Uma discussão fundamental no estudo da música popular brasileira é o processo pelo qual o samba se converteu de cultura popular para cultura nacional. O Hermano Vianna tem um bom livro sobre o assunto, O mistério do samba. Assunto complicado, em que acho que há dois ingredientes decisivos: o primeiro, a maneira que o samba encontrou de, literalmente, transformar a tristeza em alegria – ou, como resume com precisão o Vinicius no Samba da bênção:
É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coraçãoMas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não
ou ainda:
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não
Coração em desalinho – Monarco e Ratinho de Pilares, com Zeca Pagodinho
Este é, para mim, o samba por excelência, o melhor exemplo de que posso me lembrar. Não se trata de uma passagem da tristeza à alegria, como um consolo ou um conselho: “não sofra, comamos e bebamos porque a vida é breve”, nada disso. Trata-se de uma espécie de celebração da própria tristeza. Para um observador externo, não pode deixar de soar estranho e até ridículo a idéia de um coro cantando entusiasmado:
Agora
Uma enorme paixão me devora
Alegria partiu, foi embora
Não sei viver sem teu amor
Sozinho curto a minha dor!
Coração em desalinho é uma grande contradição entre letra e melodia. Se na primeira parte, esta segue quase reta, como em contrição, aos poucos a amplitude vai aumentando calculadamente, com a empolgação crescendo continuamente até escalar o agudo na última estrofe, quando ocorre o correspondente a um rompante de desespero, só que com o sinal invertido, tornado numa explosão de alegria! E como a profissão do humorista é exatamente enxergar este tipo de estranhamento e mostrá-lo no espelho distorcido do exagero, Casseta e Planeta, antes de serem domesticados pela TV fizeram exatamente isto em seu primeiro álbum, o LP Preto com um buraco no meio:
Tô tristão – Casseta e Planeta
Tô tristão é Coração em desalinho elevada à undécima potência e com uma pitada de escatologia. Mas há uma outra diferença: enquanto o samba do Monarco fala de dores de amores, a paródia (neste caso de um gênero, e não de uma composição particular) é um pouco mais generalista, narrando as desventuras de um pobre coitado.
E aí exatamente está o busílis, como diz um amigo meu, o pulo do gato, o segundo ingrediente de que falava: a maneira que o samba encontrou de generalizar este lamento que pode ser historicamente do banzo do escravo com saudades de sua terra, da perda, do desvalor, para toda situação e toda vida – outra vez como disse Vinicius, branco na poesia, mas negro no coração. (Claro que há aqui uma, digamos, generalização etnológica. A história de formação do samba é bem mais complicada e nem pode ser dita como unicamente negra, ou africana, óbvio. Mas também é impossível negar esta origem que passa pela chamada Roma Negra – Salvador e depois pela Praça Onze, onde foram morar os escravos libertos pela Abolição, onde morou Tia Ciata e onde mais tarde acabou se formando a primeira favela carioca.)
Universalizar esta dor que o formou a partir de uma cultura, torná-la passível de identificação tanto individualmente quanto por todo um povo multicultural por excelência; e depois, paradoxalmente, ou talvez dialeticamente, retrabalhar esta dor e transfigurá-la em puro prazer (e aqui cabem análises não somente sociológicas, mas psicanaliticas), numa nova afirmação de vida e de identidade: eis o mistério do samba.
P.S. O título do post saiu de Desde que o samba é samba, do Caetano e do Gil, que trata deste mesmo mistério.
[…] tumulto da sua recente intensificação, e que também era uma maneira de fixar sua identidade de cultura nacional. Ablusei […]
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Muito bom! Estudo psicanálise, e foi no samba que eu encontrei sua maior compreensão
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Pois é, Pedro, ainda vou ter estofo teórico em psicanálise para aprofundar este assunto, que eu acho fundamental para entender a formação da música brasileira atual. Seja sempre bem vindo por aqui.
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