O Sobre a Canção está no IMMuB

Amigos, aviso e comunico que tornei-me colunista do Instituto Memória Musical Brasileira, e passarei a publicar todo mês por lá a análise de um artista, um álbum, uma canção nova ou antiga, para ser ouvida com ouvidos novos. Ou seja, basicamente o que eu venho fazendo por aqui há anos, mas agora num site respeitável e para um novo público que, espero, inclua o antigo…

Os artigos serão republicados aqui três meses depois de lá, para manter o blog atualizado com todos os meus escritos. Mas evidentemente, ninguém precisa esperar três meses. Aqui você encontra todos os artigos publicados lá. E além disso, estão todos convidados a conhecer o ótimo acervo do IMMuB e os demais conteúdos veiculados por ele. Abraços e vamos nessa.

Dois sambas sobre o fim do mundo

Dia 4 de julho deste ano (2023), o planeta Terra bateu o recorde de temperatura média – foi o dia mais quente da história considerada a medição global. O recorde batido era recente, na verdade do dia anterior, 3 de julho. O ano de 2023, antes mesmo de terminar, já é o mais quente em 125 mil anos, segundo pesquisadores do clima. A média do mês de outubro foi 0,85º acima da média do mesmo mês entre 1991 e 2020 e 0,4º acima de 2019.

As causas para isso remontam à Revolução Industrial, quando motores a explosão passaram e liberar uma quantidade crescente de calor, aliada o desmatamento e à poluição. Às emissões de carbono e criação do efeito estufa somou-se em 2023 os fenômenos do El Niño e da La Niña, de aquecimento ainda maior do Oceano Pacífico. Mas o fato é que o aquecimento global se tornou inegável até mesmo para muitos de seus detratores e negacionistas ao longo do ano.

Não é de hoje que ambientalistas e pesquisadores apontam para o que está acontecendo e alertam que podemos estar tomando um caminho sem volta. Porém, ainda antes deles, profecias e tradições religiosas listavam eventos de fim do mundo, em geral cataclismas violentos (muitos dos quais, se olharmos com atenção, podem estar acontecendo atualmente, apenas em câmera lenta), incluindo a tradição cristã. O último livro da Bíblia, o Apocalipse de João, é a descrição do Fim dos Tempos, em que a Terra é destruída para renascer, os ímpios são castigados e os justos recompensados.

Mas e o nosso tema canção? Ora, não faltam os que cantaram tanto a questão ecológica quanto a escatológica, às vezes simultaneamente, e não falo aqui das vertentes confessionais. Dois sambas da melhor cepa da música brasileira são dedicados a estes eventos, e até certo ponto um deles pode ser considerado um desenvolvimento do outro, tanto tematica quanto musicalmente. Vamos a eles.

Nelson Cavaquinho gravou seu clássico Juízo Final no álbum com seu próprio nome, em 1973. Dois anos depois, Clara Nunes o regravou em seu álbum Claridade.

A abertura de Juízo Final é uma das mais retumbantes da música brasileira e provavelmente universal. A carga de dramaticidade contida em suas duas primeiras palavras, duas primeiras notas e dois primeiros acordes é difícil de ser superada. O verso O Sol é cantado com um salto oitava acima, com a nota aguda estendida amplificando seu brilho e poder o máximo possível. E então, do acorde menor inicial da tonalidade, se passa bruscamente ao acorde do segundo tom bemol maior com sétima, totalmente fora da tonalidade – na verdade uma dominante substituta que, por sua vez, conduzirá à dominante natural do tom. Por exemplo, Am, Bb7, E7.

O surgimento deste segundo acorde é muito inesperado (e normalmente ainda é apresentado com uma convenção sincopada que o antecipa ligeiramente ao tempo forte). A dissonância apresentada de chofre, sem nenhuma preparação, dá ao ouvinte a sensação de algo terrível iminente, em consonância perfeita com a letra. Entretanto, não se trata apenas de um acorde fora da tonalidade ou uma dissonância comum. O efeito tremendo deste segundo acorde se deve ao fato de ele manter, em relação à dominante, o intervalo mais dissonante da música ocidental, a quarta aumentada.

O intervalo de quarta aumentada (ou trítono) foi chamado em tempos medievais de diabolus in musica e terminantemente proibido antes do estabelecimento definitivo da tonalidade como a conhecemos hoje. Não por causas religiosas, mas sonoras mesmo: Os comprimentos de onda de sons separados por este intervalo quase nunca coincidem, o que causa enorme estranheza ao ouvido. No caso de Juízo Final, um acorde “natural” para a condução harmônica teria como baixo a nota Si, nunca a de Si Bemol. O acorde de Bb, meio tom abaixo, é exatamente o mais dissonante possível em relação ao caminho esperado, já que todas as suas notas estão igualmente deslocadas. É como se um terremoto tivesse descarrilhado a harmonia logo de saída. É assim que Juízo Final se inicia, com um ovo de Colombo de efeito espetacular.

Nelson assume o discurso de um profeta do Antigo Testamento – ou do apóstolo João, autor do Apocalipse. O que não deixa de estar em consonância com sua obra. Nelson é um dos autores mais trágicos do cancioneiro nacional, ao lado de Lupicínio Rodrigues e Adoniran Barbosa, todos tratando em seus sambas da tragédia do cotidiano. Em Juízo Final, ele apenas amplia sua noção de um destino inexorável, de casos particulares para toda a existência. A letra de Juízo Final é sucinta, mantendo em sua segunda parte a grandiloquência nas notas agudas. Nela, poder-se-ia dizer, está resumida a Lei e os Profetas, e Nelson ainda se permite uma discreta menção a uma expressão usada por Jesus, aquele que tiver olhos de ver, veja nos versos finais quero ter olhos pra ver / a maldade desaparecer.

Passemos agora ao segundo samba sobre o Fim do Mundo: As Forças da Natureza, de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro. Foi composto e gravado pouco depois de Juízo Final, mas guarda diferenças com ele. Porém, mais impressionantes que as diferenças são as semelhanças. Este foi gravado primeiro por Clara Nunes em 1977 e acabou dando nome ao álbum.

E João, por sua vez, o gravou no álbum Vida Boêmia, em 1978.

As Forças da Natureza é, na prática, um desenvolvimento do tema de Juízo Final. Porém, acrescentando uma perspectiva, digamos, proto-ecológica ao entrar em mais detalhes sobre os acontecimentos, num espírito que é tanto relacionado com o Apocalipse cristão quanto a descrição de uma revolta da natureza contra quem a maltratou tanto. Em relação ao livro bíblico, possível até mesmo traçar algumas correspondências de texto:

Uma chuva de prata do céu vai descer / E as estrelas do céu caíram sobre a terra como figos verdes caem da figueira quando sacudidos por um vento forte. (Ap. 6, 13)

Quando o Sol se derramar em toda a sua essência / O quarto anjo derramou a sua taça no sol, e foi dado poder ao sol para queimar os homens com fogo. (Ap. 17,8)

Assim como tematicamente, As Forças da Natureza também desenvolverá mais os temas harmônicos e melódicos do que o samba de Nelson. Para começar, tem uma forma mais extensa e muito diversa das tradicionais primeira e segunda partes. Ao contrário, pode ser dividido aproximadamente em três partes e uma coda, com poucas repetições melódicas, mesmo quando a harmonia é a mesma. E mesmo esta harmonia vai seguir caminhos e utilizar recursos mais próximos da harmonia funcional, sem quebras radicais como o segundo acorde de Juízo Final, mas se permitindo certas sutilezas como fazer o tom variar entre menor e seu relativo maior (Por exemplo, Lá menor e Dó maior), conseguindo com isso mudanças de clima que vão do mais introspectivo ao mais exaltado.

O músico e pesquisador Luís Filipe de Lima, em seu livro Para Ouvir o Samba, estabelece critérios cuidadosos para descrever cada um de seus subgêneros, do samba amaxixado ao samba-enredo, da Bossa-Nova (sim, está incluída) ao pagode romântico da década de 1990. Ele classifica ambos os sambas em pauta na categoria pós-MPB (capítulo 14.1), que engloba tanto a produção feita por sambistas que se apropriou de algumas conquistas formais da MPB quanto a de sambistas da velha guarda como Cartola e o próprio Nelson, que foram redescobertas e revalorizadas à luz dessas conquistas. Neste sentido, é fundamental perceber que uma eventual maior complexidade de uma das composições não significa absolutamente que haja algum tipo de superioridade estética. Na verdade, o uso das fórmulas tradicionais do samba e da MPB poderia, ao contrário servir para tornar a canção banal e medíocre… Por outro lado, ao colocar ambas lado a lado, por mais que estejam próximas em termos históricos (e efetivamente as separam poucos anos), fica evidente a diferença entre elas: Nelson faz um samba nos moldes da tradição (o que inclui quebrá-la genialmente quando lhe convém), do tipo que alimentou a MPB; João e Paulo César Pinheiro fazem um samba que por sua vez se alimenta da estilização formal da MPB. Há uma continuidade entre eles que não é apenas estética, mas também histórica.

E isto ficará evidente ao analisarmos As Forças da Natureza e notarmos agora as semelhanças entre ele e Juízo Final – semelhanças que são também diferenças na forma de percorrerem os mesmos caminhos. As Forças da Natureza também se inicia com uma referência ao Sol – e com um salto de oitava! As duas primeiras notas de ambas as canções são exatamente as mesmas. Porém, enquanto no samba de Nelson a segunda nota se estende causticante na palavra Sol, no de João o Sol só surge na terceira nota, que desce suavemente um tom: Quan-do_o Sol… Assim, o Sol tem sua potência matizada – ao menos inicialmente. Até pode-se dizer que o movimento melódico vai reforçar o efeito da palavra derramar, logo adiante, fazendo com o que a luz solar se propague de forma menos direta.

Mas há um detalhe mais difícil de detectar que une as duas composições, justamente o uso do trítono, o intervalo de quarta aumentada, o diabolus in musica, na cadência harmônica. Assim como Juízo Final, As Forças da Natureza também tem dois acordes encadeados com esta distância entre eles. Mas outra vez, assim como no caso da melodia inicial, este encadeamento acontece de uma forma mais suave, tendo seu impacto reduzido. Aqui, trata-se da passagem que acompanha o verso Desafiando o poder da ciência (e de novo no verso Levar consigo o pó dos nossos dias). O que ocorre é que, quando oscila entre os tons de lá menor e dó maior, há acordes comuns que servem para fazer a passagem entre eles. Mas há também acordes de empréstimo que são úteis. Assim, a sequência harmônica C / F7 / B7 / E7 / Am faz a passagem de uma tonalidade para outra, mas a distância entre o Fá e o Si é justamente a que causa estranhamento no ouvido (se o leitor não tem conhecimento de harmonia, basta ouvir a passagem para perceber do que falo).

Isso se dá porque na verdade o acorde de B7 não é de nenhuma das duas tonalidades, e sim um empréstimo – a dominante da dominante do tom menor. Mas sua presença aí torna a melodia muito mais interessante – a curva na palavra ciência e depois em os dias chama imediatamente a atenção do ouvido, porém sem causar o choque do início de Juízo Final. Trata-se do mesmo intervalo, com função similar, porém usado de forma lateral na sequência da harmonia, de modo a reduzir seu impacto e torná-lo de um verdadeiro cataclisma, em uma coloração a mais, um diabolus domado afinal, ao menos in musica.

As Forças da Natureza reconta Juízo Final a seu modo, seguindo seus passos mas acrescentando em seu enredo uma visão do samba que já passara pela MPB – a mesma que escutava avidamente e reverenciava Nelson, assim como João Nogueira também fazia, é claro. Quando compostas e gravadas na década de 1970, a humanidade se considerava longe de qualquer consequência de suas ações destrutivas no planeta: aquecimento global, pandemias, elevação do nível do mar, tudo isso era matéria de ficção científica ou fanáticos religiosos. Hoje são realidade, e não dá para não pensar que Nelson Cavaquinho, João Nogueira e Paulo César Pinheiro avisaram. Para nosso consolo, seus sambas proféticos, ao final, descrevem um mundo onde o mal terá sido banido. Se Nelson não menciona a sobrevivência humana (ou o faz, sutilmente – ao menos a dele próprio), João e Paulo o fazem, relatando o desaparecimento das armas e dos homens de mal – possivelmente os que se denominam de bem. Só nos resta dizer amém.

A última faixa do último álbum dos Racionais

Pouco antes da virada do milênio, o rap lançou um repto à música popular brasileira. Desafiou-a a incluir em si as manifestações urbanas da periferia como fizera há décadas com as rurais, mas desta vez sem falar por elas, sem tomá-las e estilizá-las como a MPB clássica fez. Ou talvez seja mais apropriado dizer que o rap significou esta periferia desistindo de esperar por esta representação feita por outrem e tomando para si a tarefa de fazê-lo (se é que algum dia ela esperou por isso, desde a casa da Tia Ciata). Um terremoto que era tanto estético quanto ético – tanto na quebra radical da forma canção quanto na emersão do discurso do marginalizado pela sua própria voz, consubstanciado em seu exemplo máximo, o Diário de um Detento, de autoria de Mano Brown a partir dos escritos autobiográficos do presidiário Josemir Santos, o Jocemir. E no epicentro desta revolução, os Racionais MCs, com sua gigantesca carga de representatividade aliada a uma visão clara do que queriam: mostrar ao mundo a sua realidade, à sua maneira.

E então 15 anos se passaram, ou mais. E em 2014 os Racionais lançam seu último álbum (até o dia em que este artigo é escrito), Cores e Valores. E o mundo é outro, e o rap e a música brasileira são outros também. A sigla MPB faz cada vez menos sentido ou é aplicável a um nicho cada vez mais específico; a sintaxe do rap vai sendo assimilada aos poucos dentro do formato da canção, e vice-versa: aproximações do rap com o samba e outros estilos musicais se tornam frequentes.

Mas não só: as mudanças econômicas de um Brasil que sediava Olimpíada e Copa do Mundo enquanto distribuía renda e decolava na capa da revista The Economist também implicavam em mudanças no discurso da periferia. A linha de metrô chegara no Capão Redondo, comunidade de onde os Racionais se originaram. E paralelamente a isso, o sucesso chegou para muitos rappers, com apoio de gravadoras, dinheiro, possibilidade de se mudar para bairros com mais infraestrutura… tudo parecia ir numa nova direção. Mal sabíamos nós… os Racionais também não sabiam. Ao menos racionalmente, se me permitem o trocadilho. Mas sua música talvez já soubesse.

O álbum Cores e valores é um retrato acurado – não uma descrição objetiva – deste momento, e representa uma ruptura na ruptura que foi o rap, ou ao menos no que foi a obra dos Racionais até ali. E, para avaliar estas transformações, podemos partir justamente da mais marcante: Eles abandonam quase totalmente as narrativas lineares (pontuadas por máximas que se tornaram muitas vezes guias éticos para seu público) e de compreensão mais imediata (embora prenhes de segundas e terceiras possibilidades), em prol de um discurso muito mais difuso e que se distancia da espontaneidade típica do improviso. Não se trata de um aumento de elaboração, mas sim de levar esta elaboração num novo sentido.

E isto também se reflete numa enorme condensação deste discurso. Ao invés das faixas de mais de 10 minutos contando a saga pessoal de um habitante da periferia, muitas vezes sem nome, e que provocavam a identificação direta de seu público original (e o espanto e a admiração de outros e outros públicos), reflexões em sua maior parte indiretas, como que partindo do princípio de que o ouvinte, após todos estes anos, já sabe do que eles estão falando. Por outro lado, eles não estão falando das mesmas coisas, e sim dos novos dilemas que se apresentaram. Tudo isso fez com que a recepção ao álbum fosse menos entusiástica do que seria de esperar. Os Racionais se recusaram a apresentar mais do mesmo, e em vez disso dedicaram-se a um balanço sintético não apenas de sua trajetória, mas das perspectivas do rap e – por que não? do Brasil.

O pesquisador Acauam Oliveira, no excelente artigo em que aborda o álbum, defende que o álbum todo é, de algum modo, sobre a questão: o rap venceu. E agora? O discurso da periferia foi aceito (ou se impôs), o sucesso comercial veio para muitos, acompanhado de dinheiro, a possibilidade de sair da periferia, e também as contradições inerentes a esta condição, pois, como eles mesmos afirmam em Negro Drama, O dinheiro tira um homem da miséria, mas não pode arrancar de dentro dele a favela.

Acauam divide em quatro partes seus 32 minutos de duração: as quatro primeiras faixas são praticamente emendadas entre si, nenhuma delas com mais de um minuto e meio, com os versos Somos o que somos / cores e valores promovendo sua unificação ao ser repetido em todas como um leitmotif que se anuncia para o álbum inteiro; a segunda parte, iniciada com Eu te disse, passa das elucubrações apresentadas na primeira para situações mais concretas em que conflitos éticos são decisivos. Acauam analisa:

Nas canções dessa segunda parte, os rappers ora advertem, ora são advertidos por seus parceiros sobre aquilo que aprenderam a partir de um código de ética comum, fundamental para que a ascensão social não se converta em tragédia.

Particularmente, o contraste entre Eu compro e A escolha que eu fiz é simbólica: na primeira, a nova possibilidade de acesso a bens de consumo não impede que o racismo se manifeste; na segunda, fica claro que esta possibilidade vem para alguns escolhidos, enquanto para outros situação mudou pouco. Como lidar com esta disparidade sendo você o beneficiado? Como lidar com isto sendo você o porta-voz dos que não ascenderam com você? Como se manter ligado a suas origens e continuar pleiteando a ascensão da coletividade e não de apenas seus expoentes? Os Racionais expõem estes impasses sem medo de com isso se exporem também – e sem a pretensão de apresentarem respostas fáceis.

A terceira parte se inicia com A Praça e vai constituir uma revisão da história do grupo. Esta faixa se estrutura a partir de uma colagem de noticiários sobre a confusão em um show na Praça da Sé em 2007, em que os Racionais foram acusados de incitar e violência e a polícia cumpriu seu papel tradicional de promover a violência. Em seguida, Mano Brown e Edy Rock rememoram os momentos em que os Racionais se formavam e eles próprios tinham suas formações, entre as décadas de 1980 e 90. Particularmente, Brown acrescenta uma dose de ironia em suas lembranças, de duas formas: no próprio título/refrão Quanto vale o show (que na faixa é sampleado da fala do apresentador Silvio Santos), tornando por tabela os Racionais em uma espécie de calouros de programa de auditório e retratando a mercantilização da música ao mesmo tempo em que conta como chegou a ela; e a base sonora, por sua vez sampleada da trilha sonora do filme Rocky, um lutador, num crescente empolgante que conduziria a um final apoteótico de vencedor; e no entanto, os versos finais, num terrível contraste, são:

Corpo negro semi-nu encontrado no lixão em São Paulo
A última a abolir a escravidão
Dezembro sangrento, SP, mundo cão promete
Nuvens e valas, chuvas de balas em ’87

Com efeito devastador.

E finalmente, chegamos à última parte, formada por Coração Barrabaz e a faixa final, Eu te proponho. E nestas faixas, os Racionais fazem algo inédito em sua carreira, que é tratar do tema amoroso. A primeira, um processo dolorido de separação (como quase todos); a segunda, algo mais complexo.

Eu te proponho é, simultaneamente, uma canção de amor e um resumo do álbum Cores e Valores, da dicotomia essencial do álbum: é possível ser feliz? Não se trata de uma pergunta genérica, mas aplicada às circunstâncias descritas até aqui, pessoais, coletivas, políticas, econômicas, éticas, estéticas. Eu te proponho é a descrição de uma promessa de felicidade – uso propositalmente a expressão escolhida por Lorenzo Mammi para se referir à Bossa-Nova e o projeto de país inerente a ela – que parece se apresentar novamente, e o temor fundado de que esta se mostre uma farsa e seja novamente frustrada.

Eu te proponho é uma música fraturada. Traz duas partes bastante distintas: a primeira tem como base o sampler de Liquid Love do vibrafonista e arranjador de jazz e funk Roy Avers.

Sobre esta base, Mano desfila inúmeras citações de canções clássicas da música brasileira, guiado pelo refrão Vamos fugir desse lugar, baby, emprestado do reaggae de Gilberto Gil de 1984. Além deste, o título da canção traz a lembrança de Proposta, de Roberto e Erasmo Carlos, de seu álbum de 1973 – logo adiante, Brown também citará Além do Horizonte, do de 1975. E mais Na sombra de uma árvore, de Hyldon (o verso Larga de ser boba e vem, que Brown termina com o verbo ver e Hyldon com a palavra comigo), de 1975; Fullgás, de Marina e Antônio Cícero, de 1984; duas de Cazuza: Exagerado, de seu primeiro álbum solo em 1985, e Pro dia nascer feliz, dele com Frejat, do segundo álbum do Barão Vermelho, de 1983. E ainda o verso consagrado do Soneto de Fidelidade, de Vinícius de Morais (eterno enquanto dure).

Esta profusão de menções a canções não é algo trivial – ao contrário, é bastante incomum na obra dos Racionais. Para se ter uma ideia, neste álbum, antes destas há apenas outras três citações do tipo, ambas em canções da segunda metade: Em Quanto vale o show, Brown cita Esquinas, de Djavan (mencionado na letra logo depois: Só eu sei os desertos que eu cruzei), e o verso Malandro é malandro mesmo ressoa Bezerra da Silva, também mencionado logo depois. E em Coração Barrabaz o citado é Lupicinio Rodrigues, de forma impressionante: Esses pobres monstros (em vez de moços), se soubessem o que eu sei. Diante de tudo o que se vê na última faixa, estas citações soam quase como uma preparação. Assim como pode-se dizer que todo o álbum Cores e valores consiste numa preparação para, em seu encerramento, tratar da relação homem/mulher como algo positivo, como nota Acauam Oliveira:

Pela primeira vez em um disco dos Racionais o amor entre homem e mulher aparece explicitamente como lugar de confiança, e não de traição – certamente em decorrência do avanço das conquistas das mulheres por um espaço cada vez maior na cena. A ambiguidade e a incerteza do corpo feminino, antes representado como o lugar de perigo extremo a ser controlado – o espaço inominável do desejo – aparece enquanto aposta positiva (pela primeira vez surgem versos como “Eu acredito em ti”, referindo-se a uma mulher). Pode-se dizer que esse estado de fruição que libera o sujeito do estado de vigilância constante é um dado novo no conjunto da obra dos Racionais.

E aqui coaduna-se a retomada da temática amorosa, a mais básica da canção popular desde os trovadores medievais, com as alusões a tantas canções daquele que foi o corpo principal na nossa música popular – tanto da chamada MPB da década de 1970 quanto do repertório pop/rock dos anos 1980. Sem dúvida as escolhas de Brown se dão por rememoração da juventude, e aí temos a ligação de Eu te proponho com as imediatamente anteriores do álbum. Mas, mais que tudo, todas as citações desta primeira parte têm uma temática em comum: a busca de felicidade, o idílio, a criação de uma alternativa a uma realidade excruciante, de um lugar onde seja possível um homem e uma mulher se amarem integralmente e viverem. A velha promessa de felicidade: abre seus braços e a gente faz um país.

Porém, ai, porém, idílio é cortado, o coito interrompido. Abruptamente, aos dois minutos e três segundos, a base sensual e funkeada é substituída pelo sample do muito mais soturno Nautilus, do tecladista Bob James.

A partir daí, o tom do discurso muda, tornando-se carregado de tensão, como que desenvolvendo os versos da primeira parte E se moiar? / E se o juri ter provas contra nós? O que era a ida a um lugar de repouso e paz ganha contornos de uma perseguição policial (Você no toque e eu com a Glock na mão, já era ou Os Federais dão um zoom na 381 verá): o mundo cão está logo ali, no encalço. Não, a conciliação não é possível. Ainda há uma citação nesta segunda parte, mas de natureza diversa: são os versos de Marvin Gaye There ain’t no mountain high enough / Ain’t no valley low enough traduzidos: Não há morro tão alto, vale tão fundo. Não mais a relação com o corpo principal da música brasileira, mas o retorno a referências da música negra mundial.

Eu te proponho é uma espécie de corolário de Cores e Valores ao resumir em si as contradições da ascensão e consolidação do rap, mas também das mudanças experimentadas pelo Brasil neste período, em que mudanças econômicas não impediram desigualdades e injustiças. Em que as realizações de um período (os governos do PT, Lula em particular) chegaram a dar a impressão de que o país do futuro se tornaria o país do presente. E que parece pressentir o que viria, ou perceber as inconsistências deste cenário. Já em 2018, no último comício da campanha de Fernando Haddad para presidente, Brown fez um discurso duro, que chegou a ser vaiado por antever a possibilidade de derrota – que efetivamente veio. A fala de Brown aponta a insuficiência do que foi feito e a perspectiva do desastre:

Se não está conseguindo falar a língua do povo vai perder mesmo. Falar bem do PT para a torcida do PT é fácil. Tem uma multidão que não está aqui que deveria ser conquistada. (…) O partido do povo tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta para a base e vai procurar saber.

Se Cores e valores é o retrato de um projeto de país prestes a se esboroar mais uma vez, Eu te proponho reconta esta história sinteticamente. E, por sua vez, o sampler escolhido para encerrar a a canção e o álbum faz a síntese da síntese. Falo de Castiçal, do seu primeiro álbum, de 1973, Apresentamos nosso Cassiano.

Cassiano, o grande mestre do soul brasileiro, na época ainda vivo mas quase esquecido – faleceu em 2021 – é uma escolha novamente muito diversa da feitas na primeira parte da música, uma escolha do mesmo naipe da de Jorge da Capadócia, de Jorge Ben, para abrir o álbum Sobrevivendo no Inferno. Castiçal é uma canção de amor prolixa e de discurso algo desconexo, sofrida mas indubitavelmente otimista. Cassiano canta os versos da primeira estrofe de sua canção:

Algo me diz que amanhã a coisa irá mudar
Só mesmo um grande amor nos faz ter capa-

E então é interrompido no meio de uma palavra, bruscamente, como brusco foi o corte no meio de Eu te proponho. A interrupção é violenta, a previsão de mudança não se concretiza.

Este é o anticlimático e algo desconcertante fim de Cores e valores. E então pode-se compreender melhor a recepção modesta que teve, haja vista a enorme expectativa quanto a seu lançamento. A mensagem do álbum é indigesta: rompe com a fórmula estética dos álbuns anteriores, sem por isso aderir claramente a outra fórmula; percebe as mudanças gigantescas pelo que o país passou, mas sem aderir cegamente a elas, antes enxergando com clareza seus limites e contradições; e finalmente, com a clarividência que as obras de arte antenadas com seu tempo têm, antecipa-se à tempestade que se avizinhava ao mesmo tempo refletindo sobre o papel do rap em tudo isso – nas palavras de Acauam, sobre o que se perdeu e ganhou pelo caminho. E sobre o muito que ainda havia para ganhar e perder. Em 2014, mas também hoje.

O voo da mosca de Luís Capucho

Há muitos anos os engenheiros aeroespaciais estudam as moscas domésticas. O voo aparentemente descontrolado mas incrivelmente preciso delas, capaz de se desviar de obstáculos com extrema agilidade (experimente atingir uma no ar) se deve a um órgão chamado balancim, que os engenheiros tentam reproduzir em aviões, dois pequenos bastões embaixo das asas que se movimentam de forma a contrabalançar forças externas como rajadas de vento e aumentar o equilíbrio nas curvas. Com eles, o voo da mosca traça com perfeita segurança linhas sinuosas as mais imprevisíveis.

Guardemos esta informação e passemos ao tema da canção. O compositor e pesquisador Luiz Tatit é defensor da tese de que a melodia da canção popular se origina das variações naturais da fala, estilizadas em notas musicais, e que uma canção será tão mais bem sucedida artisticamente quanto mais conseguir conciliar esta origem na fala com a estruturação formal estrófica. Tatit demonstra sua tese tanto em termos teóricos, organizando um método de análise melódica e aplicando-o a numerosas peças do nosso cancioneiro, quanto práticos, em seu trabalho de compositor desde o Grupo Rumo, caracterizado por estar sempre no limiar entre canto e fala, sem que suas canções deixem de ter refrões e repetições.

Guardemos mais esta informação para nos aproximarmos do tema deste artigo, Luís Capucho. Para isso, torna-se indispensável uma curta informação biográfica. Capucho despontou junto a uma turma de músicos cariocas na década de 1990, como Pedro Luis, Mathilda Kovak, Arícia Mess e Suely Mesquita. Porém, antes mesmo de gravar seu primeiro álbum, Luís teve um sério problema de saúde. Esteve em coma devido a uma neurotoxoplasmose e, ao se recuperar, permaneceu com dificuldades motoras que afetaram tanto seus movimentos quanto sua fala. Capucho foi obrigado a reinventar sua forma de tocar o violão que lhe acompanhava e também seu canto.

E guardemos esta última informação para enfim tratarmos do tema real deste artigo, a música de Luís Capucho e seu formato cancional muito particular. As canções de Capucho não seguem à risca a teoria (e prática) de Tatit, antes se relacionam com a voz falada de uma outra forma igualmente forte, mas talvez mais sutil. Se Tatit pensa na relação fala/melodia fonema a fonema, com as variações naturais da voz se desdobrando nas notas, Capucho faz esta passagem de forma mais ampla, com curvas mais suaves, no desenvolvimento das frases e articulações ente elas. Se em Tatit (e na canção tradicional que ele analisa) a irregularidades da fala se convertem em curvas regulares na melodia, em Capucho a regularidade é a do voo da mosca, inesperada, imprevisível, mas equilibrada por um sistema de contrapesos internos invisível ao ouvinte. A forma melódica de Capucho não acompanha a voz, mas o divagar.

Como resultado, as canções de Capucho mal têm repetições de melodia – que dirá refrões. Têm, sim, motivos melódicos – um motivo é uma sequência de poucas notas, três, quatro, a ser desenvolvida (o exemplo mais famoso provavelmente são as quatro notas iniciais da Quinta Sinfonia de Beethoven), diferentemente de um tema composto por mais notas e mais desenvolvido (e frequentemente contendo um ou mais motivos em si). Capucho usa motivos diversos em suas canções, o que dá a elas suas faces particulares, mas dificilmente encontraremos nelas estrofes com a mesma melodia e letras diferentes, assim como numa conversa não se usa a mesma entonação para dizer coisas diferentes. A melodia de Capucho desenvolve o assunto tanto quanto a letra, com a reiteração mínima necessária.

Praticamente todas as composições do Capucho poderiam servir de exemplo aqui. Tomemos a que possivelmente é a mais conhecida de sua autoria, Maluca. Ela foi gravada em 2003 em seu primeiro álbum, Lua Singela. Entretanto, alguns anos depois Capucho lançou o álbum Antigo, que é o registro de um show feito em 1995 no Café Laranjeiras, no Rio de Janeiro, ainda antes de suas questões de saúde. Neste caso, comecemos por este.

E na escuta se percebe um outro procedimento que, além da melodia sem repetição, dá às canções de Capucho esta feição irregular da fala: a quebra da quadratura de compassos.

Explico. Embora o tempo musical possa ter diversas contagens – de dois em dois, três em três, quatro, e mesmo compassos compostos como de três tempos repetidos, ou os chamados irregulares como de cinco ou sete tempos, a contagem de compassos é surpreendentemente mais rígida, especialmente na canção popular. Uma frase musical será composta com enorme frequência por um número par ou, mais precisamente, por quatro compassos ou um múltiplo dele. Uma estrofe terá oito ou dezesseis compassos, e assim por diante, e portanto toda a composição será dividida nestes subgrupos, cada um com sua própria sensação de completude. O desenvolvimento harmônico-melódico se dá dentro desta perspectiva, obedecendo a esta estrutura de quatro em quatro que seguimos quase instintivamente na escuta, acostumados que estamos com séculos desta regragem.

Ocorre que a língua falada não se importa nem um pouco com os múltiplos de quatro. E, se a canção tradicional, ao fazer a passagem da fala para o canto a cada som, faz também sua transposição para os ciclos de quatro, Capucho por sua vez, ao fazer esta passagem pela via do discurso, se permite quebrar a quadratura inúmeras vezes. Não se trata de compassos compostos ou de tamanhos diferentes (às vezes também, mas não é o recurso principal). Em vez disso, seu ciclo de discurso, que seria correspondente a uma estrofe, poderá ter três, cinco, sete compassos, à vontade, conforme seja necessário para completar a sentença e a ideia. Isto dará a suas composições feições irregulares, tornando-as mesmo desafiadoras para cantores e acompanhantes, que precisam procurar ou mesmo criar alguma regularidade para poder interpretá-las.

Foi isso que fez Cassia Eller ao incluir Maluca no repertório de seu álbum Com você.. meu mundo estaria completo, em 1999.

Cassia, para sua versão, baseou-se na gravação da apresentação de Capucho em uma fita cassete que lhe chegou às mãos. É nítido o seu empenho em explicitar em Maluca uma forma próxima da tradição cancional, ainda que Cassia fosse uma intérprete pouco afeita a convenções – ou não teria escolhido esta canção. As pausas entre as frases se tornam mais regulares que na voz de Capucho, assim como as divisões rítmicas da voz são mais marcadas. Além disso, Cassia torna o encerramento da música em uma espécie de refrão, mesmo que iniciado a partir da repetição do fim de uma frase. O verso começa com Era grande o barulho da chuva, e em seguida:

…da chuva
Eu fiquei maluca
Eu fiquei maluca

A repetição deste trecho, que Capucho não fizera, cria um ciclo de 16 tempos que se repete para encerrar a canção. Com isto, e também com as diferenças sutis de tratamento vocal da melodia, Cassia consegue tornar a escuta de Maluca mais familiar ao ouvinte, sem deixar de lado suas características essenciais. Ademais, ela segue o sentido interpretativo suave de Capucho e que é também o tom geral do álbum Com você…, em que ela surpreendeu o público trocando sua performance rascante e mesmo gritada de roqueira por interpretações mais tranquilas – e um repertório adequado à mudança.

E só em 2003, Capucho apresenta sua versão da música (uma vez que o álbum Antigo foi lançado mais tarde).

No álbum Poema Maldito, de 2014, antes de cantar a canção Formigueiro, Capucho diz:

Essa é uma música que eu fiz muito antigamente. Então cantar essas músicas que eu fiz muito antigamente com essa voz de agora é muito estranho para mim. Mas eu quis fazer isso.

Na comparação com a versão de 1995 de Maluca, é possível perceber algumas das adaptações que Capucho foi obrigado a fazer em seu estilo de tocar tanto quanto em sua voz. Esta se tornou mais gutural. As dificuldades de coordenação o levaram a trocar o dedilhado pelo rasgueio na mão direita, e passou a ser necessário um esforço para pronunciar as palavras de forma inteligível. Isto não deixa de transparecer na interpretação, mas, curiosamente, não a prejudica. É claro, tudo se afasta do padrão de beleza e suavidade, mas ao mesmo tempo acrescenta como que um colorido novo à canção. Por outro lado, tanto a mudança vocal quanto o ritmo mais marcado no violão passam a contrastar mais fortemente com a fluidez estrutural da composição, e Capucho adota a repetição dos últimos versos feita por Cassia, com a volta da quadratura.

No comentário que faz ao álbum Lua Singela em sua página, Luís Capucho diz:

De meu ponto de vista, tudo continua delicado e tradicional, mas porque, com os dois ou três acordes que “espanco” no violão e com minha voz meio de lava com que faço a melodia, ficou a ideia de um Luís Capucho grunge, underground, maldito e tudo. Mas repito que sou um bom rapaz e continuo a fazer MPB.

Depois de toda a análise feita acima, afirmar que o que Capucho faz está na tradição da MPB se torna um pouco mais difícil. Mas isto não significa que também não traga nela algo do gesto cancional desenvolvido por tantos anos. Assim, ao enumerar os lugares onde distribui os botões de rosa, a divisão rítmica de Maluca se acelera em notas de tessitura média, caracterizando a ação repetida pela repetição de notas próximas. E ao final da frase, o verso Da chuva se lança para o ponto mais agudo da canção, passando da figurativização para a passionalidade em notas estendidas. E funciona: a sucessão rápida entre estas duas funções semióticas pega o ouvinte de surpresa (ainda mais com a quebra de quadratura da estrofe) e traz a emoção à tona. Quase é possível enxergar o eu lírico da canção girando na chuva entre botões de rosa, a própria imagem da felicidade.

A música de Luís Capucho tem um nível enorme de originalidade, tanto em termos estruturais, como tratamos, quanto pelo tratamento dado a temas aparentemente banais como o de Maluca – a passagem de um caminhão levando flores – ou o de Atitudes Burras – a descrição de pessoas numa sala de espera – ou Antigamente – o ato de pedir um cigarro a um desconhecido na rua. Em todas, Capucho consegue que destes pequenos acontecimentos extraia-se algo que os transcende – ou no dizer de outro compositor pouco convencional, o paulista Maurício Pereira, que uma banalidade gere uma canção gigante. Luís Capucho compartilha a deriva de seu pensamento em uma dicção própria e refinada, uma poética crua e delicada. Um voo de mosca que, antieuclidianamente, ultrapassa o espaço.

O círculo do tempo e do sentido

De todos os subgrupos e subclassificações criados dentro da MPB ao longo da segunda metade do século XX, nenhuma faz menos sentido ou é mais arbitrária que a dos Malditos. Um grupo de compositores e cantores unidos por nada além da dificuldade das gravadoras – não deles – em enquadrá-los como produto e vendê-los. Trabalhos fora do padrão de consumo médio, mas sem outras características em comum, nomes tão diversos quanto Jorge Mautner, Luiz Melodia, Jards Macalé, Sérgio Sampaio, Ednardo, e mais Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e Walter Franco. E no entanto, obras investigativas que influenciaram direta ou indiretamente muitos dos compositores e músicos com mais popularidade que eles.

O caso de Walter é exemplar. Depois de uma aparição surpreendente no VII Festival Internacional da Canção da Rede Globo, em 1972, com a canção Cabeça, ele assinou contrato com a gravadora Continental, com produção de Walter Silva e Rogério Duprat. Cabeça é uma espécie de poema concreto tridimensional e sonoro, estabelecendo uma polifonia de vozes sobre o verso O que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir irmão / ou não. Segundo o depoimento de Duprat, integrante do júri do festival, havia a tendência de dar o primeiro prêmio a Walter, apesar das reações negativas do público. Mas uma entrevista de Nara Leão, também jurada, criticando o regime militar, provocou a dissolução do júri e sua substituição por outros integrantes que deram o prêmio à mais palatável (embora também genial) Fio Maravilha, de Jorge Ben.

Certo é que Walter grava seu primeiro álbum, Ou não, em 1973, seguindo a cartilha arrojada que o levara até ali. E, entre 11 faixas, além de Cabeça, grava também Me deixe mudo. Mas um momento: para fins deste artigo, será mais útil conhecer Me deixe mudo em outra gravação do Walter, feita já em 1980.

A gravação de Me deixe mudo para o álbum Vela Aberta é num formato, digamos, convencional e quase dançante, e nos serve aqui para apresentar a forma primordial da canção, bastante simples: duas estrofes de oito versos cada e organizados dois a dois, harmonia com apenas três acordes. No entanto, a letra enigmática, cheia de imperativos negativos, se presta a algumas interpretações. Nela, menos é mais.

Não me pergunte
Não me responda
Não me procure
E não se esconda
Não diga nada
Saiba de tudo
Fique calada
Me deixe mudo

Seja no canto
Seja no centro
Fique por fora
Fique por dentro
Seja o avesso
Seja metade
Se for começo
Fique à vontade

Walter era um estudioso do Tao. O Tao Te Ching, ou Livro do Caminho e da Virtude, é um dos pilares do pensamento oriental, influenciando decisivamente tanto o surgimento do Taoismo quanto do Zen, e, entre seus ensinamentos, dois temas se repetem: o cíclico e o vazio. Me deixe mudo, como muitas outras canções de Walter Franco, está impregnada destes dois temas. Os pares de versos com opostos (às vezes inesperados, como avesso/metade) ressoam a noção de yin/yang, em especial na segunda parte, e, na primeira, a oposição ocorre entre o que se diz e o que se sabe. Não diga nada / Saiba de tudo é a oposição que será a chave mestra de sentido aqui: a compreensão se dá para além da linguagem.

Aliás, a segunda parte, já sem as negativas, permite uma dupla leitura: os três primeiros pares de versos, lidos a partir da chave condicional do penúltimo verso, podem não ser os imperativos que aparentam ser, e sim alternativas: neste caso, tanto faz ser no canto ou no centro, ficar por fora ou por dentro. Uma sutil mudança de sentido, passando da ordem específica à liberdade de escolha (e encerrada pelo verso fique à vontade). Outra vez uma oposição yin/yang, agora ente as estrofes.

Porém, a gravação convencional feita em 1980 acrescenta pouco em sentido ao que é cantado. Já a interpretação dada em 1973, no álbum Ou não, une forma e conteúdo radicalmente.

Me deixe mudo, nesta primeira versão, literalmente surge a partir do silêncio. (P.S. O Rafael Mori, que fez o excelente 365 Canções Brasileiras, me corrigiu trazendo a real primeira versão da canção, num compacto de 1972. Está no comentário abaixo do artigo, valeu, Rafael.) O poeta concreto Augusto de Campos a classificou (e também a Cabeça) como a explosão da letra em estilhaços de poesia e a sua implosão nos ocos do silêncio. E considerou especificamente Me deixe mudo como a canção com maior registro de silêncio já feita no Brasil. Tanto o canto de Walter quanto os violões e baixo de acompanhamento e uma percussão pontual surgem aos poucos, entrecortados em toques avulsos de cordas, fonemas soltos – que no entanto seguem rigorosamente a letra e a harmonia da música, porém são apresentados de tal forma isolados que o ouvido a princípio não consegue fazer a gestalt de uma estrutura.

Entretanto, gradativamente, os trechos tocados/cantados se tornam mais numerosos e extensos, as junções entre eles começam a se fazer ouvir, e a canção então se organiza ao longo de quase sete minutos, apresentando-se inteira por algumas vezes. E então, no seu minuto final, faz seu caminho inverso, tornando a se esvanecer devagar, sem perder sua estrutura, mas com o desaparecimento gradual de suas partes, de volta ao silêncio primordial.

O ótimo artigo O Silêncio em espirais: Walter Franco, do pesquisador Sílvio Stessuk, faz uma análise de Me deixe mudo que foi um dos subsídios para esta, e nele Sílvio destaca algumas passagens do Tao Te Ching. Vejamos esta, sua parte 11, na tradução um tanto literal utilizada por ele:

Trinta raios convergentes no centro
Tem uma roda,
Mas somente os vácuos entre os raios
É que facultam o seu movimento.

O oleiro faz um vaso, manipulando a argila,
Mas é o oco do vaso que lhe dá utilidade.

Paredes são massas com portas e janelas,
Mas somente o vácuo entre as massas
Lhes dá utilidade.

Assim são as coisas físicas,
Que parecem ser o principal,
Mas o seu valor está no metafísico.

Ou, numa tradução menos direta de que gosto mais:

Trinta raios convergem ao vazio do centro da roda
Através dessa não-existência
Existe a utilidade do veículo

A argila é trabalhada na forma de vasos
Através da não-existência
Existe a utilidade do objeto

Portas e janelas são abertas na construção da casa
Através da não-existência
Existe a utilidade da casa

Assim, da existência vem o valor
E da não-existência, a utilidade

O sentido de Me deixe mudo está nos espaços vazios entre seus sons. Walter desenha sua canção emergindo do silêncio e a ele retornando, articulando-se a partir do caos primordial e a ele retornando. Como a linguagem emerge do pensamento e a ele retorna.

Então, em 1974, Chico Buarque gravou um álbum em que cantava apenas outros compositores, Sinal Fechado. Na verdade, cantava uma de seu alter ego Julinho de Adelaide, criado para escapar à censura, e contribuíra com alguns versos para Lígia, de Tom Jobim, mas pediu para não ser incluído como autor para poder gravá-la neste álbum. Mas o que importa aqui é que Chico deu sua versão para Me deixe mudo.

Não faria sentido que a regravação de Chico repetisse a forma muito particular encontrada por Walter para apresentar Me deixe mudo. Por outro lado, a apresentação formal de Walter, até por seu radicalismo, parece insuperável. Como apresentar a canção de uma forma mais convencional, porém sem perder (ou não perder muito) do extremo alinhamento conseguido por Walter entre a canção e sua interpretação? Chico encontra uma forma simples e eficaz: o fade.

O fade (seja in ou out) é o recurs usado em gravações de estúdio que aumenta, ou mais frequentemente diminui gradualmente o volume da gravação, em geral num instrumental ou na repetição de um refrão, de modo que ela não tenha um término exato, com um acorde final, e sim vá se evolando aos poucos. É muito comum em gravações comerciais, inclusive as de Chico. A novidade aqui não é o fade-out, encerrando a canção, e sim o fade-in. Com ele, a canção emerge do silêncio tanto quanto no caso de Walter, mas não pela articulação progressiva dos fonemas e notas, e sim pelo aumento gradativo do volume. É um ovo de Colombo que permite a manutenção da densidade poética e formal, mas de uma maneira muito mais palatável para o ouvinte comum – como que a transposição do procedimento formal de Walter, da interpretação orgânica para o efeito técnico, do homem para a máquina.

Mas espere. Há uma diferença crucial entre a gravação de Chico e a de Walter, uma diferença insuspeita. Chico – assim como Walter em 1980 – canta a letra de Me deixe mudo em perfeita conformidade com a melodia: o primeiro verso na primeira frase melódica, o segundo com a segunda, e assim por diante. E não deveria ser assim?

Pois não é assim que Walter canta em Ou não. Walter desloca o primeiro verso e começa pelo segundo – mas com a primeira frase melódica. E assim canta com o deslocamento da letra até a última melodia, que é cantada com o primeiro verso, e emenda no reinício do processo. Na gravação de Walter, Me deixe mudo nunca tem fim, porque, quando o último verso é cantado, ainda falta encerrar a melodia, e quando a melodia é encerrada, a letra já se reiniciou. Este descompasso – e poucas vezes esta palavra foi aplicada tão a propósito – força a canção a recomeçar, recomeçar, recomeçar, girar sobre si mesma. E a canção se alinha ao outro ensinamento do Tao, a natureza cíclica de tudo. Ao desalinhar letra e melodia, Walter aumenta o poder simbólico da interpretação e reforça a impressão dada pelo início e fim da gravação: é como se Me deixe mudo soasse continuamente no silêncio e, por um breve tempo, se fizesse audível

Chico não canta a canção assim. Não tenho informação de como ele soube que o alinhamento de letra e melodia de Me deixe mudo era diferente da gravação. Possivelmente pelo próprio Walter. Certo é que ele decide não seguir a forma da gravação existente e prefere cantar letra e melodia pari passu, como Walter cantará também em sua segunda gravação.

Mas isso não significa que esta possibilidade tenha passado em branco por Chico. Pois no ano seguinte, 1976, em seu álbum Meus caros amigos, Chico surge com o samba Corrente.

Corrente é um samba metalinguístico, feito para comentar o estado atual do samba (e de resto tem um teor político que permeia quase toda a obra do Chico nesta época). Porém, com uma característica muito particular em sua estrutura formal. A grande letra de Chico é composta por 16 versos alinhados dois a dois, e é cantada duas vezes: na primeira, perfeitamente alinhada com a melodia; e na segunda, com o deslocamento de um verso!

Porém, o objetivo de Chico ao promover este deslocamento é muito diferente do de Walter. Ao contrário dele, Chico não pretende estabelecer a sensação de continuidade e provocar a repetição da canção. O que ele faz, com o realinhamento dos versos, é provocar uma inversão de sentido: o verso que era cantado acompanhando o anterior passa a ser cantado acompanhado do seguinte, e na nova junção, tem seu sentido passado de uma conotação positiva para negativa. Fácil perceber isso comparando os quatro versos finais em cada passagem:

Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente

Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente

Que se torna, com o deslocamento do verso superior para se tornar o último:

Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo

Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho

Assim, o que era a constatação de que o samba está bem melhorado se torna o lamento pelo fato de a multidão não sambar contente – e aqui segue a crítica política embutida com sutileza suficiente para não ser notada pelo panóptico da ditadura. O estratagema formal de Chico se torna ainda um pouco mais intrincado pelo fato de o primeiro verso da letra ser similar ao último, e por isso quando ocorre a repetição com deslocamento, é mais difícil ao ouvinte perceber de primeira o que aconteceu. A confusão se completa na terceira repetição, em que as duas versões da letra são cantadas sobrepostas. Depois de afirmar e negar, Chico embaralha novamente as cartas, e ouça quem tiver ouvidos de ouvir.

Afirmar que Chico Buarque inspirou-se na gravação de Walter Franco para Me deixe mudo na composição de Corrente é algo a que este artigo não se atreve. Ele limita-se a assinalar as relações formais entre estas gravações separadas por apenas três anos e relacionadas ente si pela versão de Chico para Me deixe mudo. As conclusões deixo para o leitor, e como dizia um outro bardo, o resto é silêncio.

Vai ver, não entendemos mesmo os mitos ou Ceci n’est pas un multivers

Imagine um mundo em que todas as coisas só pudessem ser medidas em unidades exatas, sem decimais, sem extensões intermediárias. Em que uma distância pudesse ser de um metro ou dois, mas nunca um e meio; ou mesmo dez ou vinte centímetros, mas nunca 13, 15 ou 18. Em que sequer a possibilidade de um objeto com estas dimensões fosse aventada. Conseguiu? Seria um universo estranho, talvez parecido com o jogo Minecraft. Algo impensável ou inadmissível, que reduziria tudo a uma enorme pobreza de possibilidades, correto?

Pois isto ocorre em uma outra instância da vida, que não é a das dimensões físicas, mas a musical. Virtualmente toda a música consumida pela enorme maioria da população ocidental, em especial a música popular, foi criada segundo o pensamento acima, ou seja, segundo uma divisão específica do som que muito raramente é desafiada. A escala de doze notas da música ocidental tornou-se o padrão devido a um processo histórico que vai desde a Grécia antiga, passando pelos cantos gregorianos medievais, e se consolida com Bach e seus contemporâneos. Não é uma escolha sem razão de ser, calcada nos harmônicos gerados pela emissão das notas, ressonâncias com base matemática que aprendemos a considerar agradáveis ao ouvido. Mas o continuum das alturas musicais admite outras possibilidades. E se, em vez de doze, forem treze as divisões da distância chamada oitava, que vai de dó a dó? E se forem 15 notas? A distância entre elas diminuirá, os intervalos serão outros, os acordes… compositores da chamada música de concerto têm explorado estas variações há décadas. E na música popular?

Este é o desafio a que se propôs o Lois Lancaster. Ele tem antecedentes pessoais: sua participação como a voz principal da banda Zumbi do Mato o credencia. Porém, o trabalho do Zumbi era de desconstrução (analisei duas de suas músicas aqui). Já em Mar, céu do chão, nome deste álbum, Lois se propõe a um trabalho de reconstrução – mas uma reconstrução em seus próprios termos. A única referência em termos de composição no Brasil que lhe poderia servir – e serve, de algum modo, é o trabalho de Arrigo Barnabé, que gerou alguns álbuns históricos, em especial Clara Crocodilo. Mas a música de Arrigo, embora tremendamente disruptiva, tem como base inicial as experiências dodecafônicas de Schoenberg, que reorganizam a escala de 12 notas mudando sua hierarquia, mas sem lhes acrescentar outras. O caminho que Lois percorre, percorre só.

E desde o título e os primeiros versos da primeira faixa – Uma berceuse – Lois já faz como que um resumo de suas intenções: Mar, céu do chão é uma sentença que, sinteticamente, reorganiza o espaço do mundo, como na cena do filme A Origem em que, dentro de um sonho, uma personagem levanta o chão adiante tornando-o vertical, mas ainda assim percorrível pelos automóveis e pessoas. O reposicionamento do mar neste título desafia o ouvinte antes mesmo de iniciada a audição: a imagem de um mar invertido sobre nossas cabeças ameaçadoramente é a que apresenta o álbum, não fosse a cor do mar resultado direto do reflexo do céu. Ou, no dizer do próprio Lois:

O mar é o tema desse álbum – o elemento água, espalhado em todo um planeta pós-utópico, em um semblante, ou mesmo pressentindo o estado de superfluido como um portal para algum universo Paralelo Ultra DIMensional, lar de uma criatura que chamaremos por conveniência de Marcelo. O sentido do álbum o tem por referência e fulcro.

A menção ao Marcelo parece pouco mais que uma blague de Lois ao ser lida descolada da escuta do álbum. Mas nele está concentrada a noção desestabilizadora que percorre o álbum – ou melhor dizendo, reestabilizadora. Pois, as primeiras palavras cantadas por Lois são justamente: Em que eu consisto? Onde me estabilizo? As perguntas da abertura de Uma berceuse abrem também o portal para que o ouvinte possa se desestabelecer e reestabelecer num mundo sob nova direção, ao menos por 36 minutos. Mais adiante, segue a letra:

E atiro, atiro! BANG, BANG, teje morto!
Mas ele trocara de lugar com sua sombra
E esta se confundira em dez na penumbra.
Na certa, foi apenas Deus que escreveu torto.

A noção de Deus escrevendo torto, como numa geometria não euclidiana, é exatamente a que perpassa todo o álbum. E é a ela que o ouvinte de Mar, céu do chão vai ter de se adaptar. A estranheza inicial é inevitável a quem não estiver familiarizado – mesmo um ouvinte antigo do Zumbi perceberá a diferença. Por mais que a sintaxe característica de Lois esteja presente em intervalos inesperados e ligações entre assuntos aparentemente díspares, aqui há uma certa organização implícita e subjacente à fluidez da água – sejam as correntes marítimas, seja o ciclo das marés.

E para se inserir nesta ordem, mais que entender, é preciso imergir na escuta. A principal escala usada por Lois, a de Bohlen-Pierce, tem 13 notas, mas pode ser mais apropriadamente chamada de macrotonal do que micro tonal, pois esta divisão em 13 se dá não sobre a oitava, ou seja, o intervalo de dó a dó, mas sobre o intervalo de uma oitava mais uma quinta (na verdade o princípio dela é de usar uma proporção 3:1 no lugar da 2:1 da escala tradicional, o que faz com que mesmo este intervalo seja ligeiramente diferente. Mas não faz sentido entrar nestas tecnicalidades). Isto faz com que o intervalo mais básico nesta escala não seja a oitava, mas o que se chama tritava – um dó2 e um sol3, por exemplo, enquanto o intervalo tradicional de oitava simplesmente não existirá, já que a nota que seria o dó3 não é parte da escala, tendo no entanto notas próximas antes e depois.

Confuso? Tem mais. Algumas faixas usam escalas de 15, 16 notas, e até mesmo uma escala de 7 notas como as tradicionais, porém organizada de forma, no dizer de Lois, anti-diatônica, invertendo intervalos de tom e semitom e vice-versa e usada em Hino do Canadá (dos brasileiros). O resultado será um estranhamento tão grande quanto qualquer uma das demais. Acontece que, na verdade, toda esta explicação no fundo é ociosa, porque é na escuta que estas relações complexas se resolvem. Quando o ouvinte consegue ultrapassar a barreira da primeira escuta, a recompensa será como o entendimento de um quadro cubista sem a necessidade de transpô-lo para a tridimensionalidade convencional. A simultaneidade de dimensões está lá, posta, não é preciso mais nada além de fruir.

E há pelo menos uma característica de Mar, céu do chão que ajuda o ouvinte nesta imersão, fornecendo-lhe algo familiar em que se apoiar: pois trata-se inequivocamente de um álbum de música pop, no sentido real do termo, sem pegadinha. As canções de Lois têm refrões – em muitos casos refrões chiclete e, após o ouvido ajustado, até cantaroláveis, como os de Água mal tomada e O meu nome tava escrito errado e Amigo observador. Como que para compensar as dificuldades harmônicas e melódicas enfrentadas pelo ouvinte, Lois trata de fornecer padrões de repetição que lhe deem outras chances de assimilar o que ouve – esta sim, possivelmente uma lição aprendida de Arrigo Barnabé.

Tanto que ao menos uma das faixas do álbum não tem Lois em sua autoria nem sequer foi composta em alguma escala alterada, antes tem um formato muito tradicional. Lois regrava Homem ao mar, de Kassin, gravada por ele no álbum Futurismo (de Kassin + 2, sendo os outros dois Moreno Veloso e Domênico Lancellotti), mas, segundo Lois, remetendo primordialmente à versão anterior do grupo Acabou la Tequila, integrado por Kassin. E o que acontece é a curiosa transposição da canção de Kassin, composta segundo as regras da tonalidade estritas, mas a escala EDO 7. E o resultado consegue a proeza de unir o estranhamento da escala com a pegada pop da composição, pois o refrão permanece não apenas reconhecível, mas também acompanhável como um refrão deve ser. O Homem ao mar de Kassin agora é o Homem ao céu do chão de Lois.

Louco (Ela era seu mundo) é uma recriação do samba de quase mesmo nome (no título original, o verbo ser está no presente) de Wilson Batista e Henrique de Almeida gravado em 1946 por Araci de Almeida, e apropria-se de seu refrão para, nas novas estrofes intermediárias, descrever este mundo – e trata-se de um mundo onde, entre outras coisas, a música popular é toda em Bohlen-Pierce! Aqui, Lois faz com o refrão original não apenas a transposição para outra escala, mas também o transpõe, digamos assim, sintaticamente. Assim, o original:

Louco, pelas ruas ele andava
E o coitado chorava
Transformou-se até num vagabundo
Louco, para ele a vida não valia nada
Para ele a mulher amada
Era seu mundo

É sintetizado em

Louco, ela era seu mundo!
Para ela, ele não valia nada,
Mas para ele, ela era seu mundo.

Lois, então faz a passagem do mundo tridimensional para o mundo de Marcelo (aliás citado na letra) em três níveis: transfigurando o refrão do samba (que originalmente não incluía a opinião da mulher amada sobre seu apaixonado); na própria passagem deste refrão para a escala Bohlen-Pierce; e finalmente, na descrição do mundo de Marcelo no restante de letra, em estrofes como:

Seu mundo com escorpiões de vinte patas
Uma atmosfera verde e prata
E um computador deprê a bordo na nave mãe

Seu mundo onde a raça inteligente
Parece uma espécie de serpente
Contendo três sexos diferentes, diferentes!

No meio de tudo isso, há espaço para canções com temas, como o próprio Lois classifica, menos abstratos. Hino do Canadá (dos brasileiros) é uma sátira à emigração de classe média, classificada como retirantes (uma faixa que, pela temática e ironia e mutatis mutandi, caberia também num álbum do Zumbi do Mato), e Amigo Observador, composta sobre letra de Nem Queiroz, é a descrição bastante precisa de um dia de show na cena rock independente e suburbana do Rio de Janeiro, tocada por entusiastas sem grana. Nesta última, não falta uma dose de ironia mesclada ao carinho natural (já que Lois, via Zumbi e outras bandas como os Elefantes Terríveis, conhece bem tanto a precariedade desta cena quanto o amor com que seus integrantes a mantém.

No fundo, estas duas canções se conectam ao restante do álbum pelo estranhamento que oferecem, derivados de uma visão externa – num caso evidente, na crítica aos recém-chegados ao Condomínio do tamanho de um país; e no outro por um ardil mais sutil, que é provavelmente a única contribuição de Lois à letra: o refrão que é também o título. Pois quem é o Amigo observador que se intromete intercalando as estrofes? Talvez Lois, um pé dentro e um pé fora da narrativa, enxergando seus pequenos ridículos; talvez Marcelo, o ser interdimensional que, convenhamos, será um alter ego do próprio Lois, e aí neste caso demostrando a pequenez de tudo isso como quem observa de outra galáxia aquela tarde no bairro do Caju. Certo é que a entrada do refrão a cada uma das estrofes narradas como que desmonta a narrativa e força o ouvinte a enxergar tudo por um outro ângulo – um ou mais, já que são várias vozes em contraponto que o cantam – que não se sabe bem qual seria, que confunde e não leva a conclusões: apenas observa de outra, ou várias outras dimensões.

Mar, céu do chão termina de forma inesperada, com um poema recitado por Rebecca Moure – apenas umas das seis vozes que se somam à de Lois ao longo do álbum. Bezerros beberrões e controle de multidões parece querer ampliar a pergunta inicial do álbum – Em que eu consisto?, levando-a ao coletivo ao explorar a fórmula Pessoas serão essas?

Pessoas serão essas completos estranhos?
Pessoas serão essas abstrações em contraluz inclinadas a se debater forte ante o vórtex pelo desoriente que a neblina encortinou?
Pessoas por acaso seriam essas e não aquelas?
E por que?

E mais adiante:

Mas… que diabos, o que aquele outro grupo avançando pelos flancos?
Pessoas serão essas da gangue dos Tamoios?
Pessoas serão essas confessos assassinos assinalando os réus de todas as eras?
Pessoas serão essas nós no futuro?
Outros no passado?
Ou ambos ao mesmo tempo?

E de súbito a viagem interdimensional proposta por Lois parece inesperadamente pessoal. Ainda mais quando ele arremata:

Ouça-se você cavando fundo,
Um enxerido no antanho,
Ouça-se você, condenado por bravura pelos erros dos covardes,
Ouça-se você tirando essa onda toda,
Apalpe-se você
E descubra-se pelado.

Não, não se trata aqui de tentar encontrar um sentido oculto e individual para todo este périplo. Não estamos falando de Tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Mas é possível, ainda assim, enxergar na trajetória de Lois um pouco do que estes versos descrevem. A decisão de passar da quase anarquia musical total do Zumbi do Mato para as formas mais estruturadas das escalas micro e macrotonais correspondem, de certa forma, a um passo lógico na busca estética de Lois. A crítica avassaladora e multidirecionada do Zumbi, que acumulava informações até o absurdo – uma espécie de reductio ad absurdum na contramão – é sucedida por uma técnica que, sem impedir o sarcasmo característico de suas letras, estabelece implicitamente uma alternativa ao que é criticado. Um outro mundo é possível, diria um utópico, ao que Lois talvez respondesse – muitos outros mundos, todos até. Lois responde à própria pergunta: Em que eu consisto? Onde me estabilizo? propondo diversas possibilidades centralizadas na figura de Marcelo, o nome arbitrário que concentra em si tudo o que pode ser. Estabilidades um tanto fluidas e díspares – em uma delas um nome escrito errado pode mudar tudo, em outra uma água mal tomada pode te matar – e em ao menos uma delas o mar será o céu do chão. Lois (ou Marcelo) convida. Cabe ao ouvinte dar a mão a ele e mergulhar.

O tempo contra o fascismo

Quanto é muito tempo? A resposta mais imediata será: depende. Tempo para quê? Para receber uma informação? Para a duração de um relacionamento? Para o almoço ficar pronto? O contexto dará a pista para uma resposta razoável. Mas todas restas respostas partirão de um mesmo ponto, ou período base: o de uma vida humana. Ela será sempre a referência para toda medição temporal, como campos de futebol são a medição de desmatamento nos noticiários do Brasil. É a partir dela que bodas de ouro são comemoradas como um grande feito, que um século é algo compreensível mas quase inalcançável, um milênio é compreensível apenas em perspectiva histórica e períodos maiores estão simplesmente além do alcance da cognição, a não ser como elementos matemáticos.

Pois se é verdade que, não apenas para uma vida humana, um segundo pode ser crucial e mudar tudo, a perspectiva da permanência muda drasticamente de ser para ser. E o homem, em sua curta existência (tanto em termos da vida de um ser humano quanto da própria Humanidade), frequentemente se esquece disso. E ter a noção da efemeridade implicará necessariamente em estabelecer contato com seres capazes de nos superar em duração. Olhar as coisas, a cidade, o mundo e mais que o mundo, sob os ângulos deles é um bom exercício para compreender nosso próprio lugar em todos estes lugares.

Estou falando há dois parágrafos sobre a comparação entre nós e seres cuja existência excede a nossa, mas poderia estar falando simplesmente de arte. Pois por meio dela podemos igualmente olhar as coisas sob ângulos diversos dos nossos e mesmo assumir estes olhares, e assim estabelecermos nosso próprio locus no mundo. Aqui estão então duas obras de arte, duas canções que exercitam exatamente este olhar em contraplano, em que olhamos estes seres, experimentamos mesmo seus lugares, e podemos também nos ver vendo-os.

1- O jequitibá

Lançada em 2022 no álbum Vão, O jequitibá foi composta por Wisnik musicando a letra fornecida por Carlos Rennó e gravada juntamente com Ná Ozzetti. A letra, no entanto, não descreve seu objeto, aliás pouco fala dele de forma direta. Sua estratégia é outra: ao invés de descrever o jequitibá branco de cerca de 200 anos de idade, enorme porém discretamente instalado no Parque Tenente Siqueira Campos, conhecido como Trianon, ao lado da Avenida Paulista, ela opta por descrever seu entorno atual apenas para estabelecer sua anterioridade a tudo que o rodeia.

Assim, antes de Masps e Fiesps, de bancos e bancas, de passeatas reacionárias e da Parada Gay, antes do formigueiro de gente da Avenida Paulista, símbolo do progresso e do desenvolvimento, havia uma árvore. Uma não, muitas e muitas, quando São Paulo era apenas uma vila de gente bastante malvista, aventureiros e degredados dispostos a fazer fortuna explorando o território ainda virgem, caçando índios, procurando ouro. E antes, quando tudo era floresta e só indígenas habitavam a terra – e o jequitibá já estava lá.

Os versos de Rennó trazem um ritmo de respiração que não é, no entanto, quadrangular como estrofes com métrica regular. As soluções melódicas dadas por Wisnik, acostumado a musicar poemas de diversos autores da literatura brasileira, seguem respeitosamente esta respiração dos versos. O ritmo de O jequitibá é cadenciado, porém irregular, como os anéis de crescimento de uma árvore, que marcam as estações e os anos, mais grossos no verão, mais finos no inverno.

A voz do Wisnik tem algo de frágil, aerada e suave como é, um timbre que às vezes parece vacilar, mesmo sem perder a afinação, como uma vela que bruxuleia, e nesta canção parece reforçar o caráter efêmero de tudo que canta, de todo o entorno do jequitibá que vem, vai, aparece e desaparece na corrente do tempo, como nos vídeos acelerados em que apenas um elemento permanece imóvel, mas no caso um timelapse não de algumas horas ou dias, mas de séculos. Esta talvez seja a melhor definição para a canção Jequitibá: um timelapse musical.

Porém, um timelapse que acontece na mente de quem ouve, sendo apenas sugerido na canção. Pois esta se compõe unicamente de uma descrição do presente, uma grande angular sobre a Paulista, que se fecha aos poucos sobre o jequitibá. Por sinal que percebo que vou sobrepondo metáforas cinematográficas no texto. Elas vão se impondo ao tratar de uma canção descritiva mas, que em sua descrição sugere desdobramentos que vão além da imagem. O que ocorre com O jequitibá é que, ao apresentar estritamente o que é a Paulista e seus arredores no presente, ela traz junto as imagens do passado, quando nada estava lá. Mas também, implicitamente, nos lembra que toda esta descrição é igualmente provisória. Que, assim como houve um tempo em que nenhum dos elementos da canção estava presente no entorno do jequitibá, em um período de tempo igualmente superior a nossas vidas é possível que nenhum destes elementos tenha perdurado, e o jequitibá se encontre então em um terceiro cenário (ou vigésimo, ou centésimo, pois São Paulo não se fez de uma vez). Como será? Não estaremos lá para conferir, presos ao timelapse modesto de nossa vida humana. Mas o jequitibá, ele muito possivelmente ainda estará lá.

2- Bendegó

Renato Frazão e Luisa Lacerda cantam Bendegó no álbum conjunto Cantiga do Breu, de 2019. O nome e tema da canção é o meteorito encontrado em 1784 no sertão baiano, onde hoje é o município de Monte Santo, nas proximidades de onde anos depois foi construído o povoado de Canudos. Trazido apenas cem anos depois para o Rio de Janeiro a mando do imperador Pedro II, acabou integrando-se ao acervo do Museu Nacional, e estava lá, bem em sua entrada, quando o incêndio de 2018 destruiu o Museu – mas ele, o meteorito, permaneceu intacto.

Bendegó, o meteorito, traz consigo uma dimensão de tempo acima de nossas possibilidades de entendimento – podemos apenas estabelecer os números, mas não internalizá-los. Se o jequitibá do Trianon trata séculos como tratamos décadas, o Bendegó já estava onde foi encontrado havia milhares de anos, e esta foi apenas a parcela de sua existência passada neste planeta, tendo sido forjado possivelmente a partir da decomposição de um cometa, ou desgarrado de um grupo de asteroides, e estes forjados ainda antes no núcleo de uma estrela – assim como toda a matéria que nos compõe, afinal.

Bendegó, a canção, de autoria de Renato e de Claudia Castelo Branco, toma um caminho muito diverso de O jequitibá para tratar da antiguidade deste ser – a começar pela composição, em que, inversamente à dupla Wisnik/Rennó, os versos de Renato se sobrepuseram à melodia anterior de Claudia. Na verdade, opta por tratar apenas do período nosso conhecido de sua existência, a partir de sua descoberta pelo menino Domingos. Porém, ao contrário de Carlos Rennó, que deixa para mencionar o objeto de sua letra apenas duas vezes, ao meio e ao final, Renato e Claudia vão na direção radicalmente oposta: o meteoro é o próprio eu lírico da canção, e canta na primeira pessoa sua história.

A partir daí, os fatos são rememorados não necessariamente na ordem cronológica, e há ao menos um sutil anacronismo. O Bendegó veio para o Rio de Janeiro em 1886. O Arraial de Canudos já existia então, mas foi com a chegada de Antônio Conselheiro em 1893 que ele passou a crescer rapidamente, com a afluência de sertanejos esperançosos de uma vida nova devido a sua pregação, e sua destruição pelas forças da República se deu em 1897. Portanto, Bendegó e o Conselheiro se desencontraram por poucos anos, e os versos Conselheiro eu vi / erguendo o Arraial / Ah, eu vi o Juízo Final podem ser considerados uma licença poética, plenamente justificada porém. O que são alguns poucos anos para quem estava ali há tantos?

Já quanto à melodia que modula estes versos, Bendegó, assim como O Jequitibá, não tem pressa, e nem poderia ser diferente. Bendegó tem nos violões que a acompanham o andamento do carro de boi que levou o meteorito de Minas ao Rio, mas ao fundo se ouve nos teclados a harmonia das esferas de que falou Pitágoras, como o carro de boi passando na noite, e a Via Láctea ao fundo. Entretanto, diferentemente da irregularidade estrófica da canção de Wisnik/Rennó, Bendegó tem uma estruturação muito mais clara e regular, num formato A-A-B-A-A-B-C-C, em que cada uma das formas tende um pouco mais ao agudo, aumentando a tensão da narrativa gradualmente. O jequitibá, ao contrário, ao referir-se diretamente à árvore pela primeira vez desce à tônica do acorde, como que emulando a firmeza do que está bem plantado no chão, e mesmo na segunda parte, quando a voz de Wisnik vai oitava acima no clímax, após este repete-se a opção pelo grave, e a canção termina novamente na no grave, raízes fincadas na terra.

Bendegó utiliza em seu clímax o acontecimento que provavelmente ensejou sua composição: o incêndio do Museu Nacional, que causou comoção em todo o país com exceção de um dos candidatos à presidência da República à época, que esbravejou: Já pegou fogo, quer que faça o quê? Se por um lado é, podemos dizer, natural que a pedra que foi forjada em algum cataclisma sideral e sobreviveu à entrada na atmosfera terrestre também resistisse à queima do edifício que era sua casa, por outro não deixou de ser assombroso vê-la impávida à entrada do prédio totalmente consumido e calcinado, como se nada lhe tivesse acontecido. A letra de Bendegó não menciona diretamente o Museu, mas se inicia e se encerra abordando o episódio, ao final de forma indireta e surpreendente:

Coração desempedrou
Quando meu destino foi

Conhecer a desrazão
Dessa terra o desvario
E eu me aferro em oração
Pelo Brasil

A inclusão da palavra destino abrindo estes versos causa uma reviravolta em seu significado. A noção de que aquela pedra veio dos confins do espaço e do tempo, vagou por eons e anos-luz até cair neste grão de poeira que é a Terra e foi levada até aquela casa que se transformava em museu por um propósito, como se ela tivesse sido criada expressamente para estar ali no instante decisivo em que ele lambesse em chamas – e permanecer. Se estas chamas seriam – e foram – incapazes de afetá-la externamente, a personificação da letra atribui à pedra de ferro um coração, e se as explosões atômicas estelares não a afetaram, o incêndio do lugar construído por seus hospedeiros para conservar o saber, incêndio causado pela incúria deles próprios, o fez. Bendegó sabe que sobreviverá ao que vier a acontecer como sobreviveu por milênios, mas teme por quem o recebeu, recolheu e se interessou por ele – nós.

Bendegó foi escrita imediatamente antes, ou talvez apenas um pouco depois, da ascensão de forças destrutivas no Brasil. Já O jequitibá provavelmente o foi pouco antes, ou imediatamente depois, que estas forças foram derrotadas por muito pouco, mas o suficiente para deixarem o núcleo do poder. Ambas são as primeiras faixas de seus respectivos álbuns, e são cantadas ambas por um homem e uma mulher. Coincidências apenas (embora o impacto, digamos, temporal de cada uma talvez tenha sido determinante na escolha de serem as faixas de abertura). A partir daí, fazem escolhas diversas e eventualmente contrastantes para falarem de seus temas com muito em comum, seres de tempos maiores que os nossos e que assistem pacientemente nossa agitação por vezes tão fútil, por vezes autodestrutiva. E que viram chegar e passar, como passam as passeatas, atos, manifestações, a desrazão, o desvario, como já haviam visto outras e outras vezes. E passaram.

O jequitibá do Trianon, ao lado da Avenida Paulista, não está imune a nosso poder destruidor, malgrado sua sobrevivência até hoje – tantas e tantas como ele não sobreviveram. Mas a existência de uma obra de arte que o cante, chamando a atenção para ele, tem um poder por si só de aumentar as possibilidades de sua permanência, contribuindo para impedir qualquer ação futura que impacte sobre ele. O meteorito Bendegó, por sua vez, é mais capaz de resistir, mas, inversamente, foi o risco que correu, ou pareceu correr, que motivou a obra que o cita. Um nascido e criado nesta terra, outro imigrante de onde sequer há terras, eles traçaram rotas anti-euclidianamente paralelas, um imóvel, outro vagando velozmente no espaço, que os levaram a duas cidades vizinhas, embora tão diferentes. Dois habitantes de escalas de tempo diferentes entre si e superiores à de quem os canta, nos lembrando de que, em outas escalas de tempo, a pulsão de morte já foi derrotada e voltará a sê-lo. Duas canções traduzindo esta mensagem em mais que versos e melodia. E este texto, que promove o encontro entre elas e seus personagens. Mas guardando em algum lugar a sensação de que, de algum outro tempo ou lugar, eles já se conheciam.

Zumbi, Zabé, Johnson e Ismael

No início de 2022, Sergio Camargo, presidente da Fundação Palmares, revelou seu desejo de mudar o nome da instituição para Fundação Princesa Isabel. Camargo foi nomeado para este posto por Jair Bolsonaro com o objetivo explícito de destrui-la por dentro, tática também usada pelo fascismo tupiniquim em diversas outras. Porém, neste caso tratava-se de um dos muitos factoides criados apenas para estabelecer polêmicas estéreis que mantenham a oposição alvoroçada. A mudança de nome precisaria ser aprovada pelo Congresso.

Porém, a escolha da polêmica vazia, assim como a loucura de Hamlet, tem seu método. Pois a oposição entre Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon-Duas Sicílias, cognominada A Redentora por ter assinado a também cognominada Lei Áurea, e Zumbi, negro nascido livre, escravizado, tornado líder do maior quilombo das Américas, capturado e assassinado, é um dos símbolos das mudanças trazidas pela luta do movimento negro no Brasil. A passagem da assinatura da Abolição (13 de maio) para a morte de Zumbi (20 de novembro) como principal data comemorativa para estes movimentos (pois são múltiplos) é reflexo de uma postura que não aceita nada que possa ser interpretado como um favor e se apresenta como protagonista da própria história.

Esta introdução não é um mero nariz de cera – gíria antiga pra inícios de textos que não dizem a que vieram, atrasando a entrada no assunto real. No entanto, ela será ainda insuficiente diante do tamanho da divisão que se afigura aqui. Assim, não vejo outra maneira de entrar efetivamente no assunto que não de supetão, e o assunto aqui é, antes de tudo, canção. Portanto, vamos a elas, ou à primeira delas.

Meu coco é a faixa de abertura e também título do álbum de Caetano Veloso lançado em 2021, o primeiro de inéditas após a sua chamada trilogia do rock (álbuns , Zii e Zie e Abraçaço). Nele, Caetano faz um, ou vários, vigorosos libelos contra o fascismo tupiniquim, contrapondo a este uma noção de civilização longamente desenvolvida ao longo de sua obra, em particular a visão de Brasil inclusa nesta civilização. E, após evocar alguns dos nomes fundadores da canção brasileira moderna – Noel, Caymmi, Ary -;e de elencar os nomes de filhos de seus pares e de si mesmo como representantes de um futuro que já se afirma; e de mencionar João Gilberto como um oráculo que centraliza tudo isto e muito mais, Caetano encerra sua canção com o verso: Tudo embuarcará na arca de Zumbi e Zabé. Sendo Zabé uma corruptela, trocado o z por s, para ela, a Princesa Isabel.

Não é a primeira vez que Caetano põe estes nomes lado a lado. A canção 13 de maio, do álbum Noites do Norte, inicia em 2000 a metamorfose do nome, de Isabel a Isabé. E em Feitiço, composta e gravada com Jorge Mautner no álbum conjunto Eu não peço desculpa, de 2002, eles foram ainda um pouco mais longe nos versos Zabé come Zumbi / Zumbi come Zabé, numa letra abertamente tropicalista que louva a capacidade de música brasileira de regurgitar influências, invertendo os versos de Noel Rosa ao referir-se ao funk: um feitiço indecente que solta a gente, e uma resposta crítica de Caetano ao que ele já classificou como versos racistas de Noel. A decisão de colocar lado a lado os dois nomes – e a antropofagia recíproca imposta a eles em Feitiço – assemelham-se a tentar encostar os lados opostos de um imã, e no entanto é o que ele faz, e mais: não apenas encerra a canção com eles, mas o faz direcionando tudo o que disse antes a eles, passando obrigatoriamente por Chico Buarque – e o neologismo emb(u)arcar é o filtro que direciona e unifica o que passa por ele, como um filtro torna potável a água ou a torna café – que possivelmente orienta o carnaval.

Somemos agora a esta discussão outro álbum lançado em 2021, e que traz uma visão radicalmente diferente sobre o assunto que vai se desenhando aqui: Delta Estácio blues, de Juçara Marçal, e sua canção-título.

Rodrigo Campos, co-autor de Delta Estácio Blues contou em seu perfil do Instagram:

Quando recebi o convite, junto com a base construída por Juçara Marçal e Kiko Dinucci, pra compor com eles o que viria a ser a canção “Delta Estácio Blues”, tinha acabado de assistir um documentário sobre Robert Johnson. (…)
Ao mesmo tempo também ressoavam na minha cabeça os papos com Bernardo Oliveira, em que concordávamos sobre ter acontecido uma subestimação da Turma do Estácio como movimento que ajudou a forjar uma identidade cultural brasileira, com a criação da primeira escola de samba, junto com os instrumentos e a estética musical que usamos até hoje. As épocas dessas personagens coincidiam, foram contemporâneos. A música negra se reinventando de formas diferentes e ricas em dois lugares do mundo no mesmo período.
Fiquei cantarolando em cima da base, onde encontrei essa melodia, que conversava com a harmonia do violão do Kiko Dinucci, que me lembrava, talvez pela levada e timbre, também, o violão do Robert Johnson. Tava ali o mote: Robert Johnson não fez trato com o diabo pra passar de medíocre a deus do Delta Mississipi, ele havia encontrado a Turma do Estácio. Numa espécie de vingança “tarantinesca”, imaginei: agora, Bide, Baiaco, Ismael e grande elenco, não tinham fundado, apenas, os alicerces da música brasileira, mas também da música do mundo, com os poderes pagãos por eles conferidos a Robert Johnson.

A canção Delta Estácio blues conta a história deste encontro de forma propositalmente elíptica, como se fazem as formações de mitos, mas com uma conformação de estrutura que inclui uma ponte instrumental entre a segunda e a última estrofe correspondendo ao período misterioso em que Robert Johnson teria desenvolvido sua técnica, e a inclusão de uma cuíca tocada por Paulinho Bicolor – instrumento introduzido no samba a partir de sua origem congo-angolana por João Mina, integrante da Turma do Estácio não mencionado na letra. Já Delta Estácio Blues, o álbum, se passa inteiro neste presente alternativo, bifurcado na virada da década de 1930 – tanto estilisticamente quanto, se ouvirmos com atenção, conceitualmente, até mesmo nas letras. Assim como o livro O Homem do Castelo Alto se passa num presente em que o nazismo venceu a guerra e o Japão governa o território dos EUA, Delta Estácio Blues se passa num Brasil em que Ismael e Johnson se encontraram e mantiveram unida a diáspora. Que mundo teríamos então?

Caetano, em seu livro Verdade Tropical, fala dos dois gigantes da América, EUA e Brasil ao norte e ao sul, e sua difícil convivência. Juçara traça um elo (não tão) perdido entre a música negra dos dois países, não no tempo, mas territorial, aproveitando o elemento mítico para colocar o Brasil em vantagem – pois Robert Johnson vem receber seu poder, receber a unção de Bide, Marçal e Ismael – uma Santíssima Trindade ao avesso, que substitui o Demônio no pacto. Só que, para Caetano, esta reescrita mítica não é necessária, pois o elo perdido para ele foi achado em 1958, por um homem branco de Juazeiro e igualmente com a vantagem para o Brasil, mas possivelmente um outro Brasil. E aqui temos um ponto chave para entender as diferenças entre estes dois trabalhos.

Robert Johnson e João Gilberto têm uma coisa em comum: ambos, de forma algo misteriosa, estabeleceram as bases fundamentais dos estilos que os consagraram. Johnson, do Mississipi Delta Blues, com seu formato consagrado de 12 compassos e cadências harmônicas tão características. E João, da Bossa-Nova, estilização do samba conforme este fora codificado por… Ismael Silva e seus amigos. A centralidade de ambos em virtualmente toda a música produzida em seus respectivos países é inquestionável. E Robert Johnson e João Gilberto têm uma coisa diametralmente diferente entre si: um era negro, outro branco.

João Gilberto não é apenas central na música brasileira em geral, mas em particular na obra de Caetano. No entanto, o que Delta Estácio Blues propõe é outra coisa: uma união dos negros para fazer o que querem fazer, antes que o branco o faça por eles. No universo de Delta Estácio Blues, João Gilberto está obsoleto com trinta anos de antecedência. Nada pessoal. Apenas a retomada de, para usar a expressão consagrada de Caetano, outras diversas linhas evolutivas da música brasileira deixadas de lado, recalcadas, e que retornaram à evidência em tempos relativamente recentes.

Em outro artigo deste blog, tratei de como a promessa de felicidade  – termo sintético usado por Zé Miguel Wisnik, aliás tirado de uma canção de Caetano, Lindeza – feita pela Bossa Nova, ao longo de 60 anos, mostrou-se gradativamente feita de escolhas que não necessariamente incluíam a todos, e como a MPB foi sendo gradativamente esgarçada para tentara suprir estas ausências a partir do surgimento da Tropicália e de Jorge Ben (trato-o aqui sem o Jor, por tratar apenas de sua carreira anterior à mudança), até ter sua planejada aliança de classes rompida simbolicamente por uma delas com a ascensão do rap, centralizada este na obra dos Racionais MCs. Pois, de forma sintética (mas a ser nuançada adiante), pode-se dizer que Caetano insiste no suposto vigor da MPB em promover uma inclusão geral e que esta união seria a arma mais potente contra o fascismo, enquanto Juçara prefere seguir a trilha aberta pelos excluídos e elaborar uma resposta ao fascismo que não caia nos mesmos erros da trilha que, ao fim e ao cabo, permitiu sua ascensão. Delta Estácio Blues reivindica e esboça um novo mito de origem para a música brasileira, nada menos.

Enquanto isso, Caetano segue considerando a MPB a redenção do Brasil, ou dos Brasis. Com Naras, Bethânias e Elis / Faremos mundo feliz / Únicos, vários, iguais são versos que vão ao limiar extremo do passadismo, não estivessem duas destas três tremendas protagonistas da canção brasileira mortas há décadas – e duas delas fossem desafetos inconciliáveis… no entanto Caetano, ao longo de todo o álbum, vai evocando – ou seria mais exato dizer invocando – todas as forças da música contra o fascismo, dos dodecafônicos e vanguardistas Shoenberg, Webern, Cage, passando pela lista de GilGal (a começar pelo título e mencionando Pixinguinha, Benjor, Jorge Veiga, Djavan, Milton Nascimento, Tincoãs e outros), seguindo por nomes brasileiros contemporâneos em Sem samba não dá – Ferrugem, Djonga, Baco Exu do Blues, Glória Groove, Mayara e Maraísa, Marília Mendonça, Duda Beat, Gabriel do Borel – e encerra o álbum inteiro com os nomes do Olodum e de Carlinhos Brown.

O que ele está fazendo é uma arregimentação: Caetano elenca todos, mesmo os ligados ao sertanejo do agronegócio, como antípodas do fascismo, preferindo enxergá-los como continuadores da cultura brasileira. E o que permite esta convocação, planejada nos versos de Não vou deixar: porque eu sei cantar / E sei de alguns que sabem mais / Muito mais, é a sua convicção férrea de que todos são ouvidos pelo filtro poderoso e unificador de João Gilberto e o representante que Caetano elege entre os hoje vivos, Chico Buarque.

Há ainda dois outros níveis de convocação utilizados por Caetano. Um é a listagem de nomes de filhos como Moreno, Zabelê, Amora, Amon, Manhã, dele e de seus companheiros de geração como Gil e Jorge Mautner, tirando proveito do exotismo de cada um (porta aberta por Riroca, não posso deixar de pensar) para assinalar sua fé em uma nova geração, original desde os nomes – embora a noção de uma continuidade por herdeiros tenha não apenas no Brasil um histórico oligárquico deplorável. E o outro consiste em convidar para arranjar suas canções nomes como Thiago Amud e Letieres Leite, músicos de trabalhos arrojados unindo tradição e uma enorme inventividade. Por todas estas características, Meu coco se configura como uma espécie de toque de reunir da música brasileira contra quem a despreza, tendo no entanto nascido e crescido nas sombras do território que ela renunciou a abarcar.

Já Juçara – e Kiko Dinucci, seu fiel escudeiro aqui e responsável pela maior parte da sonoridade de Delta Estácio blues – fazem sua aposta no futuro partindo de pressupostos muito diversos. Ao invés de tentar o resgate do que parece se perder, eles investem no que não chegou a ser, mas mostra hoje muito mais fertilidade. Delta Estácio blues é um álbum de música negra, e também de música eletrônica. Assim como o álbum anterior de Juçara, Encarnado, tomava uma bifurcação na MPB joãogilbertiana ao ter seus arranjos desenvolvidos não a partir dos clássicos blocos de acordes, mas em contrapontos ásperos em que a tensão nunca era suavizada, aqui, lado a lado com a união entre blues e samba narrada na letra da canção título, ocorre uma reivindicação de território – porque a música eletrônica tem raízes negras constantemente esquecidas. Neste sentido, a escolha estética de Juçara e Kiko se mostra tão política quanto a plêiade de nomes recitados por Caetano, e também mais sintética, mais direta e, de certa forma, mais potente na sua intenção de projetar o passado para o futuro.

E aqui voltamos à questão racial, que permaneceu latente por todos estes parágrafos. Dizer que a MPB obliterou o negro é manifestamente uma falácia, e vários nomes listados por Caetano – em particular em Gilgal – evidenciam isto. Porém, sua capacidade de assimilação da cultura negra urbana, para além da cultura popular que inspirou Ponteios e Disparadas, não acompanhou as necessidades destas classes, e, novamente, isto é demostrado desde Jorge Ben, que não por acaso foi acolhido por Caetano e tropicalistas. Assim, a postura de Caetano é bem mais dialética do que pode parecer. O mesmo Caetano que grava Quando Zumbi chegar em seu álbum Noites do Norte, em grande parte dedicado a dissecar a herança escravocrata, em Meu coco canta Você-você, um fado interpretado junto com a cantora portuguesa Carminho e encerrado com versos que de intentam pós-colonialistas ao justaporem:

Ary, Noel Tom e Chico
Amália, blues, tango e rumba
Atabaque e bailarico
Peri, Ceci, Ganga Zumba

Ganga Zumba, é bom lembrar, foi o líder de Palmares anterior a Zumbi, e este tomou seu lugar em rejeição à proposta de Ganga Zumba de fazer um pacto de não agressão com os portugueses, que, em tese, garantiria a liberdade dos quilombolas, mas inseriria o quilombo na administração portuguesa. Zumbi rompeu este pacto, precipitando a guerra. E aqui ele é acrescentado ao índio Peri e à branca Ceci (Ubirajara também é um dos nomes listados em Meu coco), o bom selvagem e a mocinha do romance de José de Alencar, e ao acrescentar um terceiro nome ao amálgama iniciado com referências musicais, acaba idealizando um estranho triângulo amoroso.

A par disso, Caetano se reconhece mulato, como afirma na canção Branquinha (feita para a mulher Paula Lavigne), ou pardo, que é como se identifica para os censos e também na canção de mesmo nome neste álbum – que no entanto é, à maneira enviesada de Caetano, também uma declaração de negritude: Sou pardo e não tardo a sentir-me crescer o pretume. Sua condição de mulato em uma canção se afirma em contraste com uma mulher branca, e em outra contrastando com um homem negro.

Todas estas nuances, ou mesmo contradições internas, são inerentes à persona tropicalista e suas provocações, o que não significa que sejam olvidáveis. Mas o fato é que o Brasil que Caetano defende, em que o racismo e a herança da escravidão sejam rigorosamente banidos, também é um país em que as heranças culturais se amalgamem numa diversidade específica em que todas terão vez, e esta fusão de heranças para ele passa inevitavelmente por João Gilberto. Caetano se permite acrescentar ao legado de João, mas não deixá-lo de lado, e trabalha incessantemente pela ampliação do círculo e pela inclusão de novas vertentes que foi o projeto tropicalista, mas sempre a partir do ponto fulcral, do Big Bang de João. Daí a condição imposta por ele aos novos nomes da música brasileira: Vai chegando que a gente vai chegar / Vê se rola, se tudo vai rolar / Só que sem samba não dá. E para Caetano, sem samba significa sem João.

Este é seu grande trunfo, e também o seu grande limite. Pois não é possível incluir neste projeto utópico quem não acredita nele, e, malgrado os esforços de Caetano, o projeto deu a uma parte expressiva de nossa população escassos motivos para ser encampado por ela. O resultado estético disto é que, embora Caetano consiga dialogar com o universo do rock e mesmo do funk, este último com uma capacidade de canibalizar influências e informações análoga (mas não idêntica) à da Tropicália, além do humor, em compensação, a conversa com o universo do rap e do hip-hop se revela muito mais truncada, malgrado a predileção destes pelo mesmo Jorge Ben acolhido por Caetano. Há exceções: Haiti, dele e de Gil, é uma honrosa, mas um passo que não foi seguido por outros.

Pois Juçara dialoga com esta estética com enorme desenvoltura. Ela reconhece que distinção entre canto e fala se esboroou e isto se reflete em sua interpretação. Um ouvido condicionado pela MPB poderia considerar que o álbum Delta Estácio blues não é um álbum de cantora, em que sua capacidade vocal e interpretativa se destaque. Juçara não está nem aí. Faixas como Oi,Cat e Crash estão fora dos limites da MPB e demonstram uma assimilação do cantofala, mantendo-se no limite entre um e outro, de uma forma que nenhum dos compositores da MPB clássica, Caetano incluído, se atreve a fazer. E é possível aventar que isto só é possível trilhando os caminhos que a MPB não percorreu: os caminhos que ligam misteriosamente Ismael Silva a Robert Johnson, sem nenhuma mediação.

Crash, canção que levou o prêmio de canção do ano da Multishow, é de autoria de Kiko Dinucci com Rodrigo Hayashi, o rapper cronista de São Paulo conhecido artisticamente como Ogi, e consiste na descrição física de uma briga sem praticamente nenhuma informação contextual de quem ou por quê além de o oponente ser da Calábria (ou seja, branco). Trata-se de um modelo de estilização cinematográfica da violência que a Tropicália não deixou de praticar (Olha a faca! já avisava Gil em Domingo no Parque), mas é também um rompimento – mais um – com a noção de que está tudo bem entre as classes. Algo se quebrou e não tem conserto. Juçara reconhece o crash.

Já Caetano, em diversos momentos do álbum (em especial Não vou deixar), vai até onde a melodia estilizada consegue se reaproximar da voz falada, no quase monocórdico verso inicial, equilibrando-se entre dois semitons. Este é seu limite, que quase é ultrapassado no verso Muito mais!, um instante apenas em que o cantofala surge, fluido e dando conta da intensidade que a simples melodia não daria.

Por sinal que Não vou deixar (um funk-maculelê, conforme nota o pesquisador Pedro Bustamante Teixeira nesta ótima entrevista sobre o álbum, mas de contornos muito suavizados) é reveladora da própria fragilidade enquanto manifesto. Caetano conta que ela surge de sua reação diante da televisão que noticiava a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. Ele se viu esbravejando praticamente os versos iniciais: Não vou deixar, não vou deixar!, ao que seu neto pequeno, vendo sua indignação, exclamou: O vovô tá nervoso, que acabou se tornando outro verso. À parte a maestria de Caetano em transformar o episódio em canção, ele não deixa de se tornar bem representativo da impotência de sua própria afirmação. Caetano, uma vez perguntado em uma enquete de jornal sobre o futuro do Brasil, respondeu: O Brasil vai dar certo porque eu quero. O contraste desta declaração no limite da arrogância com a imagem de um senhor, na época com 76 anos, esbravejando diante da TV é também ilustrativo de o quanto o projeto de Brasil sonhado por sua geração se tornou distante, por mais que a canção resultante tenha em si também sua força, rescaldo ainda deste sonho.

Este artigo não tem a menor intenção de tomar partido entre estas duas visões, mas apenas compreendê-las o mais possível – e já é muito! Entre elas há um processo histórico acontecendo, um processo vivo que procura respostas estéticas para problemas muito mais amplos: para além da expulsão do fascismo tupiniquim, as exclusões históricas que nos levaram a ele. Se o modelo da MPB oriundo da Bossa Nova e turbinado pela Tropicália se revela hoje insuficiente para fornecer uma visão de Brasil que abarque e inspire a todos – se é que um dia foi suficiente-, surgem sons novos com a vitalidade que estes movimentos um dia tiveram, e que incorporam em si vozes que não tinham lugar, e com elas timbres, dicções, sintaxes.

Caetano pretendeu, na canção Meu coco, em suas palavras, fazer uma canção que mostrasse o que se passa em minha cuca ao ouvir João falar. Delta Estácio blues, inversamente, trata de abrir novas possibilidades de passado, procurando caminhos inexplorados e deixados para trás. Em ambos, a certeza de que ainda há muitos futuros a construir. E possivelmente o delta aberto para além de Mississipis e Estácios, lá adiante, volte a se encontrar com a antiga promessa de felicidade, mas desta vez incluindo-a em vez de aspirar ser incluído, construindo futuros em que ninguém mais fique para trás.

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Além da já mencionada entrevista de Pedro Teixeira, este texto se hauriu do de Acauam Oliveira O Brasil no coco de Caetano, que antecipou diversas questões tratadas aqui – como ele volta e meia faz, aliás – e da mencionada entrevista de Pedro Bustamante Teixeira. E agradeço também à Juçara Marçal por uma curta mas esclarecedora troca de mensagens.

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Este artigo foi publicado originalmente na revista Uma Canção, editada por Marcos Lacerda e Alexandre Marzullo, a quem agradeço o espaço.

Declaração de voto

Não deveria ser necessário dizer isso. Mas um site como este, que se dedica a decupar e entender um pouco da cultura, em especial brasileira, e que tem a admiração e o respeito pela criação musical e artística tem urgência em tirar do poder uma pessoa que despreza tudo isso.

Lula, 13, para presidente e contra o fascismo.

Elegia a Carlos Negreiros

Eu cheguei atrasado na Roda para Moacir Santos organizada pela flautista e pesquisadora Andrea Ernest Dias, demorei a me liberar no trabalho. Quando cheguei já havia começado, e se ouvia um vozeirão lá dentro. Quando acabou a música, entrei, e quem estava no palco com ela era o Carlos Negreiros.

O Negreiros foi o garoto que entrou para ser o cantor da Orquestra Afro-Brasileira fundada pelo maestro Abigail Moura nos anos 1950 sem conhecer nada, no dizer dele mesmo, e saiu sabendo tudo. E 60 anos depois tornou-se a referência dela, passando para os garotos o que aprendeu, comemorando os seus 80 anos com esta mesma orquestra refeita. Preciso dizer pouco mais.

O Negreiros cantou A noite do meu bem, da Dolores Duran, com arranjo feito pelo Moacir. E depois Andrea saiu do palco e o deixou só com os músicos, sua percussão e seu vozeirão para cantar Ifá. E ele tomou a frente e eu vi uma performance impressionante, em presença e força. Num dado momento, trocou os atabaques por caxixis, e depois atirou os caxixis no chão para retomar os atabaques com a mesma fúria que um garoto quebra a guitarra. Mas ele continuou. Não era ele quem estava ali, era uma multidão. Não eram seus 80 anos quem estavam ali, mas séculos e séculos de tradição e música com o vigor de um menino.

Então ele, muito aplaudido, deixou o palco para a volta da Andrea. Depois ainda viria BNegão para a outra participação da noite. Mas a o show foi interrompido, a música parou no meio, um médico foi buscado na plateia, ambulâncias chegaram, mas mesmo assim, ali no camarim, o coração do Negreiros parou.

O Negreiros cantou e para subir, como disse Andrea mais tarde. O tempo passou rápido demais, mas deu tempo de ele repassar um pouco do que aprendeu. Neste show em Ipanema BNegão não chegou a subir ao palco para pegar o bastão, mas já o fizera em Madureira e na Pavuna – ou seja, onde de direito. E na Orquestra, e nas séries de depoimentos e apresentações que passou a fazer desde que seus discos foram redescobertos, tantos anos depois, precursores de tanta coisa.

O Negreiros se foi fazendo o que sabia fazer melhor, e sua performance de ontem não vai sair mais dos meus tímpanos e retinas, e vai ecoar, como já ecoa, em BNegão e tantos outros, como ele ecoou outras tantas vozes para nós. O tempo passa rápido, 80 anos, séculos passam rápido, mas o que importa passar por nós, de uns para outros, para subsistir. O Negreiros aprendeu e ensinou, parte e fica naquilo que ensinou. E quem não ouviu e viu, vá ver e ouvir.