kindembu. Pois o tempo é vário. Estes são divindades do Candomblé (orixá para os queto, vodum para os gêge e inquice para os bantu, respectivamente), de origens diversas, mas com diversos pontos em comum. Os dois primeiros são associados a (ou habitam) árvores, sendo no Brasil a gameleira. O ciclo de vida de uma árvore, lembremos, é bem diferente dos animais, e, dependendo da espécie, algumas podem viver mais de mil anos (a gameleira pode ultrapassar 200). Os ciclos das estações se espelham nas árvores, assim como ficam marcados nos círculos concêntricos internos ao tronco. Iroko teria sido, numa versão, a única árvore sobrevivente no planeta após uma seca resultante da disputa entre Céu e Terra, e em outra seria a primeira árvore plantada e pela qual todos os restantes Orixás desceram à Terra. Nos dois casos, há uma significação de origem – com pontos correlatos a Cronos. Nos três deuses, uma associação com a ancestralidade.

Mas mais que isso, a noção comum a estes três tempos/deuses consiste afinal, simultaneamenteem, num empoderamento supremo e em uma espécie de anulação do próprio tempo, na medida em que seus ciclos governam a vida desde um passado imemorial e que se repete indefinidamente, se faz presente, não apenas no sentido simbólico, mas efetivamente. Kindembu é a divindade que guia o seu povo nômade (e as migrações percorriam também roteiros preestabelecidos segundo os ciclos naturais) com sua bandeira branca, para que todos, por longe que estejam, possam se unir a ele, já que o mastro da sua bandeira é tão alto que pode ser visto de qualquer lugar. A centralidade espacial, quase uma onipresença, na simbologia do deus tem equivalência com uma centralidade do tempo, um eterno presente que o anula. Não há um Fim dos Tempos, porque a história já está dada e encerrada desde sempre, e permanece e permanecerá. Ao tempo vetorial do Ocidente, o tempo circular.

Oração ao Tempo e Tempo Rei são duas canções que se põem nesta interseção do tempo.

Oração ao Tempo – Caetano Veloso, do álbum Cinema Transcedental

Tempo Rei – Gilberto Gil, do álbum A Raça Humana

Gilberto Gil afirma em seu site, comentando Tempo Rei:

Tempo Rei é a minha versão para uma questão colocada em Oração ao Tempo, onde a frase-chave para mim é: ‘Quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido’ – quer dizer: o tempo desaparecerá, eu desaparecerei; o tempo e aquele que o inventa, o ego, estarão ambos desinventados, portanto. Na música do Caetano parece haver um niilismo essencial, um mergulho no nada absoluto e uma resignação plena, orgulhosa e altiva com a extinção. Na minha tem uma coisa mais cristã; uma, quem sabe, quimera; um vago desejo de permanência e de transformação.

Oração ao tempo e Tempo Rei, não apenas em suas letras, mas nas estruturas, oscilam entre as duas visões de tempo, embora ambas tenham como interlocutora a divindade africana – ou o tempo fenômeno em sua personificação. Oração ao Tempo recorre à repetição ostensiva. Composta por 10 estrofes iguais, em cada uma a palavra tempo é repetida oito vezes na forma de vocativo, como uma invocação ritual. O uso de uma mesma forma sem refrão tematiza o tempo cíclico, ainda mais levando-se em conta que a melodia não tem praticamente ponto de tensão – as notas mais altas são dadas na frase final da estrofe, simplesmente invocativa. Assim também a harmonia, formada por acordes simples, tem poucos momentos de tensão, e em vez de recorrer à estrutura tonal tradicional, usa pouquíssimo o acorde de dominante em favor de acordes de empréstimo modal, fora da tradição ocidental (as estrofes se encerram justamente com uma cadência plagal, IV -I), não apenas reduzindo as tensões, mas também aumentando a sensação de “circularidade”.

No entanto, a letra tem princípio, meio e fim. Trata-se efetivamente de uma oração, uma conversa com o Tempo, seja ele fenômeno ou divindade – ou ambos. Esta forma tem relação com o formato da trova que pede a benção às musas antes de cantar, e ao mesmo tempo, ao propor um trato ao Tempo, aproxima-se das oferendas do Candomblé/Umbanda na relação com o Orixá.

Tempo Rei, em sua forma, toma um caminho quase oposto. Trata-se de uma canção tradicional, com refrão, e com um arranjo pop que chega a soar datado – uma curiosa contradição. No entanto, está também cheia de sutilezas. O primeiro e o último verso da letra iniciam-se com o aviso: não me iludo. (O tempo é uma ilusão, disse Eistein, e de resto o Hinduismo trata o tempo da mesma forma com o conceito de Maya.) Gil canta as estrofes delicadamente e diretamente para o ouvinte, sua voz parece pisar em ovos ao mencionar o perigo iminente da destruição – e no entanto, a canção se inicia dizendo que tudo permanecerá – mas do jeito que tem sido, transcorrendo, transformando). O jogo continuidade/finitude a permeia e é resolvido no refrão, ponto culminante da melodia exatamente na invocação do Tempo como em Caetano, e converte-se assim também em oração; cuja harmonia é simplíssima, a síntese do tonalismo ocidental: dominante – tônica apenas, com a eventual substituição desta por sua relativa menor. Início e fim, início e novamente o fim. Quando Gil esclarece: o fim é transformação. E assim como na Oração, a significação de tempo transita entre a divindade e o fenômeno, porém, independente de identidade, investindo numa personalização que torna a relação com o tempo também pessoal, íntima mesmo. A intimidade de um deus.

Intimidade, de certa forma, impossível. Pois algo que ambas as canções têm em comum é o reconhecimento da transformação como única coisa permanente, já desde os primeiros versos de ambas:

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho

e

Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito
Que tem sido
Transcorrendo, transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos

A noção de que o tempo será reconhecido por ser sempre outro e novo, sendo por isso mesmo o mesmo. Neste sentido, talvez a discordância de Gil que o levou a compor Tempo Rei faça pouco sentido; pois se Caetano realmente afirma que não será nem o tempo terá sido um dia, logo após afirma:

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Num outro nível de vínculo

O que pode encontrar algum grau de correspondência com o pedido de Gil: Transformai as velhas formas do viver. Um outro comentário, este não de Gil, mas também em seu site, esclarece:

O provérbio “água mole em pedra dura etc.” fala da eficácia que as coisas acabam tendo ao durarem no tempo. Na letra, a omissão do final do ditado, “até que fura” (cujo significado é o da ação de interferência no mundo, dentro do plano do tempo “real”, cronológico), e a sua substituição pela expressão “que não restará nem pensamento”, além de servirem para romper a expectativa de enunciação completa de um dito conhecido, servem, segundo Gil, sobretudo ao seu propósito de sugerir a idéia de corte da dimensão do tempo enquanto duração para a dimensão do tempo “enquanto eternidade sorvedora de todas as suas dimensões, para a sua transdimensionalização”; de saída “do tempo-existência para o tempo-essência (o eterno)”; do tempo para o “atempo” – onde, nas palavras do compositor, “já nem pensar é possível”

E com efeito, o verso Água mole, pedra dura / Tanto bate que não restará nem pensamento explica, ou teoriza, sobre a estrutura mântrica da Oração ao tempo, sobre a repetição, a duração, a permanência da forma que a deixa para trás, pois que pela repetição ela, em vez de se amplificar, desaparece para que algo novo surja.

E então chegamos ao cerne comum, ao motor de ambas as canções: o pedido ao tempo. Cortando as invocações de ambas, temos:

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Quando o tempo for propício
De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
E eu espalhe benefícios

e

Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me o que eu ainda não não sei

Transcendência, a palavra não dita que ressoa. O Tempo, pela sua continuidade sempre nova, pelo seu fim que sempre engendra um novo começo, pela repetição desaparecendo para que algo novo surja. Para que das revoluções da impermanência sedimente-se no cantor o que permanece. Para que a Mãe Senhora do Perpétuo socorra, mutação engenhosa de Gil para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, tornando a mater cristã a divindade do eterno, fundindo em um nome, numa dúbia oração pagã, permanência e finitude, oriente e ocidente (N. S. do Perpétuo Socorro tem origem bizantina). Passado, presente e futuro rumo a algum lugar além-tempo, em que se reencontrarão e serão deixados para trás. No fundo, o pedido ao tempo que faça o que sabe fazer: passe. Permaneça, para que nós passemos. Passemos, para que permaneça em nós o que formos, efetivamente, nós. Tenhamos tempo.

O caminho do meio e o lugar comum

No texto de apresentação de seu álbum de 1975, Lugar Comum, João Donato diz o seguinte:

A origem da primeira música, Lugar Comum, que dá nome ao disco, é um assobio de um homem descendo a canoa no Rio Acre, em Rio Branco. O rio passa bem no meio da cidade. Ao cair da tarde, eu estava lá, pequenininho ainda, com uns sete ou oito anos, não me lembro bem. Passou uma canoa com o cara assobiando, e eu fiquei melancólico pela primeira vez na minha vida, um sentimento até então desconhecido para mim. Fiquei pensando, ‘por que eu fiquei assim?’, mas eu sabia que esse sentimento vinha daquele assobio e eu guardei a melodia.

Tempos depois, o mesmo João contaria em entrevista a Almir Chediak para seu Songbook:

Peguei aquele ita em Belém e havia um artista no navio, o cantor Carlos Galhardo, parecia um artista de cinema. puxa! Eu era garoto, ficava olhando para ele cheio de admiração. Também me lembro que o rádio do navio tocou I’m getting sentimental over you, com a orquestra do Tommy Dorsay, e eu fiquei triste, jururu. Foi a segunda vez que fiquei assim. Na primeira, eu tinha uns oito, nove anos, e tava na beira do rio assobiando um troço assim (assobia a melodia de Lugar Comum). Fiquei meio triste, com aquele negócio na cabeça. Muitos anos depois, Gilberto Gil botou letra naquela melodia, deu o nome de Lugar Comum e o Tárik de Souza considerou uma das 10 obras mais significativas da música brasileira dos últimos tempos. Para você ver a força que tem uma música simples, sertaneja.

Mas peraí, então: quem assobiou, e portanto é o autor original da música, foi o homem na canoa (que nem é citado na segunda versão) ou João Donato? Esta dúvida pode parecer insignificante. Mas ela ilustra um bocado do que é esta canção, cuja autoria o próprio João, numa terceira ocasião, afirmou que é do Acre, nem mais nem menos. Uma criação natural, emanada de um lugar. Um lugar comum.

Lugar Comum já se chamou Índio perdido, antes de ser kentonizada – a expressão que João utiliza quando promove um upgrade harmônico no material a molde do orquestrador americano Stan Kenton (1912-1979), que o influenciou. Este upgrade significa o acréscimo de extensões nos acordes – nonas, décimas primeiras, décimas terceiras, além de acordes de transição e/ou substituições de acordes por outros que mantenham suas funções, mudando sutilmente a sonoridade. No entanto, a estrutura básica da canção, retirados estes acréscimos, é franciscana (veja a harmonia dela aqui). Tárik de Souza, em seu texto de apresentação no Songbook, afirma: Minimalista, avesso à grandiloquência, Donato é um inimigo ferrenho do chichê. Clichê, no dicionário Aurélio, sinônimo de… lugar comum. Haveria aqui então uma contradição?

Lugar Comum é composta sobre três frases musicais. A primeira, de meras duas notas, sobe dois tons com a harmonia indo da tônica à dominante – Beira do mar -, e apenas um tom quando esta volta à tônica- lugar comum. A segunda, com amplitude de três notas, faz o mesmíssimo caminho à dominante – começo do caminhar, e volta à tônica tocada um tom abaixo – pra beira de outro lugar. Repete-se com outra letra, e fim da primeira parte. A segunda tem apenas uma frase, igualmente curta e com a mesma amplitude. Vai sendo repetida quatro vezes, sempre iniciando-se um tom abaixo, indo à subdominante – a água bateu, à antirelativa – o vento soprou, à relativa da dominante – o fogo do sol, à dominante em II/V e volta à tônica na primeira vez – o sol do Senhor – na segunda, fica na dominante preparando a volta ao tema inicial, e a frase da última vez – de onde tudo sai, ao invés de se iniciar um tom abaixo como as outras, começa dois tons abaixo, mantendo o mesmo desenho. Fim da canção, e seu recomeço.

A descrição acima pode parecer extremamente complexa a um não-músico, mas ao contrário, o fato de toda a estrutura caber em um parágrafo e não haver na melodia uma única nota fora da tonalidade é sintomático de sua frugalidade. E aí talvez haja um caminho para explicar melhor a fala de Tárik: não que ele seja inimigo do clichê, mas talvez mais apropriadamente ele não tenha medo do clichê. O que poderia soar como clichê em outras mãos, nas de João Donato soa como o caminho absolutamente natural e mantendo um frescor de coisa nova, como um lugar ao qual, mesmo se voltando sempre, haja sempre algo a descobrir. Resta-nos tentar descobrir como e por quê.

Lugar Comum, o álbum, é o segundo de Donato em que as composições têm letra. Gilberto Gil, autor desta, conta:

A letra de Lugar Comum foi escrita em Itapuã, no verão, estimulada pela sensação boa de estar ali e de ali ser um lugar comum a tanta gente comum – pela idéia de comunidade. Os versos finais reafirmam minha obsessão com o eterno retorno, como sentido yin-yang da realimentação, do embricamento vida-e-morte e da polaridade dos contrários: a coisa de o um dar o dois, o dois dar o três, e o três dar tudo.

O fim da fala de Gil se refere a um trecho do Tao te ching, o Livro do Caminho, obra mestra do taoismo e do zen. Em seu verso 49, ele afirma:

O Tao (o caminho) gera o um
O um gera o dois
O dois gera o três
O três gera as dez-mil-coisas.

O que pode ser pensado assim: de Deus (ou do devir, ou do insondável, dependendo da sua concepção) vem a unidade, que desdobrada, gera a dualidade (como quando Deus separa o que está em cima do que está embaixo ou o mar da terra seca no Genesis). A partir da oposição entre opostos surge o terceiro elemento, formando-se a trindade (outra vez o Cristianismo encontra pontos de contato, mas poder-se-ia pensar em dialética também). E daí desenvolve-se a multiplicidade absoluta.

Estou dando uma enorme volta, mas não é à toa, e aqui começo a retornar. A ideia de uma unidade em meio à multiplicidade norteia esta canção, não apenas a letra de Gil escrita na praia e referencial ao mar, mas a melodia ouvida/composta por João no coração da selva e na beira de um rio. A dicotomia entre estes dois lugares é já uma pista: a melodia que ressoa num lugar ressoa também em outro, mais do que traçar uma ligação, indica uma identidade entre estes dois lugares.

Lugar comum: lugar como outro qualquer; lugar de todos. Dois sentidos diversos, a que se acrescenta o sinônimo de clichê, de fórmula gasta pelo uso. Itapuã, lugar como outro qualquer, lugar de todos. Praia, ponto de partida para chegar a outra praia, outra margem. Margens que também tem o rio, que vai em direção ao mar. Permito-me esta associação de ideias para indicar o quanto há efetivamente uma identidade na diferença de cenários que vai da melodia-rio de Donato à letra-mar de Gil. Em ambas, a constatação de algo subjacente ao lugar, algo que os une. A sensação de melancolia de João é irmã da sensação agradável de Gil, reações individuais ao mesmo reconhecimento do que desafia a ser exprimido – Donato e Gil, cada um por sua vez, aceitaram o desafio.

E em 1995, Arnaldo Antunes, a seu modo, também aceitou, ao gravar Lugar comum em seu álbum Ninguém.

A voz rascante de Arnaldo contrasta fortemente com a suavidade de gravações anteriores. Os harmônicos da guitarra do excelente Edgard Scandurra substituem as extensões dos acordes de Donato. Porém, a canção sobrevive perfeitamente a estas mudanças, e mais ainda, ressurge com renovado interesse. Como um lugar a que se volta, mas se enxerga com outros olhos. Na gravação de Arnaldo, a canção Lugar comum é ela própria o lugar comum a que se volta, que ele visita. E quando Arnaldo consegue, metalinguisticamente, deslocar o significado do lugar de um lugar propriamente dito, percebe-se com mais clareza que o lugar que Gil e Donato visitam também não estão em Itapuã ou no Acre, nem mesmo na memória (pois João nem tem certeza sobre a autoria da melodia), nem sequer é a própria canção.

O lugar é o lugar que se visita ao ouvir a canção. O lugar a que Donato foi ao ouvir o assobio do índio na canoa, a que Gil foi partindo de Itapuã – de suas impressões de Itapuã e suas divagações sobre o Tao. Lugares comuns, lugares em comum, a que se pode chegar por caminhos muito diversos, assim como deste mesmo caminho pode-se ir a diversos lugares. Uma canção como Lugar comum se presta a tornar comum (a todos) um lugar que se pode visitar ao ouvi-la, e impedir que este lugar seja comum (banal), tornando-o especial, acrescendo-lhe significados novos a cada visita. Como a melodia de Donato é sempre nova a cada audição. Como a letra de Gil aponta na direção oposta do Tao te ching, retomando das dez mil coisas ao três, ao dois, a uno, o mar remontando ao rio e este da foz à nascente, no coração da floresta. À origem comum. Cuja percepção pode ser agradável e feliz como a de Gil, melancólica como a de João, e que pode vir de um assobio perdido na mata ou na gravação de uma orquestra feita em outro continente e ouvida como que por acaso numa viagem. Unidade insuspeita, inefável, que se traduz em canção.

Brinde: I’m getting sentimental over you – Tommy Dorsey Orchestra

Melodia de George Bassman, letra de Ned Washington. Arranjo de Noni Bernardi. Frank Sinatra começou como crooner nesta orquestra, cantou esta música com ela e a gravou em 2961, depois da morte de Tommy em 56, no álbum I remember Tommy, em que volta a este repertório.

Paul Simon em Limoeiro, no Pelô, no Haiti

Em 1986, Paul Simon se reinventou. Um dos maiores cancionistas americanos, com os dois pés fincados fundo na tradição folk, fez um álbum com uma plêiade de músicos africanos. Graceland foi um sucesso estrondoso e mundial, e nem podia deixar de ser: canções primorosas como as que ele sabia e sabe fazer, com uma embalagem sonora nova e instigante; dezenas de músicos exóticos e talentosíssimos em torno do já conhecido estilo de composição que embalara uma geração em sua parceria com Art Garfunkel.

Em 1990, Paul deu continuidade  natural a sua exploração que ajudou a consolidar o termo world music, gravando The rhythm of the saints no Brasil, com músicos brasileiros (Milton Nascimento, Naná Vasconcelos, Uakti) e africanos. A faixa de abertura foi gravada em pleno Pelourinho de Salvador, com o Olodum.

The obvious child

Porém, enquanto o sucesso destes álbuns se consolidava, surgiam também diversas questões, em parte políticas, em parte estéticas. Politicamente, lembrou-se que Paul furou o bloqueio imposto pelo mundo à África do Sul, à época em regime de Apartheid, e ao mesmo tempo ele foi acusado de explorar comercialmente a música africana – ou seja, de mero oportunismo.

E esteticamente, a crítica era de que não havia um real entrosamento entre as composições e o que foi feito delas. As canções de Graceland e The rythm of the saints não deixam de ser canções de Paul Simon, criadas dentro de uma formatação folk e transplantadas para universos de ritmos sem que houvesse uma real interação entre ambos, e sim uma simples sobreposição. Em The obvious child, por exemplo, ao chegar no trecho contrastante que se inicia com Sonny sits by his window, a batucada do Olodum tem que ser colocada como fundo na mixagem do estúdio, de maneira muito pouco natural. É como se para esta parte da canção a base percussiva não servisse, fosse algo incômodo que não se pode dispensar, pois deverá voltar mais adiante.

Por tudo isso (como também pela tendência irreverente do brasileiro de começar a chamar de arroz de festa todo gringo que para por aqui), Paul Simon foi alvo de algumas gozações, caracterizado como o sujeito que chega a uma festa em que não conhece ninguém e quer logo se mostrar enturmado, ou como o que realmente era: um estrangeiro algo deslumbrado com culturas diferentes e riquíssimas:

Baião de Lacan – Leila Pinheiro – Guinga e Aldir Blanc

Aqui começa um pequeno emaranhado de citações. O Baião de Lacan, em uma letra quase atemática, narra dispersa e sarcasticamente uma tentativa de carreira artística nos EUA:

Um empresário quis que eu fosse a Massachutis
Oquêi, my boy! – Cheguei pra rebentar e putz!
Voltei sem calça e quase que um me sequestrava…

Mais adiante, depois do fracasso da iniciativa, um disparatado seguidor de Lacan diagnosticou estresse e me mandou pra roça descansar. E aí Aldir de passagem dá uma rasteira no músico americano que fez o caminho inverso do protagonista fabuloso da canção:

Eu fui pro Limoeiro e encontrei o Paul Simon lá
Tentando se proclamá gerente do maufá…

Só que a melodia inicial deste trecho é tirada por Guinga de outra canção: o Forró em Limoeiro, a primeira música gravada por ninguém menos que Jackson do Pandeiro.

O Forró em Limoeiro aqui é apresentado como uma espécie de paradigma da nacionalidade – o cabra que foi ao Forró se meteu numa tremenda briga, e gostou! – tanto tematicamente quanto pela particularidade de ser uma gravação do Jackson (a autoria é de Edgar Ferreira). A narrativa do forasteiro totalmente aclimatado, assim como a própria figura do Jackson, contrastam com a posição do Paul Simon, tentando gerenciar algo de que não teria um real conhecimento.

E no entanto a posição assumida pelo Baião de Lacan não é tanto a da defesa de uma suposta brasilidade frente a uma suposta exploração estrangeira, mas antes uma cobrança à postura brasileira, em cujo bojo vem a referência ao Olodum no início da letra: Eu ouço muito elogio à barricada, procuro as nossa por aqui – Não vejo nada, para no fim alertar: se o pião não chiar, o Boi Bumbá vai virar vaca!

Haiti – Caetano Veloso e Gilberto Gil

Em Haiti, Caetano e Gil traçam o caminho de Paul Simon, só que em sentido oposto: enquanto ele sai da música americana tradicional e tenta incorporar o ritmo brasileiro à sua linguagem, eles partem do Olodum, tanto temática quanto musicalmente, para incorporar o estilo originalmente americano do rap. Só que Caetano e Gil, em vez de cairem de paraquedas na cultura estranha, tem um ponto de apoio para esta passagem, que é o movimento de rap e hip hop brasileiro, especialmente paulista. É a partir desta referência que constroem Haiti. Com isso, a mistura de ritmos que promovem soa muito mais orgânica que a de Paul Simon

Caetano e Gil também citam a passagem de Paul pela Bahia. Porém, em vez de criticá-lo ou tratar da defesa de valores nacionais, ou coisa parecida, preferem apontar o abismo entre a visão espetacularizada dos meios de comunicação de massa – e aí está incluída, ainda que involuntariamente, a música de Paul Simon, como a lente do Fantástico – e a realidade onde ninguém é cidadão. E quando se referem indiretamente ao Olodum – mas não só a ele – como um batuque com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária  em dia de parada, traçam um paralelo à preocupação de Paul expressa em The obvious child, que não por acaso trata de crianças pobres ao gravar no Brasil, assim como tratara dos sem-teto ao gravar na África.

E a dicotomia ente as duas visões fica patente na citação que fecha Haiti, estabelecendo também a relação com outra canção de Caetano, Menino do Rio. A aspiração expressa na outra – o Havaí seja aqui – converte-se numa constatação dúbia – o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui, mantendo-se basicamente a melodia, como que ironizando a outra canção do mesmo autor que retrata uma realidade tão diversa – ironia que, em vez de voltar contra Paul Simon, Caetano sabiamente volta para si próprio.

Talvez as cobranças a Paul Simon tenha sido injustas. As de que estaria usando a música de outros países para alavancar sua carreira, é óbvio que sim. O grupo vocal Ladysmith Black Mambazo, que gravou com Paul em Graceland, adquiriu justíssima visibilidade internacional, e boa parte do mundo conheceu a vasta música feita na África a partir daí – inclusive podendo perceber com mais clareza as diferenças entre o ela e trabalho de Paul Simon. Em medida algo menor, foi o que aconteceu com The rhythm of the saints.  A começar pelo título, é uma visão estrangeira, e nem poderia deixar de ser. Reducionista, sem dúvida, pela ambição de tanta coisa que devia caber num álbum, e não cabia, claro. E um encontro difícil entre uma tradição (não apenas) musical e uma diversidade de outras, que Paul tenta traçar em versos respeitosos como Olodumaré está sorrindo no Paraíso, eu realmente acredito.

Mas o que fica claro também é que Paul Simon tem igualmente consciência do tamanho de sua empreitada e da impossibilidade de levá-la a cabo, mas da necessidade de que este passo seja dado. Desta consciência é que saem alguns dos momentos de maior densidade poética de ambos os álbuns. Como quando em Graceland ele canta:

Losing love is like a window in your heart
Everybody sees you’re blown apart
Everybody feels the wind blow

Ou em The cool cool river, construída sobre um complicado compasso de nove tempos, que às vezes se organiza em ternário composto e às vezes se desarticula novamente, sem soar nada folclorizante, em que Paul explicita que não faz o jogo do contente nem está interessado em superficialidades: quem diz “tempos duros”? Estou acostumado com eles. E finalmente reconhecendo, à sua maneira, o que Caetano e Gil apontam, ao mesmo tempo em que entoa um canto épico de esperança: às vezes nem mesmo música pode ser um substituto para lágrimas.

As exegeses do bilhete à diarista

Depois da exegese dos posts anteriores (aqui e aqui), é bom mostrar o outro lado – ou seja, a sanha da interpretatice, o culto à personalidade e a vontade de ganhar alguma notoriedade em cima da obra alheia, alimentando múltiplos significados que acabam dando mais notoriedade a quem consegue arrancá-los da obra que ao próprio autor, que nunca pensaria em nada parecido, e assim surgem os especialistas. O poeta Bruno Tolentino empreendeu nos anos 1990 uma verdadeira cruzada contra esta sobrevalorização da cultura popular – que ele simplesmente não considerava cultura, vide esta entrevista, e baixou o malho no Caetano Veloso, que aliás já afirmou diversas vezes que não considera sua obra algo que mereça atenção por refinamento erudito, e que tem a exata dimensão de ser apenas um compositor popular, e nada mais que isso.

Por mais argumentos eruditos que Tolentino tenha apresentado, é óbvio que esta visão absolutamente elitista não se justifica. Mas há bons debates sobre a posição da cultura popular no Brasil, em que a cultura erudita por séculos foi pouco mais que cópia ou adaptação da importada. Conversa que vai longe. Onde quero chegar é no Piauí. Ou melhor, nas sátiras que a equipe do Piauí Herald faz à esta confusão entre a cultura erudita e a popular no Brasil, por parte das obras, mas também dos analistas, como se, à falta de cultura erudita, fosse o caso de promover a popular a este posto – promovendo também por tabela quem a promove e supervaloriza obras marginais como correspondência pessoal à altura de grandes obras literárias.

A primeira que vi foi a incrível manchete Descoberto homem que compreende Gilberto Gil. Mas mais recentemente veio a público uma série inteira, baseada num recado escrito à diarista – por Chico Buarque, Gilberto Gil, João Gilberto e Caetano Veloso. O mesmo recado à mesma diarista, supostamente compartilhada por todos, um dia na semana para cada. A notícia é fundamentalmente a mesma, com as adaptações ao novo autor do bilhete, e é isso que as torna crescentemente hilariantes. Aqui, a sequência completa de artigos:

Bilhete de Chico Buarque à diarista é considerado magistral

Bilhete de Gil à diarista é considerado incompreensível

Bilhete de João Gilberto à diarista é considerado revolucionário

Lobão critica recado de Caetano à diarista

E finalmente, o clímax – ou o paroxismo – da novela, ainda mais surreal, mas ainda uma vez chicoteando a intelligentsia: Documentário de José Padilha sobre bilhetes à diarista é considerado visceral.

OK, vá lá, colocar estes textos num blog que se dedica justamente à análise do repertório destas pessoas requer uma boa dose de autocrítica, o reconhecimento de que elas fazem sentido muitas vezes – inclusive as do Bruno Tolentino, que certamente consideraria este blog a escória. Lembrei de Drummond se sentindo um monstro de escuridão ao ler a análise de um erudito a um poema despretensioso seu, e de Jonh Lennon rindo do crítico que detectara cadências eólicas em uma canção sua – cadências que existem mesmo, e que Jonh fazia questão de não conhecer… Mas lembro também do Chico Buarque que confessa não saber exatamente o que querem dizer versos como agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês ou pela varanda flores tristes e baldias como a alegria de não ter onde encostar. Sinal de que nem sempre o artista tem todas as chaves de sua própria obra.

É útil e saudável reconhecer o lugar especial que a canção popular, por circunstâncias históricas diversas, acabou assumindo no Brasil, fazendo as vezes de literatura, de crônica política e econômica, de filosofia, do escambau, reconhecer a beleza precária disso, de um florescimento tão grande que é a denúncia de uma falta que ela procurou e procura suprir a seu modo. Talvez num Brasil ideal a canção não seja tão importante – agora lembro do Millôr, que diz que um mundo ideal não teria humoristas, que vivem da falha. Mas então não seria ideal. Deixo a solução desta contradição para os exegetas.

Gil e a trilogia dialética dos Re – Parte 2

Os elementos do esquema básico do método dialético são a tese, a antítese e a síntese.

A tese é uma afirmação ou situação inicialmente dada. A antítese é uma oposição à tese. Do conflito entre tese e antítese surge a síntese, que é uma situação nova que carrega dentro de si elementos resultantes desse embate. A síntese, então, torna-se uma nova tese, que contrasta com uma nova antítese gerando uma nova síntese, em um processo em cadeia infinito.

Estas informações filosóficas estão na Wikipédia. Por elas, percebemos que, na dialética, a síntese carrega em si elementos das suas duas premissas, tese e antítese, mas resolvendo em si suas contradições, conciliando-as, transfigurando-as, e também se apresenta como uma afirmação nova – e por isso mesmo, pode parecer à primeira vista como muito diverso das premissas, como uma soma de dois algarismos que resultasse, não num número maior que o esperado, mas em algo de outra natureza, não em uma quantidade, mas em uma qualidade.

É exatamente este o caso de Realce, em relação a Rafazenda e Refavela: uma síntese que, responde as inquietações de uma e as elucubrações de outra de forma surpreendente, tanto no desenvolvimento da temática quanto em termos musicais.

Realce – álbum de 1979

Por causa dos questionamentos com relação ao seu significado – a imputação de uma minoridade que ela teria dentro de minha obra, já que representaria uma escorregadela na facilidade do efeito pop -, a necessidade, que eu sinto, de fazer a defesa de uma canção que tem para mim um sentido profundo no meu trabalho e no processo de aprendizado que eu coloco como dado essencial da minha relação com o fato de fazer canções – de dizer coisas através de canções populares -, e que diz muito sobre quem eu sou como compositor e sobre o grau de exigência que me imponho para que minhas canções exprimam alguma coisa importante na minha vida.

Realce é de uma época em que eu me introduzira no campo da meditação, entendida como uma arte mais formal e rigorosa de pensar-se e refletir-se, e estava interessado em possíveis traduções da filosofia oriental para o idioma da canção, tendo resultado num dos concentrados das meditações que eu então fazia e sido resultado de um processo profundo e ruminante, um longo trabalho de elaboração e meditação, sendo ela mesma uma canção sobre o wu wei, termo chinês que significa ‘ação da não-ação’, ou, a impotência que se torna potência, ou, o esgotamento dos contrários nas suas polaridades (um polo se esgota e inicia o que está contido no seu oposto) etc.

É nesse sentido uma canção ambiciosa e carregada de significados embutidos que vão sendo des-cobertos, como, na cebola, as camadas por debaixo das camadas.

A letra parte de um escopo geral que é falar do que, à época, eu chamava de ‘salário mínimo de cintilância a que têm direito todos os anônimos’ – nos terminais de metrô, nas arquibancadas dos estádios, nas discotecas. Esse lado saturday night fever está propositalmente explicitado nos três pseudo-refrões, que funcionam para reiterar a macdonaldização da vida cotidiana nas grandes cidades, mas também para dar-lhe uma qualificação de profundidade que necessariamente também existe nessas coisas tão associadas à superficialidade. Por outro lado, cada uma das estrofes que antecedem os ‘refrões’ remontam ao sentido de potência contido no wu wei.

Por aí se percebe de cara uma conciliação interna da canção, que é da superficialidade – neste caso, uma discoteque – abrigando a profundidade de uma discussão que envolve política – e os Titãs reverberariam a idéia do salário mínimo de cintilância ao clamarem que a gente não quer só comida – e conceitos de filosofia oriental, não lado a lado, mas ao mesmo tempo, no mesmo verso, na mesma palavra – primeiro indício da fusão dialética entre Refazenda e Rafavela. Mas Gil trata de política redimensionando-a, tanto em seu aspecto externo de relação quanto no interno, como relação consigo próprio, como auto transformação. E ele próprio trata de interpretar a fundo cada verso (veja a letra de Realce aqui):

Estrofe I
 versos 1, 2 e 3 – Há uma idéia da força que remete às mudanças geológicas; a um revolver da natureza que se dá por si só. As grandes catástrofes das idades do universo passam como um trator por sobre a condição humana. Ao mesmo tempo, a fonte da força também está à disposição do que chamamos consciência, inteligência, vontade: homo sapiens.
Versos 4, 5 e 6 – O homem como combustível e energia do motor da natureza, parte e partícipe do moto-contínuo, ciclico-recorrente (o eterno retorno), de criação e destruição, anulação e afirmação, operado pela natureza na história e pela história na natureza. A relação dinâmica entre ambas e o homem como o corte.

Estrofe II
Versos 1, 2 e 3 – O interstício sutil entre a vontade e o resultado, o fazer e o não fazer. O fato de que tudo está ‘afeto’; de que, do ponto de vista quântico, digamos, a mínima partícula de emanação pensátil está ‘afeta’; de que o afeto pertence à totalidade do pulsar existencial das coisas, à dança de Shiva; e mesmo o sentir quieto ali naquele canto pode estar afetando uma estrutura qualquer de uma parte qualquer do universo.
Versos 4, 5 e 6 – O afeto, portanto, é fogo; portanto, se cuide – mas se descuide, também, do seu sentir; pois de todo modo ele é pleno, dono de si; ele trabalha no campo onde as bactérias se criam, os átomos se criam e os eventos se dão; e, mesmo entre as partículas, o que não é visível nem palpável ainda assim é e pertence ao intercâmbio das afeições amplas, universais.

Estrofe III
Versos 1, 2 e 3 – A autonomia plena da vida sobre nós e o imperativo da fatalidade de ter nascido e ter que morrer; ter que viver esse ‘alfômega’ nascimento-morte, a grande questão colocada para nós.
Versos 4, 5 e 6 – De como a vida entra pelos olhos e é o ferir incondicional do brilho neles. Sob o sol ou sob a lua, a esteira de luz estendida sobre a superfície do mar será irremediavelmente captada pelos olhos abertos. A irredutibilidade do fenomenólogico. O ser sendo ferido pelos estímulos externos aos quais os seus sentidos, todos, dão sentido; a natureza se fazendo linguagem através do homem.

Gil, então, não está falando da dicotomia cidade/campo, mas estendendo-a para Ocidente/Oriente, ou para ser humano/mundo, ou minha força interna/forças externas da vida, ou individualidade/coletividade, todas desdobramentos ou desenvolvimentos das idéias contidas nas duas outras canções, mas levadas muito adiante, e tudo isto embalado na estranha dicotomia entre esta letra prenhe de significação e o arranjo de discoteca – na verdade um jogo entre a força do clichê e a novidade de conteúdo.

A melodia de Realce reflete também esta conciliação de opostos: os três versos iniciais de cada estrofe tem um movimento ascendente, quando a letra fala de uma ação interna (o que a gente pode, o que a gente sente), enquanto os três versos seguintes vem de cima para baixo, como uma ação externa, enquanto a letra reforça esta significação (a força é bruta, a vida fere). Ao se iniciar a segunda parte, que Gil chama de pseudorefrão, a letra perde densidade e ganha em afirmação: realce é uma palavra de ordem, uma reivindicação, um mantra sobre o baixo de discoteque. E o verso real teor de beleza, como que uma definição para a canção (com todas as implicações filosíficas que o conceito de beleza pode ter) escala meios tons e termina como quem se joga de um parapeito, com o espocar de fogos de artifício figurado pelas frases dos metais. Gil ainda afirma:

Realce custou muito tempo e aflição para ser feita pelas muitas funções sobrepostas com as quais ela se comprometeu de antemão, a começar pela de fecho da triologia dos ‘re’. (…) Eram muito apriorísticas as proposições e o alcance de Realce. Sentidos novos iam sendo exigidos e agregados ao longo do tempo da sua realização, e a cada dia a música ficava mais dificil. Começada aqui, onde anotei as primeiras idéias, soltas, ela tomou umas dez páginas de esboços, e eu só a terminei após dois meses de excursão pelos Estados Unidos, quando já estava gravando o disco, lá.

A simples exposição dos versos pode não remeter de imediato a significados tão vastos, múltiplos e profundos, que, no entanto, estão engastados na intenção processual da canção; no porquê de ela ter sido feita. Eu não posso exigir de todo mundo a apreensão de todos esses sentidos, mas não posso aceitar a negação deles. Minha impressão é de que, no âmbito das pessoas cultas e inteligentes, afeitas ao dimensionamento cultural encarregador das leituras, Realce não é tão hermética; lida sua letra com o mínimo de atenção, muitos dos seus significados logo se insinuam, e as portas para outras digressões possíveís se abrem.

Realce toma para si de Refavela e Refazenda caracteres diversos, mas sempre transfigurados: nem a linguagem direta de uma, nem a elíptica de outra, mas a sintética. E não é apenas a letra profunda que contrasta com o estilo tido como superficial, mas também a sofisticada construção harmônica da canção, e o modo de Gil tocar seus acordes sem abrir mão do suingue, o que impressionou os músicos americanos que gravaram com ele. E, assim como na dialética, o que primeiro era conciliação de opostos logo depois se torna uma nova e vigorosa afirmação. Sem isso, Realce não teria sua própria cara. 

Por ter em mim os traços nítidos do criador marcado pelo compromisso com a banalidade, egresso de uma tradição cultural média brasileira, a da canção popular, eu me sentia parte integrante daquele fenômeno, a que vim a me referir como a ‘superfície do profundo’ – onde o profundo não é captado como tal e só pode ser captado como superficial porque só está na superficialidade.

E é disso que falam Realce e outras canções minhas da época. Utilizando-se de elementos fáceis e flácidos mas remetendo também aos sentimentos de elevação que cada simples ser pode e deve ter, elas trabalhavam para uma conciliação do conceito de sofisticado com o conceito de banal, contra o reducionismo cataloguista dos cânones clássico e popular e contra a idéia do estanque prevalescendo sobre a do osmótico e interpenetrante.

E o que Realce declara, em forma e conteúdo, através do formato da canção popular  é exatamente o direito do simples ser complexo, do complexo ser simples, do banal ser sofisticado e vice-versa, e de todos terem direito a tudo isso. Na Refavela, na Refazenda, em todo lugar.

Gil e a trilogia dialética dos Re – Parte 1

Refazenda, Refavela, Realce. As três canções de Gilberto Gil, todas dando nome a álbuns, formam uma trilogia, segundo o próprio – noves fora o samba Rebento, que segue a linha do prefixo mas não ganhou autonomia suficiente para comandar um álbum, e Refestança, que não é canção e sim o álbum gravado ao vivo por Gil e Rita Lee, e que segue a linha mais para fazer um brincadeira. Trilogia cheia de sutilezas e também de pontas soltas. Soa a mim como o modelo clássico da dialética: tese + antítese -> síntese. Trato neste primeiro post das duas primeiras canções, e no segundo da terceira.

Refazenda – do álbum de 1975

Refazenda resultou de uma justaposição de nonsenses. Começou com um brainstorm com sons: fui aleatoriamente escolhendo palavras que rimassem e cheguei a um embrião interessante – um desses troncos de árvores tronchas sobre os quais o cinzel dos artistas populares vai trabalhar para fazer esculturas loucas, à la Antonio Conselheiro, do Mario Cravo, nascida de um tronco com dois galhos de braços abertos. O esboço era maior e muito mais absurdo: não tinha sentido nenhum! Aos poucos fui criando sentidos parciais a certas frases, até desejar um sentido geral para todas.

Os versos foram feitos antes da música, obedecendo a um ritmo que eu tinha na cabeça. Para o primeiro, escolhi o alexandrino, um dos preferenciais do cantador nordestino, pois queria a priori uma canção com esse direcionamento country.

“Abacateiro, acataremos teu ato” – Na época pensaram que eu me referia à ditadura militar (o verde da farda) e ao ato institucional, o que nem me passou pela cabeça. O que me veio mesmo foi a natureza em seu contexto doméstico, amansada, a serviço da fruição – daí a idéia de pomar e das estações. Refazenda é rememoração do interior, do convívio com a natureza; reiteração do diálogo com ela e do aprendizado do seu ritmo.

Linguagem transgressiva – “O período em que compus a canção é permeado pelo nonsense ou o que o tangenciasse; por um despudor audacioso de brincar com as palavras e as coisas; por um grau de permissibilidade, de descontração, de gosto pela transgressão do gosto. É uma fase muito ligada aos estados transformados de consciência, pelas drogas, e a consequente multiplicidade de sentidos e não-sentidos.”

Guariroba – “Nome de uma palmeira do Planalto Central, a palavra dava nome também a uma fazenda que um grupo de amigos (Roberto Pinho, Pontual e outros) tinha a uns cem quilômetros de Brasília. Chegou-se a pensar em criar lá uma comunidade alternativa, onde nos juntássemos todos com nossas famílias. Não deu certo, e a fazenda foi vendida.

Estes são os comentários feitos por Gil em seu site, na página do álbum Refazenda. Há pouco a acrescentar – fora o fato de que eu fui um dos que embarcaram na onda (é possível embarcar numa onda?) de pensar que a canção era, ao menos em parte, um recado à ditadura – especialmente por versos como Abacateiro, sabes ao que estou me referindo e por causa do grupo de atuação estudantil Refazendo, formado na USP na mesma época da canção. Teorias de conspiração à parte, ainda tenho para mim que sobra algo de referência política na letra, mas misturada e diluída em outros conteúdos, já que esta questão política era algo realmente importante para o Gil, e não deixaria de vir à tona de alguma forma num brainstorming como o que originou esta canção. Mas percebo também que reduzi-la a uma mera canção de protesto cifrada – mesmo que toda ela fosse decifrável neste sentido – seria emprobrecê-la, tirando dela este caráter transcendente que Gil aponta.

Refavela – do álbum de 1977

Em 77, eu fui participar do Festac, festival de arte e cultura negra, em Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas.

Para abrigar os 50 mil negros do mundo inteiro que para lá acorreram, tinha sido construída uma espécie de vila olímpica com pequenas casas feitas com material barato e um precário abastecimento de água e luz, que reavivou em mim a imagem física do grande conjunto habitacional pobre. Refavela foi estimulada por este reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o re para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a Refazenda, o anterior, de inspiração rural.

A esses fatores se somaram outros, locais: a mobilidade, por vezes difícil, outras vezes facilitada, dos negros cariocas na relação morro-asfalto e o movimento da juventude black-Rio, que se instalava propondo novos estilos de participação na questão da negritude no Brasil e no mundo, com mais atividade cultural e absorção de elementos do discurso e da luta negra da América e da África.

A dificuldade com que a história tem-se defrontado para proporcionar o verdadeiro resgate da cultura e da natureza dos negros, exatamente pela manutenção reiterada da sua condição paupérrima; a coisa da ‘miséria roupa de cetim’, da ‘Belíngia’ (Bélgica/Índia), esse binômio de disparidades – Refavela é sobre isso. A informação forte da música está nas duas primeiras estrofes; perto delas, o resto é ornamento.

A oposição temática entre as duas canções é óbvia, mas menos óbvia é a escolha dos tratamentos dados a uma e a outra. Se para Refazenda Gil escolhe um rítmo que é uma estilização de vários ritmos rurais, para Refavela (os comentários dele saíram daqui) ele faz uma fusão de levadas africanas com uma pitada de soul, antevendo ou prefigurando as batidas de tamborzão dos bailes funk cariocas. E, se a letra de Refazenda era elíptica e quase surrealista, a de Refavela é direta e afirmativa, quase didática. Neste sentido, soa muito mais ativista e política que a outra, com todas as mensagens cifradas que ela pudesse ocultar.

A relação entre Refazenda e Refavela não é apenas de oposição, mas, numa visão histórica, também é passagem – de um Brasil que na década de 70 passou a ter mais de 50% de sua população nas cidades. Mas também há um impasse entre ambas, algo que não se resolve por si. O que Refazenda tem de contemplação, de recolhimento, da leveza pelo arRefavela tem de ação, de pé no chão (inclusive para dançar), do passo com que caminha a geração; o que Refazenda tem de interior, yang, Refavela tem de exterior, yin, inclusive traçando uma ponte com o outro lado do Atlântico. Se fossem apenas duas, seriam um díptico, visões contrastantes e de algum modo complementares – mas de que modo? É o que faltava responder. Faltava uma canção para fazer a síntese.