Rock’n Roll, Rock Errou, Rock’n Raul

Polêmicas e desafios entre compositores se resolvem no ringue da canção. Quando esta regra é seguida, quem lucra é o público – que o digam Noel Rosa e Wilson Batista, que travaram a famosa disputa sobre as qualidades do bairro de Vila Isabel, gerando nada menos que nove sambas primorosos. Lobão e Caetano Veloso vem travando há anos um debate público que se desenvolve em alfinetadas, ironias, críticas e elogios mútuos, em entrevistas, declarações, e canções. O material todo, desde a sua origem e com atualizações recentes, pode ser encontrado aqui, com interpretações diferentes das minhas. Tratarei aqui basicamente das canções, que são o assunto do blog, o miolo do assunto, e, no fundo, o que fica.

E a origem da disputa nem está em nenhum dos dois, mas em Raul Seixas, que, baiano, sempre teve queixas dos tropicalistas. Em seu último álbum, Panela do Diabo, que foi lançado logo após sua morte, Raul fez uma de suas muitas canções em que passa sua trajetória em revista, ao mesmo tempo que consegue a proeza de fazer uma profissão de fé crítica no rock, uma contradição que não impede que a música tenha a naturalidade e o vigor que o próprio Raul, já doente na época, não tinha mais.

Rock’n roll – Raul Seixas e Marcelo Nova (letra aqui)

A letra de Rock’n roll é simples e direta, como Raul gostava. Destila mágoa contra a Bosta Nova e a inteligentsia universitária que defendia tradições e reprovava a imitação de Little Richard feita por ele. E, ao mesmo tempo que declara amor ao rock, tanto reconhece o mal feito a ele colocando-o em propaganda, fundo de comercial, quanto põe lado a lado Elvis Presley e Genival Lacerda, numa sacada genial. O som é puro rock dos anos 50, mas o próprio Raul já fizera Let me Sing, em que o forró de Genival irrompe no meio da música para dividir a cena em pé de igualdade com o rock. Uma declaração de amor, sim, com toda a lucidez que o amor pode trazer.

Em 2000, no álbum Noites do Norte, Caetano gravou…

Rock’n Raul – (letra aqui)

Rock’n Raul é ao mesmo tempo uma resposta e um comentário a Rock’n roll. Caetano já ia entrando na onda que o levou a gravar os álbuns e Zii e Zie, e Rock’n Raul soa como uma preparação teórica para o mergulho. (Aliás, excelente texto analisando este caminho aqui). Caetano não necessariamente contradiz Raul. Ao contrário, já de saída se iguala a ele ao confessar que em algum momento manifestou publicamente uma vontade fela-da-puta de ser americano. Vontade que considerou necessária num determinado momento que, fica óbvio, é o Tropicalismo, contraposição à passeata contra a guitarra elétrica e à Bossa Nova que realmente ia se estagnando (e aí Caetano compôs Saudosismo, que na gravação de Gal Costa termina com a frase-símbolo chega de saudade com recheio de guitarras furiosas, avisando que o tempo mudou). Caetano também ironiza a inteligentsia baiana que, em boa parte, gerou ele mesmo: nada de axé, Dodô e Curuzu, a verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul (celeiro do rock nacional).

Neste momento, Lobão entrou na polêmica. Ou melhor, a polêmica entre Lobão e Caetano é antiga. Ele entrou no assunto, ou se considerou chamado a ele pelo verso lobo bolo no meio de Rock’n Raul – mescla de referência pejorativa a um clássico da Bossa Nova e a ele próprio (ou seja, Caetano de certa forma atirava para os dois lados). Caetano mais tarde afirmou em sua coluna no jornal que a palavra bolo se referia à confusão (quase nunca boba ou desinteressante) que Lobão causa. Tarde demais.

Para o Mano Caetano – Lobão (letra aqui) – o vídeo começa com um trecho de entrevista, que não deixa de ser relacionado.

Lobão responde Rock’n Raul ponto por ponto crivando citações do próprio Caetano e da Bossa Nova, como quem usa a palavra do interlocutor contra ele. Chega ao requinte de mandar saudações de Lupicínio Rodrigues, autor gaúcho de sambas dor-de cotovelo, em resposta à referência de Caetano ao rock do Rio Grande do Sul. Com uma pegada ainda mais roqueira, numa escalada de peso de guitarra que acompanha o acirramento dos ânimos, reclama do trocadilho lobo bolo considerando-o depreciativo, e reage acusando Caetano de leniência com a figura retrógada de Antônio Carlos Magalhães, ex-governador baiano, no que seria uma contradição no seu discurso – acusação que Caetano rechaçou prontamente.

Mas o fundamental no torpedo de Lobão não são tanto as picuinhas com Caetano, mas talvez o que ele retoma e desenvolve de Raul Seixas. Se este atacara a tal inteligentsia baiana e Caetano já se diferenciara dela em parte em Rock’n Raul, Lobão traça a separação com mais precisão, nomeando um monte de zé ­mané que sob minha égide (de Caetano, cujo discurso Lobão assume ironicamente) se transformam em gênios sem quê nem porquê. O que significa, aí sim, acusar Caetano de leniência com esta turma.

E, se Raul traçara o paralelo entre Elvis e Genival Lacerda, Lobão não faz por menos, e coloca Raul e Jackson do Pandeiro lado a lado. E tem o seu próprio lance genial ao afirmar que a tropicália será sempre o nosso Sargent Pepper pós-baiano, pegando o bastão do próprio Caetano de Saudosismo e colocando dialeticamente a Bossa Nova (Bosta Nova do Raul) como coisa de americano, em oposição ao rock brasileiro! E no lugar do chega de saudade suave de Vinícius ou gritado de Gal Costa, Lobão grita chega de verdade, viva alguns enganos, preparando o terreno para a autocitação chave na polêmica: o rock errou.

A resposta de Lobão é quase um tratado, cheia de arestas e sutilezas. Termina com uma declaração de amor em formato bossanovístico (Lobão mais tarde em entrevista especificou tratar-se uma relação de ódio/amor, como se já não estivesse claro). Era de se esperar a réplica de Caetano, que veio recentemente:

Lobão tem razão – Caetano (letra aqui)

Lobão tem razão não é um rock. É um samba, mas não um samba tradicional, e sua levada já é em si uma sinalização e uma resposta a Lobão, mais do que apenas uma contemporização ou um desanuviar da tensão crescente nas canções anteriores. Assim como Incompatibilidade de Gênios, de João Bosco e Aldir Blanc, que Caetano incluiu no repertório da banda, Lobão tem razão tem uma batida reduzida de samba que se resume ao essencial e que, de tão elementar, achega-se ao rock por uma via torta, meio troncho, como disse Lobão.

E na letra, Caetano diz: o rock acertou quando você tocou com sua banda e tamborim na escola de samba. Em sua coluna no jornal, afirmou depois:

Para um velho como eu, não deixa de ser emocionante ver aonde o rock chegou. (…) Que, por sua vez, nasceu como um fenômeno comercial e de baixíssima reputação no meio dos anos 50.

Dizendo isso, Caetano se aproxima novamente de Raul. Ao mesmo tempo que promove o encontro entre a turma da tradição e o do rock em seu próprio trabalho, mas em sentido oposto do de Lobão: ele vindo do Oxalá, oxum dendê oxossi de não sei o quê e chegando ao rock; e Lobão partindo do rock para chegar ao samba. O confronto é natural, já que os pontos de vista são opostos, embora ambos no fundo percebam perfeitamente o que tem em comum: trafegam em sentidos opostos, mas trilham – ou passam – pelo mesmo caminho de fazer rock no Brasil, rock do Brasil – caminho aberto e calçado, ente outros, por Raul Seixas, brasileiro, roqueiro, baiano, que os une, separa e une novamente.

6 comentários em “Rock’n Roll, Rock Errou, Rock’n Raul

  1. Senhora analise! Parabens!

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  2. Pena que hoje o Lobão está totalmente sem rumo.

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  3. Juan Gonzales disse:

    Se chutar os ovos de Caetano quebra, no mínimo, um dente teu. Puxa saco…

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  4. cristina fernandes disse:

    Obrigada, Villaça.

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